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Cartas Chilenas/III

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Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!

Assopra o vento sul, e densa nuvem

Os horizontes cobre; a grossa chuva,

Caindo das biqueiras dos telhados

Forma regatos, que os portais inundam.

Rompem os ares colubrinas fachas

De fogo devorante e ao longe soa,

De compridos trovões, o baixo estrondo.

Agora, Doroteu, ninguém passeia,

Todos em casa estão, e todos buscam

Divertir a tristeza, que nos peitos

Infunde a tarde, mais que a noite feia.

O velho Altimidonte, certamente,

Tem postas nos narizes as cangalhas

E revolvendo os grandes, grossos livros.

C'os dedos inda sujos de tabaco,

Ajunta ao mau processo muitas folhas

De vãs autoridades carregadas.

O nosso bom Dirceu, talvez que esteja.

Com os pés escondidos no capacho,

Metido no capote, a ler gostoso

O seu Vergílio o seu Camões e Tasso.

O termo Floridoro, a estas horas,

No mole espreguiceiro se reclina

A ver brincar, alegres, os filhinhos,

Um já montado na comprida cana

E outro pendurado no pescoço

Da mãe formosa, que risonho abraça.

O gordo Josefino está deitado,

Nada lhe importa, nem do mundo sabe,

Ao som do vento, dos trovoes e chuva,

Como em noite tranqüila, dorme e ronca;

O nosso Damião, enfim, abana

Ao lento fogo com que, sábio, tira

Os úteis sais da terra e o teu Critilo,

Que não encontra, aqui, com quem murmure,

Quando so murmurar lhe pede o gênio,

Pega na pena e desta sorte voa,

De cá, tão longe, a murmurar contigo.

Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,

Apenas principia a governar-nos,

Nos pertende mostrar que tem um peito

Muito mais terno e brando, do que pedem

Os severos ofícios do seu cargo.

Agora, cuidarás, prezado amigo,

Que as chaves das cadeias já não abrem,

Comidas da ferrugem ? Que as algemas,

Como trastes inúteis, se furtaram?

Que o torpe executor das graves penas

Liberdade ganhou ? Que já não temos

Descalços guardiães, que à fonte levem,

Metidos nas correntes, os forçados?

Assim, prezado amigo, assim devia

Em Chile acontecer, se o nosso chefe

Tivesse, em governar, algum sistema.

Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios

As folhas dos olmeiros se comparam:

São como o leve fumo, que se move

Para partes diversas, mal os ventos

Começam a apontar, de partes várias.

Ora, pois, doce amigo, atende o como

No seu contrário vicio, degenera

A falsa compaixão do nosso chefe,

Qual o sereno mar, que, num instante,

As ondas sobre as ondas encapela.

Pertende, Doroteu, o nosso chefe

Erguer uma cadeia majestosa,

Que possa escurecer a velha fama

Da torre de Babel e mais dos grandes,

Custosos edifícios que fizeram,

Para sepulcros seus, os reis do Egito.

Talvez, prezado amigo, que imagine

Que neste monumento se conserve

Eterna, a sua glória, bem que os povos

Ingratos não consagrem ricos bustos

Nem montadas estátuas ao seu nome.

Desiste, louco chefe, dessa empresa:

Um soberbo edifício levantado

Sobre ossos de inocentes, construído

Com lágrimas dos pobres, nunca serve

De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.

Desenha o nosso chefe, sobre a banca,

Desta forte cadeia o grande risco,

A proporção do gênio e não das forças

Da terra decadente, aonde habita.

Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te

Ao menos o formoso frontispício.

Verás se pede máquina tamanha

Humilde povoado, aonde os grandes

Moram em casas de madeira a pique.

Em cima de espaçosa escadaria

Se forma do edifício a nobre entrada

Por dois soberbos arcos dividida;

Por fora destes arcos se levantam

Três jônicas colunas, que se firmam

Sobre quadradas bases e se adornam

De lindos capitéis, aonde assenta

Uma formosa, regular varanda;

Seus balaústres são das alvas pedras

Que brandos ferros cortam sem trabalho.

Debaixo da cornija, ou projetura,

Estão as armas deste reino abertas

No liso centro de vistosa tarja.

Do meio desta frente sobe a torre

E pegam desta frente, para os lados,

Vistosas galerias de janelas

A quem enfeitam as douradas grades.

E sabes, Doroteu, quem edifica

Esta grande cadeia? Não, não sabes.

Pois ouve, que eu t’o digo: um pobre chefe

Que, na corte, habitou em umas casas

Em que já nem abriam as janelas.

E sabes para quem? Também não sabes.

Pois eu também t’o digo: para uns negros

Que vivem, (quando muito), em vis cabanas,

Fugidos dos senhores, lá nos matos.

Eis aqui, Doroteu, ao que se pode

Muito bem aplicar aquela mofa

Que faz o nosso mestre, quando pinta

Um monstro meio peixe e meio dama.

Na sabia proporção é que consiste

A boa perfeição das nossas obras.

Não pede, Doroteu, a pobre aldeia

Os soberbos palácios, nem a corte

Pode, também, sofrer as toscas choças.

Para haver de suprir o nosso chefe

Das obras meditadas as despesas,

Consome do senado os rendimentos

E passa a maltratar ao triste povo,

Com estas nunca usadas violências:

Quer cópia de forçados que trabalhem

Sem outro algum jornal, mais que o sustento

E manda a um bom cabo que lhe traga

A quantos quilombotas se apanharem

Em duras gargalheiras. Voa o cabo,

Agarra a um e outro e num instante

Enche a cadeia de alentados negros.

Não se contenta o cabo com trazer-lhe

Os negros que têm culpas, prende e manda

Também, nas grandes levas, os escravos

Que não têm mais delitos que fugirem

Às fomes e aos castigos, que padecem

No poder de senhores desumanos.

Ao bando dos cativos se acrescentam

Muitos pretos já livres e outros homens

Da raça do país e da européia

Que, diz ao grande chefe, são vadios

Que perturbam dos povos o sossego.

Não há, meu Doroteu, quem não se molde

Aos gestos e aos costumes dos maiores.

Brincando, os inocentes os imitam,

Se as tropas se exercitam, eles fingem

As hórridas batalhas. Se se fazem

Devotas procissões, também carregam

Aos ombros os andores e as charolas.

Os mesmos magistrados se revestem

Do gênio e das paixões de quem governa.

Se o rei é piedoso, são benignos

Os severos ministros, se é tirano

Mostram os pios corações de feras.

Por isso, Doroteu, um chefe indigno

É muito e muito mau, porque ele pode

A virtude estragar de um vasto império.

Os nossos comandantes, que conhecem

A vontade do chefe, também querem

Imitar deste cabo o ardente zelo.

Enviam para as pedras os vadios

Que. na forma das ordens, mandar devem

Habitar em desterro novas terras.

Ora, pois, doce amigo, já que falo

Nos nossos comandantes, será justo

Que te dê destes bichos uma idéia.

A gente, Doroteu, que não se alista

Nas tropas regulares forma corpos

De bisonha ordenança. Não há terra

Sem ter um corpo destes. Os seus chefes

Ao capitão maior estão sujeitos,

E são os que se chamam comandantes,

Porque as partes comandam destes terços.

Estes famosos chefes, quase sempre

Da classe dos tendeiros são tirados.

Alguns, inda depois de grandes homens,

Se lhe faltam os negros, a quem deixam

O governo das vendas, não entendem

Que infamam as bengalas, quando pesam

A libra de toucinho e quando medem

O frasco de cachaça. Agora atende,

Verás que desta escória se levanta

De magistrados uma nova classe.

Aos ricos taverneiros, disfarçados

Em ar de comandantes, manda o chefe

Que tratem da polícia e que não deixem

Viver, nos seus distritos, as pessoas

Que forem revoltosas. Quer que façam

A todos os vadios uns sumários

E que, sem mais processos, os remetam

Para remotas partes, sem que destas

Jurídicas sentenças, se faculte

Algum recurso para mor alçada.

Já viste, Doroteu, um tal desmancho?

As santas leis do reino não concedem

Ao magistrado régio, que execute,

No crime, o seu julgado e o nosso chefe

Quer que dêem as sentenças sem apelo

Incultos comandantes, que nem sabem

Fazer um bom diário do que vendem!

Concedo, caro amigo, que estes homens

São uns grandes consultos, que meteram

Os corpos do direito nos seus cascos.

Ainda assim pergunto: e como pode

O chefe conceder-lhes esta alçada ?

Ignora a lei do reino, que numera

Entre os direitos próprios dos augustos

A criação dos novos magistrados?

O grande Salomão lamenta o povo

Que sobre o trono tem um rei menino;

Eu lamento a conquista a quem governa

Um chefe tão soberbo e tão estulto

Que, tendo já na testa brancas repas,

Não sabe, ainda, que nasceu vassalo.

Os néscios comandantes e o bom cabo,

Que fez o nosso herói geral meirinho,

Remetem, nas correntes, povo imenso.

Parece, Doroteu, que temos guerras;

Que, para recrutar as companhias,

De toda a parte vêm chorosas levas.

Aqui, prezado amigo, principia

Esta triste tragédia, sim, prepara,

Prepara o branco lenço, pois não podes

Ouvir o resto, sem banhar o rosto

Com grossos rios de salgado pranto.

Nas levas, Doroteu, não vêm somente

Os culpados vadios; vem aquele

Que a dívida pediu ao comandante;

Vem aquele, que pôs impuros olhos

Na sua mocetona e vem o pobre,

Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,

Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.

Estes tristes, mal chegam, são julgados

Pelo benigno chefe a cem açoites.

Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino

Só mandam que se açoitem com a sola

Aqueles agressores, que estiverem.

Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.

Tu também não ignoras que os açoites

Só se dão, por desprezo, nas espáduas,

Que açoitar, Doroteu, em outra parte

Só pertence aos senhores, quando punem

Os caseiros delitos dos escravos.

Pois todo este direito se pretere:

No pelourinho a escada já se assenta,

Já se ligam dos réus os pés e os braços,

Já se descem calções e se levantam

Das imundas camisas rotas fraldas,

Já pegam dois verdugos nos zorragues,

Já descarregam golpes desumanos,

Já soam os gemidos e respingam

Miúdas gotas de pisado sangue.

Uns gritam que são livres, outros clamam

Que as sábias leis do rei os julgam brancos,

Este diz que não tem algum delito

Que tal rigor mereça, aquele pede

Do justo acusador, ao céu, vingança.

Não afrouxam os braços os verdugos,

Mas, antes, com tais queixas, se duplica

A raiva nos tiranos, qual o fogo

.Que aos assopros dos ventos ergue a chama

Às vezes, Doroteu, se perde a conta

Dos cem açoites, que no meio estava,

Mas outra nova conta se começa.

Os pobres miseráveis já nem gritam.

Cansados de gritar, apenas soltam

Alguns fracos suspiros, que enternecem.

Que é isso, Doroteu, tu já retiras

Os olhos do papel? Tu já desmaias?

Já sentes as moções, que alheios males

Costumam infundir nas almas ternas?

Pois és, prezado amigo, muito fraco,

Aprende a ter o valor do nosso chefe

Que à janela se pôs e a tudo assiste

Sem voltar o semblante para a ilharga.

E pode ser, amigo, que não tenha

Esforço, para ver correr o sangue,

Que em defesa do trono se derrama.

Aos pobres açoitados manda o chefe

Que, presos nas correntes dos forçados,

Vão juntos trabalhar. Então se entregam

Ao famoso tenente, que os governa

Como sábio inspetor das grandes obras.

Aqui, prezado amigo, principiam

Os seus duros trabalhos. Eu quisera

Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,

Mas tu, prezado amigo, tens o peito,

Dos males que já leste, magoado,

Por isto é justo que suspenda a história,

Enquanto o tempo não te cura a chaga.