Cartas Chilenas/XIV
Qual seja o original. Dentro em minha alma
Vejo, ó Critilo, do chileno chefe,
Tão bem pintada a história nos teus versos,
Que não sei decidir qual seja a cópia,
Qual seja o original. Dentro em minha alma
Que diversas paixões, que afetos vários
A um tempo se suscitam! Gelo e tremo,
Umas vezes de horror, de mágoa e susto;
Outras vezes do riso apenas posso
Resistir aos impulsos. Igualmente
Me sinto vacilar entre os combates
Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse!
Eu retrato a expressão, nem me subscrevo
Ao sufrágio daquele, que assim pensa,
Alheio da razão, que me surpreende.
Trata-se aqui da humanidade aflita;
Exige a natureza os seus deveres.
Nem da mofa ou do riso pode a idéia
Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos
Se propõe do teu chefe a infame história.
Quem me dirá que da estultice as obras
Infestas à virtude e dirigidas
A despertar o escândalo conseguem,
No prudente varão, mover o riso?
Eu veio que um Calígula se empenha
Em fazer que de Roma ao Consulado,
Se jure o seu cavalo por colega.
Vejo que os cidadãos e as tropas arma
O filho de Agripina, que os transporta
Em grossos vasos sobre o Tibre e logo
Por inimigos lhes assina os matos,
Que atacar manda com guerreiro estrondo.
Direi que me recreia esta loucura?
Que devo rir-me e sufocar o pranto
Que pula dos meus olhos? Não, Critilo,
Não é esta a moção que n'alma provo.
Por entre estes delírios, insensível,
Me conduz a razão, brilhante e sábia,
A gemer igualmente na desgraça
Dos míseros vassalos, que honrar devem,
De um tirano o poder, o trono, o cetro.
Se Talia e Melpômene nos pintam,
Nos seus teatros, paixões humanas,
Ao ridículo gesto, ou ao semblante
Da cena que o coturno me apresenta,`
Eu me conformo ao interesse, quando
Aborreço a maldade e quando rendo
À formosa virtude os dignos votos.
Despedace Medéia os caros filhos,
Guise Atreu de seus netos as entranhas,
Eu terei sempre horror às impiedades.
Jamais da irreligião, da fé mentida
Me hão-de enganar os pérfidos rebuços
Ou da fingida cena os vãos adornos.
Devo pois confessar, Critilo amado,
Que teus escritos, de uma idade a outra
Passarão, sempre de esplendor cingidos:
Que a humanidade, enfim desagravada
Das injúrias que sofre, por teu braços,
Os ferros soltará, que desafrouxa,
Tintos do fresco, gotejado sangue.
Súditos infelices, que provastes
Os estragos da bárbara desordem,
Respirai, respirai: ao benefício
Deveis do bom Critilo a paz suave,
Que a vossa liberdade alegre goza,
Sim, Critilo, são estes os agouros
Que, lendo a tua história, ao mundo faço.
De pejo e de vergonha os bons monarcas,
Que pias intenções sempre alimentam,
De reger como filhos os seus povos,
Tocados se verão. Prudentes, sábios,
Consultarão primeiro sobre a escolha
Daqueles chefes, que a remotos climas
Determinam mandar, deles fiando
A importante porção do seu governo.
Prevenidos que a vã, brutal soberba
Só nas obras influi destes monstros,
Pelo escrutínio da virtude espero,
Que regulados os seus votos sejam.
De uma estéril mortal genealogia
Que o mérito produz de seus maiores,
Eles, amigo, argumentar não devem
Propalados talentos. A virtude
Nem sempre aos netos, por herança, desce.
Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,
Manso, afável, pacífico e prudente:
Não se segue daí que um ímpio filho,
Perverso, infame, díscolo e malvado,
Não desordene de seus pais a glória.
Nem sempre as águias de outras águias nascem,
Nem sempre de leões, leões se geram,
Quantas vezes as pombas e os cordeiros
São partos dos leões, das águias partos!
Para reger, ó rei, os vossos povos,
Debalde ides buscar brasões e escudos
Entre os vossos dinastas. Roma, Roma
As fasces, as secures, mais as outras
Imperiais insígnias só tirava
Da provada virtude. Se das togas
Distinguia uma e outra espécie, Atenas
! quem a todas o caráter dava.
Igualmente civil jurisconsulto
Que instruído guerreiro, era mandado
Um cidadão que da província as rédeas
Manejasse fiel. Daqui os Fábios,
Daqui os Cipiões e os bons Emílios,
Os Césares daqui, que os fastos ornam.
Quão diferentes, hoje, os nossos grandes!
É filho do marquês, do conde é filho,
Vá das Índias reger vasto império.
() Deus! e que infelices os vassalos
Que tão longe do trono prostitui
O vosso império aos abortivos chefes!
Lá vai aquele, que de avara sede
E por gênio arrastado: que tesouros
Não espera ajustar! Do alheio cofre
Se há-de esgotar a aferrolhada soma.
Desgraçada Justiça! Da igualdade
Tu não sabes o ponto: é a balança
Do interesse que só por ti decide.
Que despachos injustos, que dispensas.
Que mercês e que postos não se compram
Ao grave peso de selada firma!
Outro vai que, lascivo, e desenvolto
Só da carne as paixões adora e segue.
Honras, decoros, vós sereis despojos
Do seu bruto apetite. Em vão, cansados
Pais de família, zelareis vós outros
Da vossa casa o pundonor herdado.
Aos vis ataques do atrevido orgulho
Hão-de ceder as prevenções mais fortes;
Vítimas da voraz sensualidade
Vossas filhas serão, vossas mulheres.
Que direi do soberbo, do vaidoso,
Do colérico e de outros vários monstros,
Que freio algum não conhecendo, passam
A sustentar no autorizado cargo
Tudo quanto a paixão lhes dita e manda!
Não sofre aquele, que o vassalo oculte
os cabedais que à sua indústria deve
E que a seus filhos e a seus netos, possa
Deixar, morrendo, uma opulenta herança.
Um falso crime lhe figura, aonde
Esgote as forças, que levar procura
Alem das frias, apagadas cinzas.
Este medita que a nobreza ilustre
Sufocada se veja. A prisão dura,
O distante degredo é que promete
Da prevista vingança o fim prescrito.
Ó senhores! ó reis! ó grandes! quanto
São para nós as vossas leis inúteis!
Mandais debalde, sem julgada culpa,
Que o vosso chefe, a arbítrio seu, não possa
Exterminar os réus, punir os impios.
É c’os ministros de menor esfera
Que falam vossas leis. Nos chefes vossos
Somente o despotismo impera e reina.
Gozar da sombra do copado tronco
É só livre ao que perto tem o abrigo
Dos seus ramos frondosos. Se se aparta
Da clara fonte o passageiro, prova
Turbadas águas em maior distancia.
Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo,
Que já chegam a ler as cartas tuas:
Estes bárbaros monstros são cobertos
De vivo pejo, ao ver os seus delitos,
Que em tão disforme vulto, hoje aparecem.
Destro pintor, em um só quadro a muitos
Soubeste descrever. Sim, que o teu chefe
As maldades de todos compreende.
Aqui vê-se o soberbo, que pensando
Do resto dos mais homens nada serem,
Mais que humildes insetos, só de fúrias
Nutre o vil coração e a seus pés calca
A pobre humanidade. Aqui se encontra
O ímpio, o libertino, que ultrajando
Tudo que é sagrado, tem por timbre
Ao público mostrar, que o santo culto
Que nos intima a religião, somente
Aos pequenos obriga, e que por arte
Os conserva a ilusão no fanatismo,
Porque da obediência às leis se dobrem;
Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso,
! o estúpido, enfim é o demente
O que ao vivo aparece nesta empresa.
Tu, severo Catão, tu repreendes
Com teu mudo semblante a pátria Roma.
Nem seus teatros de lascívia cheios
Sofrem teus olhos nobremente irados.
Pede o congresso, de terror ferido,
Que o rígido censor o circo deixe
Ou que se não produza a torpe cena.
Este, ó Critilo, o precioso efeito
Dos teus versos será, como em espelho,
Que as cores toma e que reflete a imagem,
Os ímpios chefes de uma igual conduta
A ele se verão, sendo argüidos
Pela face brilhante da virtude,
Que, nos defeitos de um, castiga a tantos.
Lições prudentes, de um discreto aviso,
No mesmo horror do crime, que os infama,
Teus escritos lhes dêem. Sobrada usura
É este o prêmio das fadigas tuas.
Eles dirão, voltando-se a Critilo:
Quando devemos, ó censor fecundo,
Ao castigado metro, com que afeias
Nossos delitos, e buscar nos fazes
Da cândida virtude a sã doutrina!