Cartas Chilenas/II
- Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo, para chamar a si todos os negócios.
As brilhantes estrelas já caíam
E a vez terceira os galos já cantavam,
Quando, prezado amigo, punha o selo
Na volumosa carta, em que te conto
Do nosso imortal chefe a grande entrada;
E refletindo, então, ser quase dia,
A despir-me começo, com tal ânsia,
Que entendo que inda estava o lacre quente
Quando eu já, sobre os membros fatigados,
Cuidadoso, estendia a grosa manta.
Não cuides, Doroteu, que brandas penas
Me formam o colchão macio e fofo;
Não cuides que é de paina a minha fronha
E que tenho lençóis de fina holanda,
Com largas rendas sobre os crespos folhos.
Custosos pavilhões, dourados leitos
E colchas matizadas, não se encontram
Na casa mal provida de um poeta,
Aonde, há dias que o rapaz que serve
Nem na suja cozinha acende o fogo.
Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,
Descanso mais contente, do que dorme
Aquele, que só põe o seu cuidado
Em deixar a seus filhos o tesouro
Que ajunta, Doroteu, com meio avara,
Furtando ao rico e não pagando ao pobre.
Aqui... mas onde vou, prezado amigo?
Deixemos episódios, que não servem
E vamos prosseguindo a nossa história.
Fui deitar-me ligeiro, como disse,
E mal estendo nos lençóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho
E pelos dedos rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono,
Conselho que me deram sábias velhas
já, meu bom Doroteu, o sono vinha:
Umas vezes dormindo, ressonava,
Outras vezes, rezando, inda bulia
Com os devotos beiços, quando sinto
Passar um carro, que me abala o leito.
Assustado desperto, os olhos abro
E, conhecendo a causa que me acorda,
Um tanto impaciente o corpo viro,
Fecho os olhos de novo e cruzo os braços
Para ver se outra vez me torna o sono
Segunda vez o sono já tornava
Quando o estrondo percebo de outro carro;
Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
Outra vez me agasalho, mas que importa?
Já soam dos soldados grossos berros,
Já tinem as cadeias dos forçados,
Já chiam os guindastes, já me atroam
Os golpes dos machados e martelos
E, ao pé de tanta bulha, já não posso
Mais esperança ter de algum sossego.
Salto fora da cama, acendo a vela,
À banca vou sentar-me exasperado,
E, por ver se entretenho as longas horas,
Aparo a minha pena, o papel dobro
E com mão, que ainda treme de cansada,
Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.
Só sei que o que te escrevo são verdades
E que vêem muito bem ao nosso caso.
Apenas, Doroteu, o nosso chefe
As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
Trocou o cetro de ouro em mão de ferro.
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
Assentos declarados, se abram logo
Em nome dele, chefe, os seus assentos.
Aquele, Doroteu, que não é santo,
Mas quer fingir-se santo aos outros homens
Pratica muito mais, do que pratica
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
Mal se põe nas igrejas, de joelhos,
Abre os braços em cruz, a terra beija,
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,
Faz que chora, suspira, fere o peito,
E executa outras muitas macaquices
Estando em parte onde o mundo as veja.
Assim o nosso chefe, que procura
Mostrar-se compassivo, não descansa
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.
Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime
Dos soldados, que furtam aos soldados,
E sabes muito bem que pena incorram
Aqueles que viciam ouro e prata.
Agora, Doroteu, atende o como
Castiga o nosso chefe em um sujeito
Estes graves delitos, que reputa
Ainda menos do que leves faltas.
Apanha um militar aos camaradas
Do solo uma porção. Astuto e destro,
Para não se sentir o grave furto,
Mistura nos embrulhos, que lhes deixa,
Igual quantia de metal diverso.
Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto,
Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,
Que este Hércules não cinge a grossa pele,
Nem traz na mão robusta a forte clava,
Para guerra fazer aos torpes Cacos.
Já leste, Doroteu, a D. Quixote?
Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;
Mas diverso nos fins, que o doido Mancha
Forceja por vencer os maus gigantes
Que ao mundo são molestos e este chefe
Forceja por suster, no seu distrito,
Aqueles que se mostram mais velhacos.
Não pune, doce amigo, como deve,
Das sacrossantas leis a grave ofensa;
Antes, benigno, manda ao bom Matúsio
Que do seu ouro próprio se ressarça
Aos aflitos roubados toda a perda.
Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas e socorre,
Para que honradas sejam, as donzelas,
Porém não paga furtos, porque fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.
Envia, Doroteu, vizinho chefe
Ao nosso grande chefe outro soldado
Por vários crimes convencido e preso.
Lança-se o tal soldado, de joelhos
Aos pés do seu herói, suspira e treme,
Não nega que ferira e que matara,
Mas pede que lhe valha a mão piedosa
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes
Divulgados estão e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo
Manda tirar os ferros dos seus braços
a-lhe um salvo-conduto, com que possa,
Contanto que na terra não se saiba,
fazer impunemente insultos novos.
Caminha, Doroteu, à força um negro
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
o seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
Que o sábio rei usou, por motu-próprio,
Do mais alto poder que tem o cetro.
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande – El-Rei – impresso, quanto vale
Em Chile, um – Como pede – e o seu garrancho.
Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos
E os vassalos não têm poder supremo.
O mesmo grande Jove, que modera
O mar, a terra e o céu, não pode tudo,
Que ao justo só, se estende o seu império.
O povo, Doroteu, é como as moscas
Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel, é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alivio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
Ao pé de alguma ermida a fonte santa,
Que a fama logo corre e todo o povo
Concebe que ela cura as graves queixas.
Pois desta sorte entende o néscio vulgo
Que o nosso general lugar-tenente,
Em todos os delitos e demandas,
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
Todos buscam ao chefe e todos querem,
Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca, mais a veste
E de vários molambos mal se cobre;
Este deixa crescer a ruça barba,
Com palhas de alhos se defuma aquele;
Qual as pernas emplastra e move o corpo
Metendo nos sobacos as muletas;
Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.
Já foste, Doroteu, a um convento
De padres franciscanos, quando chegam
As horas de jantar? Passaste, acaso
Por sítio em que morreu mineiro rico,
Quando da casa sai pomposo enterro?
Pois eis aqui, amigo, bem pintada
A porta, mais a rua deste chefe
Nos dias de audiência. Oh! quem pudera
Nestes dias meter-se um breve instante,
A ver o que ali vai na grande sala!
Escusavas de ler os entremezes
Em que os sábios poetas introduzem,
Por interlocutores, chefes asnos.
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde esta criminoso, por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos,juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença
Em que toda a fazenda lhe tiraram;
Um quer que o devedor lhe pague logo;
Outro, para pagar, pertende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem
Demandas conservar; por serem pobres
E grandes as despesas, que se fazem
Nas casas dos letrados e cartórios.
Então o grande chefe, sem demora,
Decide os casos todos que lhe ocorrem
Ou sejam de moral, ou de direito,
Ou pertençam, também, à medicina,
Sem botar, (que ainda é mais), abaixo um livro
Da sua sempre virgem livraria.
Lá vai uma sentença revogada
Que já pudera ter cabelos brancos;
Lá se manda que entreguem os ausentes
Os bens ao sucessor, que não lhes mostra
Sentença que lhe julgue a grossa herança.
A muitos, de palavra, se decreta
Que em pedir os seus bens, não mais prossigam;
A outros se concedem breves horas
Para pagarem somas que não devem.
Ah! tu, meu Senhor Pança, tu que foste
Da Baratária o chefe, não lavraste
Nem uma-só sentença tão discreta!
E que queres, amigo, que suceda?
Esperavas, acaso, um bom governo
Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste
Em trajes de casquilho, nessa corte?
E pode, meu amigo, de um peralta
Formar-se, de repente, um homem sério?
Carece, Doroteu, qualquer ministro
Apertados estudos, mil exames,
E pode ser o chefe onipotente
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo?
Ungiu-se, para rei do povo eleito,
A Saul, o mais santo que Deus via.
Prevaricou Saul, prevaricaram,
No governo dos povos, outros justos.
E há-de bem governar remotas terras
Aquele que não deu, em toda vida
Um exemplo de amor à sã virtude?
As letras, a justiça, a temperança
Não são, não são morgados que fizesse
A sábia natureza, para andarem.
Por sucessão nos filhos dos fidalgos.
Do cavalo andaluz, é, sim, provável
Nascer, também, um potro de esperança,
Que tenha frente aberta, largos peitos,
Que tenha alegres olhos e compridos,
Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;
Porém de um bom ginete também pode
Um catralvo nascer, nascer um zarco.
Aquele mesmo potro, que tem todos
Os formosos sinais, que aponta o Rego,
Carece, Doroteu, correr em roda
No grande picadeiro muitos meses,
Para um e outro lado, necessita
Que o destro picador lhe ponha a sela
E que, montando nele, pouco a pouco,
O faça obedecer ao leve toque
Do duro cabeção, da branda rédea.
Dos mesmos, Doroteu... porém já toca.
Ao almoço a garrida da cadeia
Vou ver se dormir posso, enquanto duram
Estes breves instantes de sossego,
Que, sem barriga farta e sem descanso,
Não se pode escrever tão longa história.