Cartas Chilenas/IV

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Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, que, tomando

Entre dentes alguém, enquanto encontra

Matéria em que discorra, não descansa.

Agora, Doroteu, mandou dizer-me

O nosso amigo Alceu, que me embrulhasse

No pardo casacão, ou no capote

E que, pondo o casquete na cabeça,

Fosse ao sítio Covão, jantar com ele.

Eu bem sei, Doroteu, que tinha sopa

Com ave e com presunto, sei que tinha

De mamota vitela um gordo quarto,

Que tinha fricassés, que tinha massas,

Bom vinho de Canárias, finos doces

E, de mimosas frutas, muitos pratos.

Porém que importa, amigo, perdi tudo

Só para te escrever mais uma carta.

Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, pois o priva

De encher o seu bandulho, pelo gosto

De fazer quatro versos, que bem podem

Ganhar-lhe uma maçada, que só serve

De dano ao corpo, sem proveito d'alma.

A carta, Doroteu, a longa carta

Que descreve a cadeia, finaliza

No ponto de que os presos se remetem

Ao severo tenente, que preside,

Como sábio inspetor, às grandes obras.

Agora prossigamos nesta história

E demos-lhe o principio, por tirarmos

Ao famoso inspetor, ao grão tenente,

Com cores delicadas, uma cópia.

É de marca maior que a mediana,

Mas não passa a gigante, tem uns ombros

Que o pescoço algum tanto lhe sufocam.

O seu cachaço é gordo, o ventre inchado,

A cara circular, os olhos fundos,

De gênio soberbão, grosseiro trato,

Assopra de contínuo e fala muito.

Preza-se de fidalgo e não se lembra

Que seu pai foi um pobre, que vivia

De cobrar dos contratos os dinheiros,

De que ficou devendo grandes somas,

Sinal de que ele foi um bom velhaco.

O filho, Doroteu, tomou-lhe as manhas:

Era um triste pingante, que só tinha

O seu pequeno soldo, agora veio

Para inspetor das obras e já ronca,

Já empresta dinheiros, já tem casas,

Já tem trastes de custo e ricos móveis,

Mas logo, Doroteu, verás o como.

Mal o duro inspetor recebe os presos

Vão todos para as obras; alguns abrem

Os fundos alicerces, outros quebram,

Com ferros e com fogo, as pedras grossas.

Aqui, prezado amigo, não se atende

Às forças nem aos anos. Mão robusta

De atrevido soldado move o relho,

Que a todos, igualmente, faz ligeiros.

Aqui se não concede de descanso

Aquele mesmo dia, o grande dia

Em que Deus descansou e em que nos manda

Façamos obras santas, sem que demos,

Aos jumentos e bois, algum trabalho.

Tu sabes, Doroteu, que um tal serviço

Por uma civil morte se reputa.

Que peito, Doroteu, que duro peito

Não Quedeve ter um chefe, que atormenta

A tantos inocentes por capricho?

Que se arrisque o vassalo na campanha,

É uma digna ação que a pátria exige,

Nem este grande risco nos estraga

O pundonor, que vale mais que a vida;

Antes nos abre as portas, para entrarmos

Nos templos do heroísmo. Sim, nós temos,

Nós temos mil exemplos. Muitos, muitos

Que. há séculos, morreram pela pátria,

Na memória dos homens inda vivem.

Mas arriscar vassalos inocentes

Às pedras que se soltam dos guindastes

E aos montes de piçarra que desabam

Nos fundos alicerces, sem vencerem,

Nem como jornaleiros tênue paga;

Pô-los, ainda em cima, na figura

Dos indignos vassalos, que se julgam

Em pena dos delitos, como escravos,

Isto só para erguer-se uma obra grande,

Que outra, pequena, supre, é mais que injusto:

É uma das ações que só praticam

Aqueles torpes monstros, que nasceram

Para serem, na terra, o mal de muitos.

Dirás tu, Doroteu, que o nosso chefe

Não quer que os inocentes se maltratem;

Que o fero comandante é quem abusa

Dos poderes que tem. Prezado amigo,

Quem ama a sã verdade busca os meios

De a poder descobrir e o nosso chefe

Despreza os meios de poder achá-la.

Qu’é deles, os processos, que nos mostram

A certeza dos crimes? Quais dos presos

Os libelos das culpas contestaram?

Quais foram os juízes, que inquiriram

Por parte da defesa e quais patronos

Disseram, de direito, sobre os fatos?

A santa lei do reino não consente

Punir-se, Doroteu, aquele monstro

Que é réu de majestade, sem defesa.

E podem ser punidos os vassalos

Por aéreos insultos, sem se ouvirem

E sem outro processo, mais que o dito

De um simples comandante, vil e néscio?

Um louco, Doroteu, faz mais, ainda,

Do que nunca fizeram os monarcas;

Faz mais que o próprio Deus, que Deus, querendo

Punir, em nossos pais, a culpa grave

Primeiro lhes pediu, que lhe dissessem,

Qual foi, do seu delito, a torpe causa.

Passam, prezado amigo, de quinhentos

Os presos que se ajuntam na cadeia.

Uns dormem encolhidos sobre a terra,

Mal cobertos dos trapos, que molharam

De dia, no trabalho. Os outros ficam,

Ainda, mal sentados e descansam

As pesadas cabeças sobre os braços,

Em cima dos joelhos encruzados.

O calor da estação e os maus vapores

Que tantos corpos lançam, mui bem podem

Empestar, Doroteu, extensos ares.

A pálida doença aqui bafeja,

Batendo brandamente as negras asas.

Aquele Doroteu, a quem penetra

Este hálito mortal, as forças perde,

Tem dores de cabeça e, num instante.

Abrasa-se em calor, de frio treme.

Fazem os seus deveres os afetos

Do nosso grão tenente: amor e ódio.

Aquele que, risonho, lhe trabalha

Nas suas próprias obras, é mandado

Curar-se à Santa Casa, como pobre.

Os outros são tratados como servos,

Que fogem ao trabalho dos senhores,

Para as correntes vão, arrancam pedra

E, quando algum fraqueia, o mau soldado

Dá-lhe um berro que atroa, a mão levanta

E, nas costas, o relho descarrega.

Ah! tu, piedade santa, agora, agora,

Os teus ouvidos tapa e fecha os olhos?

Ou foge desta terra, aonde um Nero,

Aonde os seus sequazes, cada dia

Para o pranto te dão motivos novos.

O fogo, Doroteu, que vai moendo

Depois de bem moer, a chama ateia

E a matéria consome, em breve instante.

Assim a podre febre que roía

Aos míseros enfermos, pouco a pouco

Erguendo, qual o fogo, a lavareda,

À força do cansaço que resulta

Do trabalho e do sol, consome e mata.

Uns caem, com os pesos, que carregam

E das obras os tiram pios braços

Dos tristes companheiros; outros ficam

Ali mesmo, nas obras, estirados.

Acodem mãos piedosas: qual trabalha

Por ver se pode abrir as grossas pegas

E qual o copo d’água lhes ministra,

Que, fechados os dentes, já não bebem.

Uns as caras borrifam, outros tomam

Os débeis pulsos que, parando, fogem.

Ah! não mais compaixão! Não mais desvelo!

O socorro chegou, mas foi mui tarde:

Cobrem-se os membros de um suor já frio,

Os cheios peitos, arquejando, roncam

E vertem umas lágrimas sentidas,

Que só lhes descem dos esquerdos olhos:

Amarela-se a cor, baceia a vista,

O semblante se afila, o queixo afrouxa,

Os gestos e os arrancos se suspendem;

Nenhum mais bole, nenhum mais respira

Assim, meu Doroteu, sem um remédio,

Sem fazerem despesas em um só caldo,

Sem sábio diretor, sem sacramentos,

Sem a vela na mão, na dura terra

Estes pobres acabam seus trabalhos.

Que esperas, duro chefe, que não contas

À corte os teus triunfos! Tu não podes

Mandar alqueires dos anéis tirados

Dos dedos que cortaste nas campanhas;

Mas de algemas, de pegas e correntes,

Podes mandar à corte imensos carros.

Tu podes... mas, amigo, não gastemos

Todo o tempo em contar sentidas coisas,

Façamos menos triste a nossa história;

Misturemos os casos, que magoam,

Com sucessos, que sejam menos fortes.

Não bastam, Doroteu, galés imensas,

São outros mais socorros necessários

Para crescerem as soberbas obras.

Ordena o grande chefe, que os roceiros

E outros quaisquer homens, que tiverem

Alguns bois de serviço, prontos mandem

Os bois e mais os negros que os governem,

Durante uma semana de trabalho.

Ordena, ainda mais, que, neste tempo,

Não recebam jornal, antes, que tragam

O milho, para os bois, dos seus celeiros.

Que é isto, Doroteu, abriste a boca?

Ficaste embasbacado? Não supunhas

Que o nosso grande chefe se saísse

Com uma tão formosa providência?

Nisto de economia é ele o mestre;

Está para compor uma obra, aonde

Quer o modo ensinar, de não gastarem

As tropas coisa alguma, no sustento.

Deus o deixe viver, até que chegue

A pô-la, Doroteu, no mesmo estado

Em que estão os volumes, onde existem

Os despachos, que deu, no seu governo.

Ora, ouve ainda mais, atende e pasma.

Para se sustentarem os forçados

Os gêneros se compram, com bilhetes

Que paga o tesoureiro, quando pode;

E sobre esta fiança inda se tomam

Por muito menos preço do que correm.

As tropas, que carregam mantimentos.

Apenas descarregam, vão, de graça,

À distante caieira, com soldados

Buscar queimada pedra. Daqui nasce

Os tropeiros fugirem e chorarmos

A grande carestia do sustento.

Responde, louco chefe, se tu podes

Tais violências fazer. Não era menos

Lançares sobre os povos um tributo?

Os homens que têm carros e os que vivem

De víveres venderem são, acaso,

Aos mais inferiores nos direitos?

Esta cadeia é sua, porque deva

Sobre eles carregar tamanho peso?

E o povo, quando compra tudo caro,

Não paga ainda mais, do que pagara

Se um módico tributo se lançasse,

À proporção dos bens de cada membro?

Amigo Doroteu, quem rege os povos

Deve ler, de contínuo, os doutos livros

E deve só tratar com sábios homens. ;

Aquele que consome as largas horas

Em falar com os néscios e peraltas,

Em meter entre as pernas os perfumes,

Em concertar as pontas dos lencinhos,

Não nasceu para as coisas que são grandes,

Que. nestas bagatelas, não consomem

O tempo proveitoso as nobres almas.

Quem não quer, Doroteu, mandar o carro,

Co’o famoso tenente se concerta.

Onde vai tal dinheiro ninguém sabe;

Só sabemos mui bem, que o bom tenente

Sem ter outro negócio, que lhe renda,

De pingante, passou a potentado.

Sabemos também mais... porém, amigo,

O falar nestas coisas já me enfada.

Omito outros sucessos, que lastimo,

E fecho, Doroteu, a minha carta,

Com um maravilhoso, estranho caso.

Distante nove léguas desta terra

Há uma grande ermida, que se chama

Senhor de Matozinhos: este templo

Os devotos fiéis a si convoca

Por sua arquitetura, pelo sítio

E, ainda muito mais, pelos prodígios

Com que Deus enobrece a santa imagem.

Este famoso templo tem um carro,

Comprado com esmolas, que carrega

As pedras e madeiras, que ainda faltam.

O comandante austero notifica

A veneranda imagem, na pessoa

Do zeloso ermitão, para que mande

O carro, com os bois, servir nas obras

Mal lhe couber o turno da semana.

Faz-se uma petição ao nosso chefe

Em nome do Senhor, em que se alega

Que o carro, que ele tem, se ocupa, ainda,

Na pia construção da sua casa;

Que ele, Cristo, não tem nenhumas rendas

Senão esmolas tênues, que só devem

Gastar-se no seu templo e no seu culto,

Conforme as intenções de quem as pede.

Apenas viu o chefe o peditório,

Quis ao Cristo mandar, que lhe ajuntasse

O título que tinha, porque estava

Isento de pagar os seus impostos:

Que ele sabe mui bem que o mesmo Cristo

Mandou ao velho Pedro, que pagasse

A César, os tributos, em seu nome.

E Cristo, figurado em uma imagem

Não tem mais isenções, que teve o próprio.

Pegava o seu Matúsio já na pena,

Quando lembra, ao bom chefe, o que decretam

Os cânones da igreja, que concedem

Que. para se fazerem obras pias,

Até os sacros vasos se alienem.

Infere daqui logo, que este carro

Não goza de isenção, porque, suposto

Se possa numerar nos bens da igreja,

Conforme as Decretais até podia,

Neste caso, vender-se, por ser obra

Mais pia do que todas, a cadeia.

Lança mão ele mesmo, então, da pena

E põe na petição um escusado

Com uns rabiscos tais, que ninguém sabe

Ao menos conhecer-lhe uma só letra.

Agora dirá tu: "meu bom Critilo,

Não se isentar a Cristo desse imposto

Foi um grande tesão, mas necessário,

Por não se abrir a porta a maus exemplos.

Antes o Santo Cristo é que devia

Mandar o carro logo, como Mestre

Da sublime Virtude e, desta sorte,

Obrou o mesmo Cristo, em outro tempo,

Mandando que pagasse Pedro a César

O tributo, por ele, quando estava,

Por um dos filhos ser mui bem isento.

Mas se esse Santo Cristo não podia

Por dias dispensar os bois e carro,

Porque não se valeu do tal Matúsio,

Do poeta Robério e de outros trastes,

Por quem aqui se conta, que pratica

O grande Fanfarrão os seus milagres ?"

Tu instas, Doroteu, qual o mestraço

Quando, por defender a sua escola,

Arregaçando o braço, o pé batendo

E enchendo as cordoveias, grita e ralha.

Mas eu, prezado amigo, com bem pouco

Te boto esse argumento todo abaixo.

Em primeiro lugar o Santo Cristo

É homem muito sério, e por ser sério,

Não tem com essa gente um leve trato;

Em segundo lugar é muito pobre.

Só dá aos seus devotos indulgências

Com anos de perdão e, destas drogas,

Não fazem tais validos nenhum caso.

Ora pois, louco chefe, vai seguindo

A tua pertensão, trabalha, e força

Por fazer imortal a tua fama.

Levanta um edifício em tudo grande,

Um soberbo edifício, que desperte

A dura emulação na própria Roma.

Em cirna das janelas e das portas

Põe sábias inscrições, põe grandes bustos,

Que eu lhes porei, por baixo, os tristes nomes

Dos pobres inocentes, que gemeram

Ao peso dos grilhões, porei os ossos

Daqueles que os seus dias acabaram,

Sem Cristo e sem remédios, no trabalho.

E nós, indigno chefe, e nós veremos

A quais destes padrões não gasta o tempo.