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Carta de guia de casados/Mulheres ídolos, varonis e sábias

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XXII


Mulheres ídolos, varonis, e sábias


Há umas mulheres ídolos, que ou são inutilíssimas, ou se prezam de o ser ; e só lhes parece que nasceram para ser adoradas ; e disso só querem servir. Ora eu me contento com que não façam mais de um serviço em suas casas. E seja êste. Sirva a mulher de ser senhora de sua casa, satisfaça as obrigações dêste seu ofício : que assaz fará de serviço a sua casa, a seu marido, se o fizer como deve.

Como o tomará v. m. se disser mal das varonis. Ó senhor N., eu me fundo em razão. Se eu tivesse por certo que o grande coração da mulher se houvesse sempre de ocupar bem, bem lho sofrera ; mas em dúvida tenham mêdo de um rato ; desmaiem-se em vendo espada nua ; um trovão seja para elas um dia de juízo. Criou-as Deus fracas, sejam fracas ; oxalá façam o que são obrigadas, não lhes quero pedir mais que sua obrigação.

Já sei que desta vez ficarão de todo mal tôdas comigo. Não quisera discorrer pelo seu entendimento, nem dar regras a cousa que serve de dar regra às outras cousas ; mas pois me atrevi a oferecer preceitos sôbre o amor, que é ainda afeito mais livre, não temo já de os dar para o entender.

Hei-de estranhar por fôrça um dito daquele nosso tam nomeado, e tanto para nomear, bispo D. Afonso, que dizia : A mulher que mais sabe, não passa de saber arrumar uma arca de roupa branca. Nem sentirei melhor do outro que afirmava : Que a mais sabida mulher, sabia como duas mulheres.

Sou de muito diferente opinião, e creio certo há muitas de grande juízo ; vi, e tratei algumas em Espanha, e fóra dela. Por isso mesmo me parece que a aquela sua agilidade no perceber, e discorrer, em que nos fazem vantagens, é necessário temperá-la com grande cautela.

A êste seu juízo não se pode pôr lei alguma ; aos exercícios sim. Como se agora a um homem fôsse dada uma navalha de finíssimo aço, para que fizesse um feito ruim ; mas estando ela ainda em tôsco, aquele que lhe escondesse a pedra em que a queria afiar, fizera o mesmo que se lha tirasse da mão, e escusasse o malefício. Assim, pois não nos é lícito privarmos as mulheres do subtilíssimo metal de entendimento, com que as forjou a natureza ; podemos, sequer, desviar-lhe as ocasiões de que o agucem em seu perigo, e nosso dano. Façamos nós. senhor N., o que podemos.

Nos cuidados, e empregos dos homens não se metam as mulheres, fiadas em que também tem como nós entendimentos, e em que a alma não é macho, nem fêmea, como alguma em seu favor alegava. Mas saibam os maridos que nem por esta taxa, que lhes ponho, é justo que a mulher sisuda deixe de dar a seu marido modestamente seu parecer ; nem deixa êle de ser obrigado a lho pedir.

Não cuide v. m. que me contradigo, ou arrependo do que tenho escrito ; declaro-me com um bom semelhante. Seja a mulher como a mão do relógio, e o marido seja o relógio. Aponte ela, e soe êle. Um mostre, outro resolva ; que andando desta maneira temperado o relógio, todos o crêem, todos o tem por oráculo. Não só se concerta a si mesmo, mas faz andar aos outros concertados. E ao contrário, se se desconcerta, também aos outros.

Oh ! como folgo de vêr uma mulher ignorar aquilo que não é razão saber ! mas que verdadeiramente o saiba. Acho grande perfeição quando erram aquelas cousas que lhes podiam pôr imperfeição, se as acertassem.

Entenda a mulher como mulher ; seja tal sua lição quando lêr ; sua prática quando praticar ; e tal o mesmo que se lhe lêr, e que se lhe praticar.

Pois comecei com os meus adágios, hei-de acabar com êles. Ouvi um dia caminhando, e não era êle menos que a um chapado recoveiro (veja v. m. que enjeitei os filósofos, para citar êstes autores) enfim ouvi-lhe, que Deus o guardasse de mula que faz him, e de mulher que sabe latim. O riso, e gôsto com que lhe escutei esta engraçada sentença me faz agora lembrar dela ; não se julgue por indecente, se é proveitosa. O ponto está em que o latim não é o que dana ; mas o que consigo traz de outros saberetes envolto aquele saber.

Já que estou ao fogo, e como desde êste logar falo a v. m., e v. m. me ouve, e me perdôa, irá outra não pior história. Confessava-se uma mulher honrada a um frade vélho, e rabujento ; e como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor : ¿ Sabeis latim ? Disse-lhe : Padre, criei-me em mosteiro. Tornou-lhe a perguntar : ¿ Que estado tendes ? Respondeu-lhe : Casada. A que tornou : ¿ Onde está vosso marido ? Na Índia, meu Padre (disse ela). Então com agudeza repetiu o vélho: Tende mão, filha : ¿ sabeís latim, criastes-vos em mosteiro, tendes marido na Índia ? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é fôrça que tragais muito que dizer, e eu estou hoje muito de-pressa.

Tomára que as mulheres não soubessem de guerras, nem estados, nem procurassem por isso. Enfadam-me umas que se metem em eleições de governos, julgar de brigas, praticar desafios, mover demandas. Outras que se prezam de entender versos, abocanham em linguagens alheias, tratam questões de amor, e de fineza, decoram perguntas para gentes discretas, trazem memorial de motes dificultosos. Umas que dão significação às ervas, que adivinham as côres, outras que as tem de sua tenção ; outras que examinam prêgações, que lhes tomam palavras ; outras que as usam esquisitas, e falam por circunlóquios, que tem modos de gabar fóra do uso, que praticam ao som do meneio das mãos, ou do movimento dos olhos. Fóra, fóra tudo isto, que parece ficção, e nem verdadeiro, nem fingido é bem que seja. Não me tenha v. m. por maldizente ; mais vale que por proluxo. Mas em verdade, que tudo o que aponto é digno de ser lembrado.

Pedia uma dama a um seu irmão, homem discreto, que lhe desse uma letra para certa empresa sua, que queria mandar abrir em um sinete ; respondeu-lhe : Minha irmã, deixai as empresas para as adargas dos cavaleiros andantes ; as empresas, que haveis de mandar abrir, sejam chavões para fazerdes bolos a vosso marido quando o tiverdes.