Carta de guia de casados/Freiráticos e ciúmes

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XXXVIII


Freiráticos e ciúmes


Muitos há que, não sei em que fiados, dão em terem amizades proluxas com freiras ; parece-lhes que nada ofendem as mulheres nessa correspondência. Tira-se daqui muito ruim fruto: porque as mais das casadas começando em zêlo do que os maridos gastam, e do que se descompõem, acabam em um finíssmo ciúme. Elas tem razão, porque os maridos não farão menos ofensa a suas mulheres divertindo-lhes a afeição, que qualquer dos outros cabedais, que lhes são devidos, e com êsse nome de devido se nomeiam ; antes será maior a ofensa quanto fôr a mulher mais daquelas, que só da afeição de seus maridos se satisfazem.

Não quero passar tam de-pressa por esta palavra, ciúme, ou ciúmes; que ou dados, ou tomados, significa um humano inferno. Humano, porque vive entre os humanos; e desumano, porque desumanamente trata aqueles entre quem vive, ou vivem nêle.

Foi questão, e ainda não é conclusão, qual lhe seria pior a um casado, dar ciúmes a sua mulher, ou tê-los dela ? Escuso-me de averiguá-la ; uma, e outra cousa abomino. Há muitos que do dar ciúmes não fazem caso, e grandíssimo de os receber.

O engano, senhor, é manifesto ; porque o dar ciúmes que se despreza, de ordinário assenta sôbre grande causa; e o recebê-los que em muito se tem, as mais vezes é imaginação; e como as mulheres padeçam ainda menos de fracas, que de vingativas, acontece que mil vezes produz nelas mais terríveis efeitos a vingança, que a fraqueza.

Disse bem quem disse, que os ciúmes se pareciam a Deus, em fazer de nada alguma cousa. Eis aqui o seu ofício, que em tôdas as maneiras não deve ter logar nas casas onde viver a discrição, e cristandade. Porque certo é terrível tormento o que padecem, já os homens, já as mulheres, por esta maldita imaginação ; a quem com não menor propriedade houve quem chamasse víbora, porque em nascendo mata a pessoa que a engendra.

Amoesto a todo casado fuja desta peste ; e que aquilo mesmo que para si tam justamente deve de não querer, o não queira também para quem ama, ou deve de amar pelo menos.

Dizia um discreto, que o chegar um casado a dar a entender a sua mulher tinha ciúmes dela, era meio caminho andado para que ela lho merecesse ; aludindo ao que se diz vulgarmente, que a maior jornada é o sair de casa.

Assim como o direito dizem que ten deixado muitos casos para que não assinou pena, por não presumir aconteceriam no mundo ; assim o casado deve mostrar-se esquecido de tal pensamento, por não presumir lhe possa ser necessário.

Distingo porém prudentes de ciosos. A prudência precata, desvia, e assegura todos os caminhos da suspeita. Nada disto faz o ciúme ; antes para não ser um homem cioso, convém que seja prudente.

Pô-lo hei mais claro com êste exemplo. O prudente é como o capitão de um castelo, que traz pelo campo de contínuo suas espias ao longe, vigiando noite e dia seu inimigo, bem que o não tenha ; porque quando o tiver, o não possa tomar de sobressalto. Êste tal vive seguro, come com gôsto, dorme com descanso. O cioso é como outro capitão, que temendo-se de tudo o que há, e não há ; se encerra miseràvelmente em seu castelo ; o ar que corre lhe faz nojo, a fôlha que se move cuida que é assalto ; e assim sem honra, e sem proveito, cheio de mêdo e desconfiança passa a vida, ignorando o que é paz e repouso.

Aqui lembro de passo a muitos e muitas que me lerem, que quando me virem ser miúdo nas cousas e praticar cautelas que parecem escusadas, não cuidem que por nenhum modo é meu ânimo inculcar aos casados o ciúme ; antes, porque nenhum o seja, lhe proponho tantos outros meios de segurança, que de todo percam êsse receio.

¿ Quem duvída se deve muito maior agradecimento ao médico que nos dá regras para não perder a saúde, que ao que nos dá mèzinhas para que depois de perdida possamos cobrá-la ?