Carta de guia de casados/Facilidades dos maridos
XXVIII
Há homens fáceis em mostrar a seus amigos sua mulher. E suposto que êsse costume diz simplicidade de ânimo, e é usado entre os estrangeiros ; todavía nem hoje está o mundo para que um só queira ser êsse simplíssimo, nem ainda nesses, que o costumam fazer, deixam de estar sucedendo casos, que os puderam mui bem haver feito mudar êsse costume.
Convidava (em Espanha era) um senhor principal, e bem casado a alguns amigos seus de alta condição ; quis que vissem sua mulher ; ela se escusou ; mas enfim a visitaram. Depois à mesa quis seu marido que ela também comesse, e honrasse os hóspedes : retirou-se, e sendo apertada com recados, respondeu em sua própria língua: Dicid al Duque, qui si me hizo baxilla, no me hará vianda. Mostrando com agudeza castelhana, que já que como baixela a fizera vêr, a não quisesse também facilitar como iguaria.
Que o senhor leve algumas vezes o parente, o amigo, o ministro, o prelado, e estrangeiro, e homem douto, e principalmente o homem bom, a sua casa, e lhes faça convite, não só o não estranho, mas o louvo. É cousa honrada, e que faz os homens bemquistos. Não deve evitá-lo sua mulher, antes com todo o concêrto decente dispôr que se ministre, honrando a seu marido naquela acção ; com o que os muito ásperos se obrigam ; porque os corações nobres muito mais se satisfazem de vêr que se ama o que êles amam, do que ainda de serem por si mesmos amados.
Hei-de dizer aqui de umas, que se prezam de matronas, e quer bem, quer mal, elas querem ser os senhores de suas casa. Estas pretendem sua maioria por muito honradas, por muito sabedoras, ou por muito ilustres. E às vezes sem nenhum dêstes extremos, elas se dão tal manha, que a conseguem, especialmente dos maridos bons, simples, e divertidos.
Vigie-se logo ao princípio aquele que tais pensamentos descobrisse em sua mulher ; porque se lhe vir que uma vez deixa senhorear-se, tantas o intentará, até que de todo ela seja senhora, e êle servo. Dizia um em tal caso a sua mulher : Senhora, hei vos de levar a casa de vosso pai, e hei-de demandá-lo por justiça, que me dê minha mulher ; e perguntando ela porque, respondeu êle : Porque vós não sois minha mulher, senão meu marido.
E a mim me dizia um discreto, e galante casado : que deixarem as mulheres de mandar seus maridos, era impossível ; mas que o que estava à conta dos homens honrados, era fazerem que isto fôsse o mais tarde que pudesse ser. Eu não me contentára com menos, senão que nunca fôsse ; dando mui bem por escusadas essas matronerias.
Desejei de mandar uma cadeia de ouro a uma casada, que estando chovendo, e ela para ir fóra, quando já se molhava muito bem, e lho advertiam os criados, chamou um pagem, e lhe disse : Dize a teu senhor, que me mande dizer se chove, porque me não fio dêstes, nem de mim, e escusarei de sair. Oh ! que discretíssima ignorância ! Oh ! que invenção de obediência, tanto para ser obedecida !
Parece, senhor N., que nos vamos esquecendo das cousas picantes, que dão mais contentamento, e são salsa das outras ; e de verdade não menos necessárias.