Carta de guia de casados/Govêrno da casa

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XXIX


Govêrno da casa


Ainda não falei no tráfego da casa. Isto é cousa que requer muito tento. Quisera eu as casas de um só gargalo. Muitas portas, muitas serventias, não aprovo. As casas dos reis, e príncipes tem infinitas guardas, e porteiros ; com isto se defendem de inconvenientes ; como quem põe estrepes em muro baixo.

As casas dos fidalgos particulares, que não podem ter êsses porteiros, e portarias, necessitam de alguns criados vélhos, e fieis, a quem seus amos constituam vigias, e sentinelas de seu decôro. Mas neste caso não descarregar neles todo o cuidado o marido ; porque assim como na guerra (e eu o estou aqui vendo, e ouvindo nesta torre) costumamos pôr soldados de posta ; e nem com tudo isso se contenta a disciplina militar, senão que lança roldas, e sobreroldas, e sôbre elas vão depois os oficiais a vêr, e vigiar o que fazem, e o que vigiam os soldados que vigiam ; assim nem mais, nem menos deve o senhor da casa roldar, e vigiar sôbre os criados, a quem entrega o cuidado de sua honra.

Negras, e mulatas, que saem fóra, não tivera. Soem ser fecundas, e inçam uma casa de tantas manchas (a meu vêr) como delas nascem ; porque parece feia cousa andar uma tam vil licença aos olhos da senhora, e das criadas. Negrinhas, mulatinhos filhos destas, são os mesmos diabos, ladinos, e chocarreiros, por castanhas trazem, e levam recados às môças, e são delas favorecidos. Ciganas, ermitoas, adelas, mulheres que vendem garavins, e bolotas para lenços ; outras que trazem doces, e os dão mais baratos do que valem, tudo é malíssimo. Mudas é peçonha. Lavandeiras, ramalheteiras, umas que vendem, e são freguesas, e com quem as criadas em um instante armam contas de rações, que lhes trocam, mostrando que não podem viver sem elas, são gente bem escusada. Os que adivinham, os que benzem. Os chocarreiros, e mais os dos príncipes, costumam ser atrevidos pelas entradas que lhes dão sem tento. Uns trejeitadores, outros que fazem prègações , que arremedam animais, e gentes, são peçonha refinada : e as que em tudo o são, são umas que vendem dixes, águas de rosto, tiram pano, fazem sobrancelhas com linha, alimpam o carão com vidro ; homens de linhas, bofirinheiros, mulheres que pedem para uma certa missa de esmolas, outras para amparar uma órfã.

Tudo isto, Senhor, é uma casta de gente, que ferve ao redor das casas grandes, assim como peixe, que anda à lambugem da pedra. Apartam-se com dificuldade ; sofrem-se com perigo. Seu estorvo requer tanta fôrça como indústria ; porque cada uma destas criaturas pela maior parte não cuida senão em enganar, levar, roubar, mentir, dar novas, e às vezes (e não poucas) em fazer muito ruins mensagens, e trazer outras, em dano, e descrédito das casas onde se consentem, que não seja a de v. m.

Tinha um homem principal sua filha donzela doente, guardava-a muito. Havia quem lhe quisesse bem. Escrevia-lhe : revolvia-se o papel, e sôbre êle se armava um ramalhete. Vinha uma ermitoa, falava ao pai, dava-lhe aquele ramo da parte de tal Santo ; levava-lho êle mesmo com grande gôsto e era o próprio corretor de sua filha, servindo-lhe por sua mão a peçonha dissimulada naquele ramalhete. ¿ Quem tal havia de cuidar ? Quanto por êste, bem se podia (e por muitos) dizer o que diz o Romance : El aspid anda en las flores, alerta, alerta, zagales. Tomado daquele adágio latino, que entre as ervas mimosas latia o aspid peçonhento.