Carta de guia de casados/Bastardos
XXXVII
Virá aqui a propósito de filhos, isto de filhos bastardos : alfaias certo mui bem escusadas, e de não pouco embaraço aos casados ; mas que aquele que as tem, não pode mandá-las vender ao Pelourinho. É fôrça que digamos sôbre isto alguma cousa.
Os naturais, e que não devem nada à fé do matrimónio , são dignos de conservar enquanto não há legítimos. Houve tantos famosos homens no apelido de v. m. e em outros, dêste tal nascimento, que não aconselhara se esperdiçassem antes de tempo.
Com os pais, acabado me parece que o tenho ; nas mulheres à maior a dificuldade. Muitas há de tam generoso natural que agasalham com muita galantaria aos filhos de seus maridos ; outros que os não podem vêr, e os maltratam. Notável foi a fineza daquela Margarida de Valois, raínha de França (que já deixo nomeada). Estava no leito com seu marido Henrique IV, o Grande (que grande ingrato the foi !) viu que se afligia por lhe trazerem em secreto recado que estava no próprio paço real parindo do mesmo Henrique, mademoiselle de Foseuse, dama da rainha, e de el-rei. Vestiu-se Margarida, e foi assistir ao parto de sua criada, que tam mal a servia ; tratou de seu regalo, e o que é mais, de sua honra ; mandando a tôdas aquelas de quem se ajudou, que sob pena de sua desgraça, nenhuma descobrisse êste sucesso.
Se por esta receita obraram as outras mulheres, bem se lhe puderam confiar os filhos que chamam de ganância ; visto porém que não é assim, seria acôrdo criá-los sempre não só fóra de casa, mas do logar em que se vive. As filhas em conventos ; uns, e outros não sejam desamparados nunca ; que enfim soem ser filhos do amor, a quem se deve bôa correspondência ; e que por faltos de fazenda, e cheios da obrigação de seus nomes, se acham em mil aflições, que tôdas resultam em dano da honra, e da consciência de seus pais.
A Índia, e a religião costumam dar bôa acolhida a êste género de gente. Siso será destinar-lha.
Entre aqui a advertência da emenda da vida livre, e descomposta ; que se antes do casamento compreendeu alguma parte da idade do homem, tanto maior deve de ser depois o apartamento dela. Ó senhor ! que foge às vezes um lebreu que estava prêso ; quebra as cadeias, e corre sem elas ; mas lá junto à coleira vai ainda tinindo um fuzil das prisões por que estava prêso, com que ainda êle se não dá por sôlto, e livre.
Benzer, senhor, benzer como do diabo, de cousas passadas, que não debalde da linguagem das vélhas, cousas passadas, ou cousas más, é tudo o mesmo ; nem com os olhos se torne a voltar para elas, nem para vêr se ficam lá muito longe.
Com muita razão, e boníssima doutrina fingiram os poetas, que o seu Orfeu não perigára quando foi ao inferno, senão quando depois dêle fóra quisera olhar para trás. Verdadeiramente, senhor N., que essa é a última perdição : sair do mau estado, e tornar a olhar para êle