Carta de guia de casados/Frades e freiras
XXVI
Vejo que já me estão perguntando, ¿ como se haverão em o trato dos frades ? Responderei com a resposta de um cortesão, ou aconselharei com o seu conselho. Dizia êste, sendo assim perguntado : Olhai, eu sou amicíssimo dos frades : se não são bons, não lhes quero dar ocasião em minha casa para que sejam piores : se são bons, não lhes quero dar ocasião em minha casa para que o não sejam : de sorte que sempre os amo, e sempre os escuso.
Outro mais escrupuloso dizia, que em quatro partes lhe pareciam bem os religiosos : Altar, Púlpito, Confessionário ; e perguntando-lhe qual fôsse o quarto logar ? Respondeu : pintados.
Lícito é que o parente religioso veja a mulher de seu parente, ou sua parenta. Venha a casa, ajude a alegrar nas ocasiões de contentamento, e a consolar no desgôsto ; componha a discórdia, se aconteceu entre os casados. Que o mesmo faça o prelado da Religião, o homem douto, e virtuoso dela ; assista-lhes o marido, dê autoridade a suas visitações, que então fica a prática mais universal, e a visita mais solene.
Enfada-me (e é para isso) o modo de alguns homens, que em lhe chegando Frade, ou pessoa de que êles não gostam, à sala, já o encaminham para D. fulana, e por se verem livres da impertinência, ou petitório de alguns de tais mensageiros, lhos lançam à pobre mulher, como quem lança ôdre de vento a touro em que desbrave. É êste um mal considerado remédio.
Também o ser descortês com os religiosos, e estar como potro espantadiço, tendo mêdo de qualquer argueiro que vôa pelo ar, é andar muito por êle. A mulher se desconfia, vendo o pouco que fiam dela, escandaliza-se a casa, o senhor se afronta, e nada fica melhorado.
Reduzira, finalmente, as beatarias da mulher casada em ser muito amiga de Deus, e muito temerosa dêle. Estudar nas obrigações de seu estado. Ouça a missa no seu oratório à semana ; e, se ao domingo quiser ir à Igreja, é bem louvável. Vá, e não às de maior concurso. Em dias de festa será conveniente acompanhar-se da parenta, e da amiga ; ir cedo ; e não entrar na casa de Deus com o mesmo estrondo que se entrára em uma batalha, destroçando, e atropelando o povo, que se queixa, e as murmura. Esta é mannha de algumas senhoras, e não por certo bôa manha. Não seja a última que sáia, nem a primeira.
Tinha também que dizer a umas que comem nas Igrejas, para ficar para a tarde ; a outras, que sem propósito se levantam mil vezes cada hora a rezar de joelhos, não sendo tempo ; mas parece apertar muito : fique pelo menos sabido que não esquece.
O uso das penitências, para quem as usa, é saudável. Na mulher que as aprende, convém que se moderem. Há uns casados tam indiscretos que se desviam da mortificação, quando algum a quere receber. Isto não deve ser assim : porque quem ama a pessoa, muito mais deve amar o espírito. A mulher bôa, que sem excesso se mortifica, é digníssima de que se lhe dê todo o azo, e licença, para que prossiga em sua oração, e mais exercícios santos. Ao marido o mesmo a mulher ; que o contrário é amar de gentilidade.
Duvido (ou não sei se não duvido) de que seja conveniente a amizade de casadas com freiras. Isto podia ser mais, e menos tolerável, segundo fôsse mais, ou menos freqüente. Por cousa tenho senhoril ter bôa amizade com uma religiosa, que as mais delas, ou são santas, ou discretas, curiosas, e pessoas de estima ; quando o negócio não chegasse a amores impertinentes, escritos de cada dia, ciúmes de cada hora, presentes, e viagens de todo o ano. O mais, como digo, antes fôra bem permitido ; e que a casada mandasse à freira seus presentes, por festas, e a visse por festa.
O mesmo a seu confessor, ao prelado conhecido do convento reformado. Fez Deus aos ricos tesoureiros dos pobres ; e assim é razão que se deixem usar dêles, como de acredores seus.
Não tenho aqui que dizer mais, e antes cuido que fui sobejo. Salvo se acrescentar um aviso de cousa, com que há muito tenho azar ; a qual é vêr a umas mulheres andar sempre fazendo festas, pedindo-as, prometendo-as, e aceitando-as com o pretexto que elas querem. Falei já no servir a Deus quam bem parecia ; mas nesta matéria creio que há não pouco inconveniente, porque às vezes uma senhora a trôco de se não escusar de receber uma capela, e um ramalhete em uma salva, cuidando que se apouca em a não aceitar, a aceita, e põe depois seu marido em maior vergonha, ou não fazendo a festa, ou fazendo-a mal, do que ela se ficára escusando-se dela. Até a estas cousas alcança a obediência que aos maridos se deve.