Carta de guia de casados/Preâmbulo
Em meio estou, senhor N., daquelas duas cousas mais poderosas com os homens : Amor, e obediência. Amo a v. m. Manda-me v. m. E suposto que me manda uma cousa bem dificultosa ; a obediência, e o amor, que já fizeram impossíveis não se negarão hoje a vencer dificuldades.
Diz-me v. m. que se casa, e que lhe dê eu, para se governar nesse seu novo estado, alguns bons conselhos. Esta é uma das cousas de que eu cuido que falta mais quem a peça, que quem a dê.
Pois por certo que aquele que deseja bons conselhos, já parece que dêles não necessita ; porque é tam grande prudência pedir conselho, que do homem que o sabe pedir, crerei que nenhum lhe fará falta.
O primeiro que aconselharei a v. m. será que se não fie em nada só do meu voto : pois suposto que em mim possa haver vontade para o bem servir, pode ser que nem por isso haja entendimento para o bem aconselhar ; porque entendimento, e vontade ainda se ajuntam menos vezes, que a honra, e o proveito : e ela, com que seja potência poderosa, nem sempre guia ao acêrto, se lhe faltam olhos de suficiência.
Grandes cousas deixou escrito a antiguidade, para advertência dos casados. Muitas são, e graves são ; a que também os modernos acrescentaram outras, ou nos puseram em outras palavras as antigas.
Mas nós aqui, senhor N., nos havemos de entender ambos em prática como do lar, a cujo abrigo, nestas longas noites de janeiro, vou escrevendo a v. m. estas regras em estilo alegre, e fácil, qual requer o estado, e idade de v. m., bem que tam diverso do meu humor, e de minha fortuna.
Darão licença os Sénecas, Aristóteles, Plutarcos, e Platões ; nem ficaremos mal com as Pórcias, Casandras, Zenóbias e Lucrécias ; tudo tam desenrolado nestas doutrinas ; porque sem seus ditos dêles, e sem seus feitos delas, espero nos faça Deus mercê de que atinemos com o que v. m. deseja de ouvir, e eu procuro dizer-lhe.
Não sou já mancebo. Criei-me em Côrtes ; andei por êsse mundo : atentava para as cousas ; guardava-as na memória. Vi, li, ouvi. Êstes serão os textos, êstes os livros, que citarei a v. m., neste papel ; onde juntas algumas histórias, que me fôrem lembrando, pode mui bem ser não sejam agora menos úteis que essa máquina de gregos, e romanos, de que os que chamamos doutos, para cada cousa nos fazem prato, que às vezes nos enfastia.
Ora assentamos que qualquer mudança causa estranheza. Mudar de umas casas a outras é em alguma maneira esquivo. Segue-se logo que não se mudará a vida sem algum receio.
Porque se perca, imagine v. m. que para êste estado nasceu, e o criaram seus pais. Êste foi o que v. m. sabia o estava esperando. Êste lhe é próprio, o outro alheio. Ninguém se queixa de haver chegado ao fim de seu caminho.
Considere que aqui não padece alguma fôrça sua liberdade ; antes, assim como aquele que sobe açodado por uma escada ingreme, quantos mais são os degraus, mais deseja de achar um mainel em que descanse ; assim também, subindo o homem pela escada da vida, quantos mais são os anos, quanto mais soltamente os vai vivendo, tanto lhe é mais necessário o repouso de um honrado casamento ; que já por essa razão lhe chamamos estado, por ser não só fim, mas também descanso.
Tem v. m. subido, se não muitos degraus, digo, se não tem vivido muitos anos, vivido tem aqueles que bastem ; e ainda mal porque a tal curso, que bem pode já dar o descanso a que chega, por chegado ao melhor tempo.
Paga o filho a seu pai, em se casar, aqueles benefícios que recebeu dêle. Pois se seu pai não casára, o filho não fôra. Vão assim os homens contribuindo uns aos outros ; e todos à memória dos que lhes deram ser, a que, depois de Deus, somos mais obrigados que a tudo o mais.