Cartas Chilenas/VI
- Em que se conta o resto dos festejos.
Eu ontem, Doroteu, fechei a carta
Em que te relatei da igrejája as festas .
E como trabalhava, por lembrar-me
Do resto dos festejos mal descalço
Na cama, os lassos membros, me parece
Que vou entrando na formosa praça.
Não vejo, Doroteu, um curro feito
De pedaços informes de outros curros
Sim vejo o mesmo curro, que o bom chefe
Riscou na seca praia, e nele vejo
As mesmas armações, as mesmas caras.
Ora vou, doce amigo, aqui pintá-lo
Na frente se levanta um camarote
Mais alto do que todos uma braça:
Enfeitam seu prospecto lindas colchas
E pendentes cortinas de damasco.
À direita se assenta o nosso chefe;
Os régios magistrados não o cercam,
Nem o cerca, também, o nobre corpo.
Dos velhos cidadãos, aquele mesmo
Que faz de toda a festa os grandes gastos.
Com ele só se assenta a sua corte,
Que toda se compõe de novos Martes.
Aqui alguns conheço, que inda vivem
De darem o sustento, o quarto, a roupa.
E capim para a besta, a quem viaja.
Conheço, finalmente, a outros muitos
Que foram almocreves e tendeiros.
Que foram alfaiates e Fizcram.
Puxando a dente o couro, bem sapatos
Agora, doce amigo, não te rias
De veres que estes são aqueles grandes
Que. em presença do chefe, encostar podem
Os queixos nos bastões das finas canas.
Os postos, Doroteu, aqui se vendem,
E, como as outras drogas que se compram,
Devem daqueles ser. que mais os pagam.
No meio desta turba, veio um vulto
Que moça me parece, pelo traje.
Não posso conceber o como deva
Estar uma senhora em tal palanque.
O chefe, (eu discorria), inda é solteiro,
E, quando não o fosse, a sua esposa
Não havia sentar-se com barbados.
Mil coisas, Doroteu, mil coisas feias
Me sugere a malicia, e todas falsas.
Aplico mais a vista, então conheço
Que é uma muito esperta mulatinha
Que dizem filha ser do seu lacaio.
Eis aqui, Doroteu, o como, às vezes
Que tudo é desta classe, e, se viveres
Ainda o hás-de ver obrar milagres.
Pegado ao camarote do bom chefe
Se vê outro palanque, igual em tudo
Aos rasos camarotes do mais povo.
Aqui têm seu lugar os senadores;
Com eles se encorporam outros muitos
Que lograram de edis as grandes honras.
Nos outros adornados camarotes
Assistem as famílias mais honestas:
Aqui nada se vê que seja pobre.
Recreia, Doroteu, recreia a vista
O vário dos matizes; cega os olhos
O continuo brilhar das finas pedras.
No meio de um palanque então descubro
A minha, a minha Nise: está vestida
Da cor mimosa com que o céu se veste
Oh ! quanto, oh! quanto é bela! a verde olaia
Quando se cobre de cheirosas flores
A filha de Taumante, quando arqueia,
No meio da tormenta, o lindo corpo;
A mesma Vênus, quando toma e embraça
O grosso escudo e lança, porque vence a
A paixão do deus Marte com mais força,
Ou, quando lacrimosa se apresenta
Na sala de seu pai, para que salve
Aos seus troianos das soberbas ondas,
Não é, não é como ela tão formosa.
Qual o tenro menino, a quem se chega
Defronte do semblante a vela acesa.
Umas vezes suspenso, outras risonho,
Os olhos arregala e, bem que o chamem,
A tesa vista não separa dela,
Assim eu, Doroteu, apenas vejo
A minha doce Nise, qual menino,
Os olhos nela fito cheios de água,
E, por mais que me chamem, ou me abalem.
De embebido que estou, não sinto nada.
No meio, Doroteu, de tanto assombro,
Me finge a perturbada fantasia
Novo sucesso, que me aflige e cansa.
Aparece, no curro passeando,
Sexagenário velho, em ar de moço:
Traja uma curta veste, calções largos
Da cor da seca rosa, a quem adorna
O brilhante galão de fina prata.
Na bolsa do cabelo, que se enfeita
De duas negras plumas e de flocos,
Branquejam os vidrilhos, e no peito,
De flores se sustenta um grande molho.
Traz dois anéis nos dedos e fivelas
De amarelos topázios. Não caminha
Sem que, avante, caminhe um branco pajem
Atrás da cadeirinha, e o seu moleque
Em forma de lacaio. Ah! velho tonto!
Esse teu tratamento imita, imita
Ao estado que tem o rei do Congo.
Ponho os meus olhos no caduco Adônis,
Então se me afigura que ele oferta
A Nise uma das flores, e que Nise
Com ar risonho, no seu peito a prega.
Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste;
Sentem a sua força os altos deuses,
Os homens mais as feras; e, em Critilo,
Não podes esperar paixões diversas.
Apenas isto veio, exasperado
Meto a mão no florete e, quando intento
O peito transpassar-lhe, então acordo
E, vendo-me às escuras sobre a cama
Conheço que isto tudo foi um sonho.
Pintei-te, Doroteu. o grande curro
Da sorte que minha alma o viu sonhando:
Agora vou pintar-te os mais sucessos
Que impressos inda tenho na memória.
Ainda, Doroteu, no largo curro
Caretas não brincavam, nem se viam,
Nos rasos camarotes, altas popas,
Enfeites com que brilham néscias damas
Quando já no castelo de madeira
As peças fuzilavam, sinal certo
De que o nosso herói e o velho bispo
No adornado palanque se assentavam.
Agora dirás tu: "é forte pressa!
Os chefes nos teatros entram sempre
Às horas de correr-se acima o pano.
Amigo Doroteu, tu nunca viste
Uma criança a quem a mãe promete
Levá-la a ver de tarde alguma festa
Que logo de manhã a mãe persegue,
Pedindo que lhe dispa os fatos velhos ?
Pois eis aqui, amigo, o nosso chefe.
Não quer perder de estar casquilho e teso
No erguido camarote um breve instante.
Chegam-se, enfim, as horas do festejo;
Entra na praça a grande comitiva;
Trazem os pajens as compridas lanças
De fitas adornadas, vêm à destra
Os formosos ginetes arreados,
Seguem-se os cavaleiros, que cortejam
Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros,
Dividindo as fileiras sobre os lados.
Não há quem o cortejo não receba
Em ar civil e grato; só o chefe
O corpo da cadeira não levanta,
Nem abaixa a cabeça, qual o dono
Dos míseros escravos, quando juntos
A benção vão pedir-lhe, porque sejam
Ajudados de Deus no seu trabalho.
Feitas as cortesias do costume,
Os destros cavaleiros galopeiam
Em círculos vistosos, pelo campo.
Logo se formam em diversos corpos,
A maneira das tropas que apresentam
Sanguinosas batalhas. Soam trompas,
Soam os atabales, os fagotes,
Os clarins, os boés, e mais as flautas:
O fogoso ginete as ventas abre
E bate com as mãos na dura terra;
Os dois mantenadores já se avançam.
Aqui, prezado amigo, aqui não lutam,
Como nos espetáculos romanos,
Com forçosos leões, malhados tigres,
Os homens, peito a peito e braço a braço.
Jogam-se encontroadas, e se atiram
Redondas alcancias, curtas canas.
De que destro inimigo se defende
Com fazê-las no ar em dois pedaços.
Ao fogo das pistolas se desfazem
Nos postes as cabeças. Umas ficam
Dos ferros trespassados, outras voam,
Sacudidas das pontas das espadas;
Airoso cavaleiro ao ombro encosta
A lança, no princípio da carreira;
No ligeiro cavalo a espora bate;
Desfaz com mão igual o ferro, e logo
Que leva um argolinha, a rédea toma
E faz que o bruto pare. Doces coros
Aplaudem o sucesso, enchendo os ares
De grata melodia. Então, vaidoso,
Guiado de um padrinho, ao chefe leva
O sinal da vitória, que segura
Na destra, aguda lança. O bruto chefe
Aceita a oferta em ar de majestade;
À maneira dos amos, quando tomam
As coisas que lhes dão os seus criados.
Nestes e noutros brincos inocentes
Se passa, Doroteu, a alegre tarde.
Já no sereno céu resplandeciam
As brilhantes estrelas, os morcegos
E as toucadas corujas já voavam,
Quando, prezado amigo, nas janelas
Do nosso Santiago se acendiam.
Em sinal de prazer, as luminárias;
Ardem, pois, nas janelas de palácio
Duas tochas de pau, e sobre a frente
Da casa do Senado se levanta
Uma extensa armação, a quem enfeitam
Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga
Aqui o prêmio tens, do teu trabalho.
Tu farás, de torcidas e de azeite,
Aos tristes camaristas, contas largas;
E as arrobas de sebo, que não arde
Desfeitas em sabão, mui bem te podem
Toda a roupa lavar por muitos anos.
Nas margens, Doroteu, do sujo corgo,
Que banha da cidade a longa fralda,
Ha uma curta praia, toda cheia
De já lavados seixos. Neste sitio
Um formoso passeio se prepara:
Ordena o sábio chefe que se cortem
De verdes laranjeiras muitos ramos,
E manda que se enterrem nesta praia
Fingindo largas ruas. Cada tronco
Tem, debaixo das folhas, uma táboa.
Sem lavor nem pintura, que sustenta
Doze tigelas do grosseiro barro.
No meio do passeio estão abertas
Duas pequenas covas, pouco fundas
Que lagos se apelidam. Sobre as bordas
Ardem mil tigelinhas e o azeite
Que corre, Doroteu, dos covos cacos
Inda é mais do que são as sujas águas
Que nem os fundos cobrem destes tanques.
A tão formoso sitio tudo acode
Ou seja de um ou seja de outro sexo,
Ou seja de uma ou seja de outra classe.
Aqui lascivo amante, sem rebuço
A torpe concubina oferta o braco
Ali mancebo ousado assiste e faia
A simples filha, que seus pais recatam;
A ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança o quente lundu e o vil batuque,
E, aos cantos do passeio, inda se fazem
Ações mais feias, que a modéstia oculta.
Meu caro Doroteu, meu doce amigo,
Se queres que este sitio te compare
Como sério poeta, aqui tens Chipre,
Nos dias em que os povos tributavam
A deusa tutelar alegres cultos.
Se queres que o compare, como um homem
Que alguma noção tem das sacras letras,
Aqui Sodoma tens e mais Gomorra.
Se queres, finalmente, que o compare
A lugar mais humilde, em tom jocoso,
Aqui, amigo, tens esse afamado
Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.
Depõe o nosso chefe a majestade
E, por ver as madamas, rebuçado
No capote de berne; corre as ruas,
Seguido, Doroteu, das suas guardas.
Depois de dar seus giros, vai sentar-se
Em um dos toscos bancos, onde tomam
Assento certas moças que puderam,
Não sei por que razão, cair-lhe em graça.
Não diz uma fineza às tais mocinhas,
Pois não é, Doroteu, porque não saiba,
Que ele tem muito estudo de Florinda,
Da Roda da Fortuna e de outros livros,
Que dão aos seus leitores grande massa.
É, sim, por sustentar a gravidade
Que, no público, pede o seu emprego.
Mas, para lhes mostrar o quanto as preza,
(Oh! força milagrosa do bestunto!)
Descobre esta feliz e nova traça:
Vai sentar-se na ponta do banquinho,
Umas vezes suspende ao ar o corpo,
Outras vezes carrega sobre a taboa
E, desta sorte, faz que as belas mocas,
Movidas do balanço, dêem no vento
Milhares e milhares de embigadas.
Chega-se, Doroteu, defronte dele
Um máscara prendado: não estima
Os discretos conceitos, nem se agrada
De ver executar vistosos passos.
Manda, sim, que arremede o nosso bispo,
Que arremede, também, o modo e o gesto
De um nosso general. São estes momos
Os únicos que podem comovê-lo
No público a mostrar risonha cara.
Oh ! alma de fidalgo, oh ! chefe digno
De vestir a libré de um vil lacaio!
Cresceram, doce amigo, alguns foguetes
Da noite em que o Senado fez no curro
De pólvora queimar barris imensos.
Em uma noite clara, qual o dia.
Ordena que os foguetes vão aos ares.
Vai se pôr no passeio, reclinado
Sobre um monte de pedras; faz-lhe a corte
A velha poetisa, que repete
Um soneto que fez a certos males.
Começam os vapores do ribeiro
A formar, sobre a terra, nuvens densas
Não se vêem, dos foguetes, os chuveiros
Não se vêem as estrelas, nem as cobras
Mas ele os deixas arder, e gasta a noite
Contente com ouvir alguns estalos
E a bulha, que eles fazem, quando sobem.
Já chega, Doroteu, o novo dia
O dia em que se correm bois é vacas.
Amigo Doroteu, é tempo, é tempo
De fazer-te excitar, no peito brando
Afetos de ternura, de ódio e raiva.
No dia. Doroteu, em que se devem
Correr os mansos touros, acontece
Morrer a casta esposa de um mulato,
Que a vida ganha por tocar rabeca;
Dá-se parte do caso ao nosso chefe
Este, prezado amigo, não ordena
Que outro músico vá em lugar dele
A rabeca tocar no pronto carro;
Ordena que ele escolha ou a cadeia
Ou ir tocar a doce rabequinha
Naquela mesma tarde, pela praia.
Que é isto, Doroteu, estás confuso?
Duvidas que isto seja ou não verdade ?
Então que hás de fazer, quando me ouvires
Contar desordens, que inda são mais calvas?
Indigno, indigno chefe, as leis sagradas
Não querem se incomodem alguns dias
Os parentes chegados dos defuntos,
Ainda para coisas necessárias;
E tu, cruel, violentas um marido
A deixar sobre a terra o frio corpo
Da sua terna esposa, sem que tenhas
Ao menos uma honesta e justa causa
Bárbaro, tu praticas tudo junto
Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos!
Mezêncio ajuntava os corpos vivos
Aos corpos já corruptos, e tu segues
Outros caminhos, que inda são mais novos;
Separas dos defuntos os que vivem,
Não queres que os parentes sejam pios,
Dando as últimas honras aos seus mortos!
Chega-se, finalmente, a tarde alegre
Do festejo dos touros. Já no curro
Aparecem os dois formosos carros.
O primeiro derrama sobre a terra,
Por bocas de serpentes escamosas,
Dois puros chorros de água; no segundo
Se levantam, alegres, doces vozes,
Que vários instrumentos acompanham.
Aqui, entre os que tocam, se divisa
Um triste rosto, que se alaga em pranto.
Não sabes, Doroteu, quem este se!a ?
Pois é, prezado amigo, aquele triste
Que tem a mulher morta sobre a cama.
O nosso grande chefe mal conhece
Ao pobre do viúvo, compassivo
Mete a mão no seu bolso e dele tira
Um famoso cartucho, que lhe entrega.
O néscio rebequista, que a ação nota,
Um pouco suaviza a sua mágoa,
E, enquanto não recebe o tal embrulho,
Consigo assim discorre: "Que ditosa,
Que ditosa violência, que socorre,
Em tal ocasião, a minha falta!
Já tenho com que pague ao meu vigário,
Já tenho com que pague a cera, a cova,
A mortalha, o caixão, e mais os padres."
Assim o bom viúvo discorria,
Quando pega no embrulho, e mal o rasga,
Encontra, Doroteu, confeitos grandes,
Encontra manuscriti e rebuçados.
Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?
De novo desconfias da verdade ?
Amigo Doroteu, o nosso chefe
Estudou medicina, e como alcança
Que o chorar faz defluxo, providente
Ministra rebuçados a quem chora,
Para, com eles, acudir-lhe ao peito.
Principiam os touros, e se aumentam
Do chefe as parvoíces. Manda à praça
Sem regra, sem-discurso e sem concerto.
Agora sai um touro levantado,
Que ao mau capinha, sem fugir, espera.
Acena-lhe o capinha, ele recua
E atira com as mãos, ao ar, a terra.
Acena-lhe o capinha novamente,
De novo raspa o chão e logo investe
Lá vai o mau capinha pelos ares.
Lá se estende na areia, e o bravo touro
Lhe dá, com o focinho, um par de tombos
Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio
Não segue o meio de fingir-se morto.
Meu esperto boizinho, em paz te fica,
Que o nosso chefe ordena te recolham
Sem fazeres mais sorte, e te reserva
Para ao curro saíres, quando forem
Do Senhor do Bonfim as grandes festas.
Agora sai um touro, que é prudente.
Se o capinha o procura, logo foge.
Os caretas lhe dão mil apupadas
Um lhe pega no rabo, e o segurâ,
Outro intenta montá-lo, e o grande chefe
O deixa passear por largo espaço.
Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe
As garrochas de fogo, que primeiro
Quem rompam do ligeiro bruto
Nos destros dedos do capinha estalam.
Com estes maus festejos, que aborrecem,
Se gastam muitos dias. Já o povo
Se cansa de assistir na triste praça
E, ao ver-se solitário, o bruto chefe
Nos trata por incultos, mais ingratos.
Soberbo e louco chefe, que proveito
Tiraste de gastar em frias festas
Imenso cabedal, que o bom Senado
Devia consumir em coisas santas ?
Suspiram pobres amas e padecem
Crianças inocentes, e tu podes
Com rosto enxuto ver tamanhos males?
Embora! sacrifica ao próprio gosto
As fortunas dos povos que governas;
Virá dia em que mão robusta e santa
Depois de castigar-nos, se condoa
E lance na fogueira as varas torpes.
Então rirão aqueles que choraram,
Então talvez que chores, mas debalde.
Que suspiros e prantos nada lucram
A quem os guarda para muito tarde.