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Carta de guia de casados/Pièguices paternais com os filhos

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XXXV


Pièguices paternais com os filhos


Passo a estranhá-lo também para com os filhos. Vi um dia a um grande general rodeado de muitos homens grandes, que o seguiam, abrir o corro de todos, e lançar a correr por receber um filhinho seu que o vinha buscar, e beijá-lo em presença daquele concurso, que todo se estava olhando, e admirando, de que uma tam grave pessoa pudesse tam pouco consigo. Digo a v. m., senhor N., que se poder tivera, lhe tirára logo o ofício, porque o ânimo dos homens não se vê quando resistem àqueles efeitos, que aborrecem, senão quando vencem aqueles que amam. Dirão a isto os pais, que os que o não são, não podem dar regras a seu amor. Êles dirão o que quiseram ; mas eu não direi outra cousa. E todos sabem que muito melhor conhece os lanços do jôgo aquele que o vê, que aquele que o joga.

Ora, pois falamos em filhos, acabemos o que há que dizer àcêrca dêles.

Desejá-los é tam justo, como merecê-los. Mas não obrigue êste desejo a fazer demasias. Nos moços deve de hever uma bôa confiança. E já que nos servimos dos ditados, não vem aqui mal para escusar mais leitura, aquilo que se diz : A Deus rogando, etc. Escuso-me de acabar o adágio, porque de todos é sabido.

Mèzinhas, caldas, devoções, frades que benzem, freira que toca, físicos estrangeiros, quintas essências, bebidas desusadas, emprastos desconhecidos ; de tudo isto livre Deus a v. m. Muito faz aqui a hombridade ; muito mais a cristandade. Pôr nas mãos de Deus ; tomar delas o que vier ; que sempre é mais a propósito que nossos desejos.

Ora os filhos nascidos. Guarda de contar graças, nem estremecer sôbre êles. Tudo isto os faz malcriados, e aos pais é de pouca opinião. As mães querem que os maridos os tragam, e folguem com êles ; quando v. m. caia nesta venialidade, seja a modo de ofícios em Igreja interdita, quero dizer a portas fechadas. Não é cousa pertencente a um homem ser ama, nem berço de seus filhos.

Fazer-lhes aqueles seus momos, falar-lhes naquela sua linguagem, tudo é indecente. Basta que os veja, e ame, e lhes procure todo o regalo, e bôa criação. Essas outras figurarias são próprias das mães, a quem se não há-de tomar em nada o modo, nem o ofício.

Bofé que me lembrou agora uma cousa que me não há-de ficar no tinteiro, mas que todo não venha a propósito. Tinha um ministro muito lisonjeado um certo filhinho seu, que costumava vir a um aposento cheio de grandes pretendentes. Havia entre êles um muito grande nos anos, na pessoa, e no estado ; e mais que tudo nos interesses. Era êste o que mais praticava com a criaturinha, e tais cousas lhe fazia fazer o espírito mau da lisonja, e adulação que trazia no corpo, que dizia outro pretendente por êle : Certo, muito é que o interêsse faça mais parvo a fulano com os filhos alheios, do que o amor nos faz a nós com os nossos.

Vá mais por jôgo, que por conselho. Quando, senhor N., Deus der filhas a v. m., não lhes consinta mais que um só nome liso, aquele que lhe ditar a devoção, ou obrigação. Tenho por grande leviandade esta ladainha de nomes (dissera melhor carta de nomes) que hoje se usa, pondo em camouço uns sôbre outros, deixando os de mais barafunda para o cabo. Deram as mulheres nesta nova casta de damaria ; e acontece que a que nasceu, e se criou mera Domingas, ou Francisca, lança sôbre si meia dúzia de Jacintas, Leocádias, Micaelas, Hipólitas, e outros nomes esdrúxulos, só porque viram chamarem-se assim, pouco mais, ou menos, a suas vizinhas.

Acho graça nesta história. Fôra a baptizar em um logar desta minha vizinhança a filha de um escudeiro ; e porque ouviu que a outra de um título tinha sua mãe mandado pôr na pia três nomes ; como a êle lhe custava barata a grandeza, içou um furo mais à vaidade, e mandou baptizar a menina com quatro nomes. Ouviu-os todos o cura, e disse aos padrinhos : Senhores, escolham um só nome, que sou fraco de memória ; ou juro a tal que lha baptize sem nome, ou lha mande para casa como veio, até que lá se resolvam no que melhor lhes parecer.

Parece que me ia esquecendo de uma cousa que julgo digna de advertência, e para que pode ser que fôsse advertido de quem sabe que escrevo êste papel. Costuma haver excesso nos maridos por dous modos, quando suas mulheres se acham naquela hora do parto. Uns que as servem, e assistem melhor que as próprias comadres ; outros que como inimigos fogem delas. Dizia um dêstes com travessura, que, se casasse, não havia de ser senão em julho. E sendo perguntado porque ? respondeu : Porque se fôr tam mofino que minha mulher haja de parir, seja em março ; e possa eu achar embarcação para a Índia, onde me irei antes que vê-la em estado. A bôa, ou não bôa vontade que se tem à mulher, dará aqui o melhor conselho. Também o natural do marido puxará muito por êle. Não reprovo aqueles que tudo querem ser naqueles casos ; reprovo os que não querem ser nada. O saír de casa é repreensível, porque pode haver mil sucessos para que sejam necessários. Bastará estar cada um no seu aposento, e receber nêle com igual constância as ruins, ou alegres novas.

Hei-de alegrar tamalavez esta matéria com um dito de certo senhor castelhano. Era general, e lhe pediu um seu capitão licença por escrito para se ir achar em casa ao nascimento de um filho. Pôs-lhe por despacho : Al tener el hijo quisiera yo hallarme en mi casa ; que al nascer, poco importa.