Cartas de Amor ao cavaleiro de Chamilly/Prólogo

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PRÓLOGO


O estudo definitivo sôbre a autenticidade das Cartas da Freira portuguesa; a existencia, em Beja, da grande e desventurada amorosa; e até se fôra ou não o senhor de Chamilly quem ateára êsses arroubos de paixão esbraseante, — tudo isso só está irrefragàvelmente esclarecido desde 1888. Foi pelo trabalho precioso de Luciano Cordeiro que a questão ficou posta a tôda a luz.[1] Tudo o leitor ai encontra minuciosamente explanado — mais de dois séculos depois do aparecimento das Cartas!

Portugal tem sido sempre um pais de maravilhas — e de desleixados. Em letras e belas-artes é quási criminoso o que se deixou esfarrapar e esboroar. Quando um grito se erguia reclamando documentos ou elucidando-os, êsse apêlo ou essa lição perdia-se fatigadamente entre o encolher de ombros dum desdém quási geral. O tempo que levou a aparecer um estudo completo àcérca da autenticidade das Cartas de Sóror Mariana é um exemplo característico da nossa vélha incúria.

Em 1669 apareciam pala primeira vez impressas, traduzidas em francês, sem nome do tradutor nem da pessoa a quem eram dirigidas, as cinco Cartas admiráveis. [2]

«Nos primeiros dias de janeiro daquele ano, Cláudio Barbin, o célebre livreiro parisiense — au Palais, sur le second perron de la Sainte Chapelle, — lançava nos salões e alcovas que continuavam a câmara azul da senhora de Rambouillet, um pequenino livro anónimo, que naquele meio galante, artificioso e frívolo, era, certo, como a mancha rude e sombria dum monge de Zurbaran, caindo inopinadamente numa pastoral mimosa de Watteau ou Boucher».

O éxito é prodigioso. Tôdas as almas apaixonadas ou delicadas querem crestar-se na labareda fulgurante daquelas cinco Cartas. Ás edições sucedem-se. Logo aparecem outras Cartas, desta vez dum mundanismo enternecido — «Lettres de la Dame portugaise», — e editam-se Respostas e Novas respostas, tudo evidentemente apócrifo, para atiçar o fogo, aproveitando o entusiasmo e a comoção nascida com a leitura das Cartas auténticas da Freira — e as Respostas talvez para atenuarem o egoismo e a atitude antipática de Chamilly…

A voga aumenta estupendamente. Essas cinco mararárias correm mundo, e constituem um monumento litevilho e passional verdadeiramente incomparável.

O nome do destinatário das Cartas e o do tradutor só foram impressos pela primeira vez na edição francesa de 1690. «O nome daquele a quem foram enviadas estas Cartas é o cavalheiro de Chamilly, e o nome de quem lhe fez a tradução é Guilleragues.» E a autora? Quem escrevera com sangue e com lágrimas essas Cartas eternas? Até 1810 sabe-se apenas que se chamava Mariana… É então que o ilustre Boissonade (a quem devemos a versão do «Hissope»), descobre num exemplar da edição original das Cartas uma nota escrita por mão contemporânea, dizendo o nome completo da extraordinária amorosa: — Mariana Alcoforado.

Pois bem: só em 1888 Luciano Cordeiro documentou a existência de Mariana. É certo que antes dêle Felner, Juromenha e depois Pinheiro Chagas tentaram documentar a existência em Beja, da grande apaixonada; mas nada puderam concluir das suas investigações. Não havia documentos. Só uma lenda esvoaçava vagamente, semelhante a alguma réstia de luar triste sôbre um túmulo quimérico…

O problema, com efeito, dificilmente se podia desenredar. Dada a influência e representação da família Alcoforado no século XVII, era natural que se tentasse apagar o nome de Mariana de tudo o que mais ou menos evocasse êsse episódio ardente dos seus amores. Nas pesquizas a que procedeu, Luciano Cordeiro «sentiu positivamente mão desconhecida, que tivesse andado a apagar a memoria de Mariana»; o caso religioso também impunha reservas; as crónicas monásticas não se alargam em comentários mundanais; um ou outro arquivo importante conservava-se fechado a sete chaves ou de há muito esfarrapado e disperso… Uma agulha em palheiro!

No entanto, não havia dúvidas: as Cartas haviam sido dirigidas a Chamilly. Além da edição de 1690, contemporâneos ilustres categòricamente o afirmavam, como Saint-Simon e Duclos — apesar do sr. Beauvois, publicista de Beaune, vir, dois séculos depois, dizer que não: as Cartas, segundo êsse homem singular, não podiam ter sido endereçadas ao futuro marquês e marechal de França, de quem faz o panegírico como militar e católico, e a quem considera incapaz de seduzir uma religiosa. É claro que é delicioso êste sr. Beauvois.

Consoante pensa, as Cartas deviam ter sido escritas em francês, para gáudio dum editor esperto. Acha que elas são «un parfait secrétaire des amants…» Aqui resvala em tolo.

Luciano Cordeiro atura-o, e discute esmagadoramente com o piedoso paladino do capitão de cavalos. Tempo bem empregado!

Sousa Botelho (Morgado de Mateus), que em 1821 fez em Paris a retroversão das «Cartas portuguesas», como Filinto Elísio fizera cinco anos antes, mas misturando as autênticas e as apócrifas, Sousa Botelho afirma: — «Um português, ou seja quem fôr que conheça bem esta língua, não poderá duvidar de que as Cinco Cartas da Religiosa tenham sido traduzidas quási literalmente dum original português. A construção de muitas frases é tal, que retraduzindo-as palavra a palavra em português, encontrar-se hão inteiramente no génio e no carácter desta língua.» O sr. dr. Teófilo Braga é do mesmo alvitre.

Por cá havia uma ou outra opinião ilustre de que as Cartas houvessem sido originalmente escritas em francês. Camilo Castelo Branco diz: — O torneio, a índole e a contextura da frase rescendem as olorosas meiguices do género epistolar francês.» A isto responde com razão Luciano Cordeiro: — «Que nos perdôe o grande escritor, nosso mestre e amigo, mas é exactamente a isso que nos parece, e tem parecido a muitos, pudéramos dizer que a todos, que elas nem longínquamente rescendem.» Evidentemente Camilo não se tinha dado à canseira de estudar o caso. Elas são tam vivas e humanas, que a nenhum outro escrito poderemos aplicar com mais justeza aquele admirável dizer de Emerson: «Cortai-lhe as palavras: de tal maneira são vasculares e vivas, que elas deitarão sangue…»

Tudo leva a crer que a tradução francesa (ou talvez uma revisão definitiva sôbre uma versão do próprio Chamilly) fôsse feita por Guilleragues. O abade Mercier de Saint-Léger, na edição das «Cartas portuguesas» de Delance de 1776, atribue a versão a Subligny, «advogado segundo uns, actor segundo outros, pai da menina Subligny, famosa dançarina da Ópera, o qual, além de outros trabalhos, escreveu em 1668 uma comédia critica contra a célebre tragédia «Andrómaca», de Racine.» Ora tôdas as ediçdes que indicam o tradutor chamam-lhe Guilleragues. Não seria Subligny o auctor das «Lettres de la Dame portugaise» e das primeiras Respostas? pergunta Eugénio Asse.

«Lavergne de Guilleragues, ou o conde Lavergne de Guilleragues, era um gentil-homem gascão, secretário da câmara e do gabinete do rei, relacionado com Racine, Boileau, a senhora Sévigné, etc., e, segundo Saint-Simon, «glotão, agradável, com muito espírito, fazendo excelente companhia, tendo muilos amigos, e vivendio à custa dêles; porque tudo esbanjára.»

O retrato de Boileau, seu amigo, é mais lisonjeiro:

«Esprit né pour la cour et maître en l'art de plaire Guilleragues, qui sait et parler et se taire.»

Dirigiu algum tempo a «Gazette de France», onde fez o necrologio de Turene. Fôra íntimo da senhora de Maintenon, quando ela era ainda a senhora Scarron. Segundo Saint-Simon foi esta circunstância que lhe valeu, em 1677, a embaixada de Constantinopla «pour se remplumer».

Tudo indica, pois, que fôsse Guilleragues o tradutor ou revisor literário das cinco prodigiosas Cartas, com que o futuro marquês de Chamilly conseguiu, num gesto de fatuïdade quási ridículo, imortalizar o seu nome... Mas sem a fatuïdade dêsse capitão de cavalos, ter-se-iam apagado para sempre as estrêlas mais vivas, e por isso eternas, de tôda a nossa literatura de amor!

As cinco Cartas foram efectivamente escritas por Mariana Alcoforado, e dirigidas ao oficial francês. Foi o que Luciano Cordeiro apurou no seu estudo vasto e valiosíssimo. Tudo o que diz respeito à adorável apaixonada ficou irrefutávelmente esclarecido. É êsse trabalho que indicamos aos leitores que se interesse pelo assunto. Tudo aí está, repetimos — incluindo uma larga bibliografia das Cartas. Os mais notáveis homens de letras portugueses felicitaram sinceramente o crítico ilustre. Oliveira Martins diz-lhe: — «V. fez um milagre. O livro das Cartas que V. fez é verdadeiramente definitivo; não há nada mais a dizer. Esgotou a erudição e a crítica: não há que rebuscar nem que observar mais. Está definido o caso patológico e determinado o concurso de circunstâncias em que se deu.»

 

«Nos fins de 1660 chega Schomberg a Portugal, para nos auxiliar nas nossas lutas contra a Espanha. É-lhe passada a patente de mestre do campo general da província do Alentejo, cargo vago pela promoção do conde de Atouguia. Em 1663 Schomberg é elevado a governador das armas do Alentejo: e terminada a campanha, em 1663, recebe o título de conde de Mértola, para êle e seus descendentes, com a respectiva pensão, que foi como que a lembrança com que, em frases extremamente elogiosas, o presenteou na despedida o govêrno português.»

Noël Bouton de Chamilly, ao tempo conde de Saint-Léger, — o herói das Cartas — não viera com o valente e simpático general, como se tem afirmado. Só em 1663 aparece, naturalmente patrocinado por Turene, que activamente apoiava as intenções do cardeal Mazarino a favor da nossa independência, e que já havia indicado o conde de Schomberg.

Beja era o centro dum constante movimento militar, «uma espécie de grande depósito e aquartelamento do exército do Alentejo». Chamilly é nomeado capitão no regimento de cavalaria organizado por Briquemault. Esteve no cérco de Valença de Alcântara e na derrota dos espanhóis em Castelo Rodrigo (1664), na batalha de Montes-Claros e no combate do rio Xevora (1665), na tomada de Benses, Guardia, Paimogo e São Lucar. Também tomou parte, em 1667, na investida do chamado Castelo de Ferreira. Entretanto o nome e a memória de Chamilly — frisa o sr. Luciano Cordeiro, de quem nos valemos ao traçar estas notas — não aparece nos nossos arquivos e cronistas dos sucessos do tempo. É pelos seus «états de service», reproduzidos por Pinard, que sabemos onde esteve o futuro marechal de França. É certo que uma grande parte dos nossos documentos militares da época, — incluindo a correspondência de Schomberg — desapareceram provàvelmente na devastação, no abandôno dos arquivos, e na venda dos docunmetos acumulados em muitas casas herdeiras de algumas das principais personagens do século XVII.

Como acontece o mesmo com Mariana Alcoforado, não nos parece estranho que seja proposital o silêncio sôbre os dois nomes, atendendo ao escândalo dêsses amores e ao relêvo da situação dos dois amantes. Luciano Cordeiro chega a acreditar qur Juromenha não quis também aclarar o caso que investigou, como dissemos, por motivos exclusivamente religiosos.

Seja como fôr, o que está averiguado é que os feitos de armas de Chamilly, entre nós, não deram na vista. O «Mercúrio Português» não diz nada; os historiadores franceses, a tal respeito, são discretos.

 
 

Foi no convento da Conceição de Beja, «da varanda donde se vêem as portas de Mértola», que Mariana Alcoforada se sentiu prêsa de Chamilly.

«Adivinhavam-se ainda, lá em baixo, os campos planos e assoalhados, em que há 220 anos, naquele dia fatal, se exercitavam os soldados de Chamilly, ou êste galopava cheio de mocidade e de petulância, à frente da sua companhia. Daquele lado voltava êle, talvez, alegre e triunfante, da expedição de S. Lucar. Dali veriam as pobres raparigas enclausuradas manobrar os terços com os seus uniformes variados e scintilantes: escarlates uns, verdes outros, alguns cobertos de passamanes multicores, outros ostentando os brasões heráldicos dos generais, — e caracolando em volta, e exercitando-se nas cargas impetuosas, e desennovelando-se como longas serpes reluzentes, as companhias de cavalos, com os seus pelos oficiais, moços quási todos, cujos olhares atrevidos e cúpidos iriam por vezes alvoroçar estranhamente, através das rejas do balcão — se é que as tinha já, — o bando das pombas do Senhor.»

Àquela como que aparição de encanto, seguem-se os capítulos rápidos e ardentes da novela amorosa (1666-1667). Chamilly tem 30 anos; Mariana 26. Chamilly, segundo Duclos, é bem parecido, elegante; é militar ousado; a sua farda esplende. Arteiro de certo em aventuras de sabreur fidalgo e decorativo; intelectualmente quási bronco, conforme se depreende de Saint-Simon. Tudo vantagens! Já Sainte-Beuve ambicionava uma farda, vendo-se provàvelmente ao espelho, calvo, com aquela fisionomia de sacristão solerte.

Nós estamos a vê-lo, ao herói das Cartas, aparecer depois, deslumbradoramente, aos olhos namorados de Mariana — na penumbra da igreja, a cabeleira fulva em aneis, na mão o largo chapéu de plumas variegadas… Era uma clara mancha de vida e de sangue moço, a arder na luz frouxa e mística. Todo êle devia de resplandecer, tocado da beleza em que o amor enquadra as aparições maravilhosas. Aquele homem de guerra, que ela veria do côro austero, onde os lampadários bruxuleavam como soluços, onde as grandes estantes de cantochão bocejavam, era um pouco a vélha esfinge tentadora e demoníaca (e quási sempre, por isso mesmo, intensamente humana); era a expressão da vida, misteriosa e marulhosa, uma flor de oiro e sangue que abrisse num sepulcro. Para os olhos virgens e ardentes de Mariana, êle surgia no scenário monacal, enfadonto e baço, como um príncipe de lenda, leal e forte, criado para os longos êxtasis e para as aventuras longas, avezado a galopar por noites estreladas, profundas, nupciais… Como seriam doces os segredos de amor no locutório! Como a vida tôda se transfiguraria para Mariana, num ressurgimento estranho! Era um novo Génesis!

Ela passaria então no claustro levada numa nuvem embaladora, ao mesmo tempo casta e voluptuária; sob o hábito escuro e triste da ordem, o coração desperto dir-se-ia doer-lhe de ventura; as pinturas da abóbada, os azulejos claros, teriam feiticeiras tintas, nunca por ela vistas; a arquitectura manuelina como que se espiritualizava, a mostrar-lhe, no alto, o largo céu, onde batiam asas livres; e enebriada por êsse perfume estranho e forte, que é um primeiro e grande amor, aos seus ouvidos cantaria o queixume epitalámico da água — «a ninfa pérfida, e fugitiva como a vida…»

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Chamilly desvaira Mariana; pèrfidamente a enlaça em cadeias de sedução deliciosas: — «Eu era môça, era crédula, tinha-me encerrado desde criança neste convento, não vira senão gente desagradável, nunca ouvira as lisonjas que o sr. constantemente me dizia; parecia-me dever-lhe os atractivos e a beleza que me achava, e em que me fazia reparar; ouvira dizer bem de si, tôda a gente me falava em seu abôno… e o snr. tudo me fazia para me despertar amor…»

Êle teria o esmalte superficial da gente da sua classe, que andava galanteando por Versailles. Mariana era inteligente, mas ingénua e «crédula»; julgou-se sinceramente amada. E amou, amou desvairadamente. As suas Cartas teem qualquer coisa ígnea… Há períodos que ficam nos corações que amaram como um soluço imenso… Mas por entre êsse sofrimento tumultuário, que as torna por vezes estranhamente incoerentes para os analistas tranqüilos, como são fundas e admiráveis aquelas suas palavras: — «Terias experimentado que se é mais feliz, e que sentimos alguma coisa muito mais intensa quando amamos violentamente, do que quando se é amado…»

Chamilly jogava quási a frio. Un caprice de garnison, como diz Maxime Caucher. É o que se averigua da sua atitude sêca, quando parte, da óptima disposição em que faz a viagem, do seu silêncio, da própria publicação das Cartas logo que chega a França, do seu futuro casamento com uma senhora excelente, rica e feia. Homem prático, Chamilly. Neste ponto de vista amoroso era um aventureiro antipático. Não tem volta a dar-lhe o sr. Beauvois!

«Conheço agora a má fé de todos os teus transportes. Atraiçoavas-me sempre que dizias que o teu supremo encanto era estares comigo a sós. Consideravás a minha paixão apenas como uma vitória; o teu coração nunca foi profundamente penetrado por ela. Tinhas planeado, a sangue frio, incendiar-me de paixão!» Que mais querem? É uma sedução em forma: uma burla de amor.

E Mariana entrega-se, porque ama profundamente. A paixão absolve-a, e touca-a de flores eternas. Caiu, mas «num leito de circunstâncias atenuantes», como Donnap se exprime a propósito de Armanda Béjart. Mas no drama da Freira portuguesa há muito mais do que isso: há a divina labareda amorosa que a purifica entregando-se. Num momento tudo ela esfarrapa e perde pelo amante. Vem a pêlo transcrever (apenas no que possa referir-se à paixão de Mariana) um pensamento de Chamfort: «Quand un homme et une femme ont l'un pour l'autre une passion violente, il me semble toujours que, quels que soient les obstacles qui les séparent, les deux amants sont l'un à l'autre, de «par la nature»; qu'ils s'appartiennent de «droit divin», malgré les lois et les conventions humaines».

Êsse lume redentor é tam vivo, que as suas Cartas estremecem e escaldam — e ela resplandece constantemente desventurosa e aureolada. Nela fulgura o génio, porque o amor profundo é também génio; e êsse brilho é o único que hoje ainda alumia a figura trivial do marquês de Chamilly — reflexo da constelação mais fulgente da epistolografia amorosa.

Sainte-Beuve comenta, a propósito do auxilio que nos deu Luís XIV, dos combates que se travaram, dos voluntários que vieram bater-se, às ordens de Schomberg: — «Qui done s'en soucie aujourd'hui? Mais le lecteur curieux que ne veut que son charme ne peut s'empêcher de dire que tout cela a été bon, puisque les lettres de la Réligieuse portugaise en devaient naitre».

Tam certo é que na poeirada e na fumarada das coisas que se perdem, um grito profundo de amor acorda e embala sempre a alma torva dos homens!

 
 

Mariana Alcoforado nasceu em Beja, de família ilustre, em 1640 — precisamente no ano da nossa conspiração libertadora. Faleceu a 28 de julho de 1723. Tinha 88 anos de idade, e mais de sessenta de claustro.

É curioso analisar a vida de Mariana, quanto nos podem elucidar os documentos encontrados. O seu perfil moral ressalta encantador a cada passo, recortado pàlidamente, como nos agiológios. É duma grande e comunicativa bondade. «Ninguém teve queixa dela: era muito benigna para todos» — conta a vélha madre escrivã. De resto, essa bondade áurea e forte, trasborda inalterável em tôdas as cinco Cartas. Ainda quando o orgulho ferido a sacode, e lhe dói como os cilícios futuros, logo na alma lhe esvoaçam os anjos do perdão e do afecto. Comove, na verdade, essa mulher abandonada, ludibriada, esquecida, e a quem a bondade conserva sempre puras as ondas da paixão mais revôlta, como o sal purifica as ondas dêsse Atlântico!

Como se vê das Cartas — a maravilha que o leitor vai ler — na primeira o pressentimento do abandôno anima-se ainda de esperança, à maneira de certas nuvens presagas que o sol ainda irisa: — «Adeus, ama-me sempre, e faze-me ainda sofrer mais tormentos!» Pobre Mariana!

Depois vão-se acastelando as nuvens. Mariana sofre muito, adoece, definha-se. O coração estala-lhe no peito — quere voar para a França… Os seus gritos increpam o amante, para logo lhe suplicarem piedade, porque não quere magoá-lo… Mas o destino vai-lhe aparecendo como um emblema fúnebre; lembra-se do suicídio; e no pavor do seu esmagamento moral, as incoerências ressaltam dêsse coração que fica nú e sublime como uma labareda que procura apagar-se e que esfusia, num claro-escuro de génio, sublime de desartifício e de verdade.

Todos o estimam, sempre. Dela irradia, com a sugestão do nome, da mocidade, da gentileza, outra coisa mais duradoira e mais bela — a bondade divina e contagiosa. Por isso a desventura a nimba de rosas tristes a esfolharem-se… No convento não se agastam contra a «pecadora»: pelo contrário, a acarinham. Fazem-na porteira, para a distraírem. É inútil. Como o náufrago, que se agarra a uma tábua pôdre que flutua, ela enleva-se ainda ouvindo o nome de seu amado; e de certo nos seus ouvidos perpassa uma doce música àquele nome pérfido, como nos êxtasis religiosos. Algumas freiras mais compadecidas falam-lhe dêle muitas vezes — e Mariana deixa-se ainda sonhar num embalo mágico, como deveria ser o das sereias aos vélhos nautas jónicos.

Mas o tempo passa; a juventude passa; as ilusões desfolham-se. Êle não voltará de França! E Mariana começa a sentir na alma cândida os estremecimentos dum remorso — à maneira dum vento frio que encrespa um pouco as águas duma lagoa limpida… Então começam também, certamente, aqueles «trinta anos em que fez ásperas penitências», segundo reza um documento a seu respeito. Como se ela tivesse pecado! E cada vez a sua bondade é mais vasta, e é mais profunda e bela a sua tristeza!

Como acontece com suas irmãs, como em regra com os Alcoforados, é grande a resistência física de Mariana. Doente, penitenciada, melancólica, ela passa na clausura tocada duma claridade singular... Essa paixão foi uma tempestade oceânica; é-o ainda durante um longo escoar de tempo; no entanto Mariana vai sentindo, a rasgar-lhe os negrumes do drama, a réstia de luar etéreo que lhe alumia e transfigura a vida inteira. Oiçam o que ela diz no fecho da terceira Carta, a mais bela, talvez: — «Agradeço-te, contudo, do fundo do meu coração, o desespéro que me causas, e detesto a tranqüilidade em que vivi antes de conhecer-te».

Estas palavras podem servir de tema a uns versos que escrevemos há tempos, e que vem a proposito reproduzir:

 

Aos setenta anos, entre as religiosas,
Sóror Mariana evoca o seu passado.
Aves presas e lindas, a seu lado
As freiras palram, riem buliçosas.

Tal quem remexe em cartas amorosas
E ainda sente um perfume evaporado;
Ou nas cinzas dum lume sopitado
E as brasas abrem 'num florir de rosas;

Sóror Mariana aviva a calentura
Dessa paixão que lhe alumiou cavernas,
E deu a tudo um vago amor de mãe…

«Amar na terra é amar a Deus na altura!
(Consigo diz) «Ó lágrimas eternas,
Quem fôra eu sem êsse amor. Ninguém!»

 

Com efeito, das grades dêsse convento da Conceição, só talvez ela pôde pressentir o mistério profundo das cousas. A dôr e o amor são as lanternas encantadas que iluminam a Vida.


JÚLIO BRANDÃO.

  1. Sóror Mariana — a Freira portuguesa.
  2. Lettres portugaises, traduiles en françois.