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Cartas de Inglaterra (Eça de Queirós)/VI

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VI

Israelismo


As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação do novo romance de Lord Beaconsfield, Endymion, e a agitação na Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente o mez pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico, esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI é vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como na Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes que possuem (entre outros o Daily Telegraph, um dos mais importantes do reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, o seu propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto, estamos longe de vêr desencadear um odio nacional, uma perseguição social contra os judeus; mas ha sufficientes symptomas de que o desenvolvimento firme d’este Estado israelita dentro do Estado christão começa a impacientar o inglez. Não vejo, por exemplo, que o que se está passando na Allemanha, apesar de exhalar um odioso cheiro d’auto-de-fé, provoque uma grande indignação da imprensa liberal de Londres: e já mesmo um jornal da auctoridade do Spectator se vê forçado a attenuar, perante os graves protestos da colonia israelita, artigos em que descrevera os judeus como uma corporação isolada e egoista, á semelhança das communidades catholicas, trabalhando só no mesmo interesse, encerrando-se na força da sua tradição e conservando sympathias e tendencias manifestamente hostis ás do estado que os tolera. Tudo isto é já desagradavel.

Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com os professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando a destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso Grão-de-Pimenta, geral dos dominicanos — é facto para ficar de bocca aberta todo um longo dia de Verão. Porque emfim, sob fórmas civilizadas e constitucionaes (petições, meetings, artigos de revista, pamphletos, interpellações) é realmente a uma perseguição de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das Manuelinas, quando se deitavam á mesma fogueira os livros do Rabbino e o proprio Rabbino, exterminando assim economicamente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor.

E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow, erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria dos livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os tempos barbaros — exactamente como o illustre legista Roenchlin os defendia nas perseguições que fecharam o seculo XV!

Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão: interpellado, forçado a dar a opinião official, a opinião d’estado sobre este rancôr obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo declara apenas, com labio escasso e secco, «que não tenciona por ora alterar a legislação relativamente aos israelitas»! Não faltaria com effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores, decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes a liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes de ferro, como nas judiarias do Ghuetto. Mas uma tal declaração não é menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas que a perseguição não ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém, uma palavra para condemnar este estranho movimento anti-semitico, que em muitos pontos é presentemente organisado pelas suas proprias auctoridades.

Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população germanica — e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia de Poncio Pilatos.

Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem o judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a nuvem da manhã, de as não alterar por ora!

O resultado d’isto é que n’uma nação em que a sociedade conservadora fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do dia» e marchando em disciplina, á voz do coronel, — cada bom allemão, cada patriota, vae immediatamente concluir d’esta linguagem ambigua do governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor de Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio ao judeu com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus corações christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d’aqui, um impulso inesperado.

Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do ministerio, um bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar por frades dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes, andaram expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim o direito individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito á cerveja!

Mas d’onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo, começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com a face em pranto:

— Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos!

Além d’isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem, no segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official, a sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de propriedade, a sua aristocracia e o seu commercio — que se ha-de fazer a um inspirado, a um revolucionario, que apparece seguido d’uma plébe tumultuosa, prégando a destruição d’essas instituições consagradas á fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d’elas e, segundo a expressão legal, excitando o odio dos cidadãos contra o Governo? Evidentemente puni-lo.

Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes maus homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução, de certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico. É verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade privilegiada, que o soubemos amar e comprehender: — mas em Jerusalem, para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem — Jesus era apenas um insurrecto.

E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul de Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como o dito Caiphás, certo que n’esse momento salvava a sua patria da anarchia. Os conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje os de Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, como agora, havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo! é indispensavel que a sociedade se conserve nas suas largas bases tradicionaes: e outr’ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação dos supplicios.

É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de triturar os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a Siberia os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat — venha a custar caro a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador social se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio, Mahomet, Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do pensamento têm uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e toda a philosophia termina, nos seus velhos dias, por ser religião. Augusto Comte já tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como hoje exigimos capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores divinos, os nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o socialismo fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d’almas.

Como a civilização caminha para o oeste, isto passar-se-ha ai para o seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando nós, por nosso turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas linguas idiomas mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas como hoje Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão visitar, em balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então, como são detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram Jesus — só haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros, que estamos encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a religião tem um periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres netos serão perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão nos supplicios... C’est raide!

 

Mas voltemos á Allemanha.

Ainda que o Pedro Ermita d’esta nova crusada constitucional seja um sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente que ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas de Jesus nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte se assignam, pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem propriedades, que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras extravagancias gothicas! O motivo do furor anti-semitico é simplesmente a crescente prosperidade da colonia judaica, colonia relativamente pequena, apenas composta de 400.000 judeus; mas que pela sua actividade, a sua pertinacia, a sua disciplina, está fazendo uma concorrencia triumphante á burguezia allemã.

A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos: é o judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que o pequeno proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é elle o advogado com mais causas e o medico com mais clientella: se na mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro judeu — o filho da Germania ao fim do anno está fallido, o filho d’Israel tem carruagem! Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o bom allemão não póde tolerar este espectaculo do judeu engordando, enriquecendo, reluzindo, emquanto elle, carregado de louros, tem de emigrar para a America á busca de pão.

Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da sua riqueza enlouquece-o de furor. E, n’este ponto, devo dizer que o allemão tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio, adunco, caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras um olhar turvo e desconfiado — pertence ao passado. O judeu hoje é um gordo. Traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa e enche a rua. É necessario vêl-os em Londres, em Berlim, ou em Vienna: nas menores cousas, entrando em um café ou occupando uma cadeira no theatro, têm um ar arrogante e ricaço, que escandalisa. A sua pompa espectaculosa de Salomões parvenús offende o nosso gosto contemporaneo, que é sobrio. Fallam sempre alto, como em paiz vencido, e em um restaurante de Londres ou de Berlim nada ha mais intoleravel que a gralhada semitica. Cobrem-se de joias, todos os arreios das carruagens são de oiro, e amam o luxo grosseiro e vistoso. Tudo isto irrita.

Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam a sua prosperidade e garantem a sua influencia — plano tão habil que tem um sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente, tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes — a Bolsa e Imprensa. Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel. De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas, injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de bater!

Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse com a raça indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto, inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de Salomão, que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d’elle um obstaculo de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem inexpugnavel: ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus costumes, o seu Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura, gosando o ouro e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã, querem lá brilhar e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer o bico do sapato dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre si, ajudam-se regiamente, dando-se uns aos outros milhões — mas não favoreceriam com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um coquetismo insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde a maneira de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um exclusivismo tão accentuado é interpretado como hostilidade — e pago com odio.

Tudo isto, no emtanto, é a lucta pela existencia. O judeu é o mais forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o musculo, aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente para ser, por seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d’isso, volta-se miseravelmente, covardemente, para o governo e peticiona, em grandes rolos de papel, que seja expulso o judeu dos direitos civis, porque o judeu é rico, e porque o judeu é forte.

 

O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente o movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio do chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia da Allemanha.

Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a peste ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a egreja e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres! Mas a culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não castigaste sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se aos judeus: degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia de supplicios; depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua miseria a esperar a recompensa do Senhor.

Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa — desviava o golpe de si e dirigia-o contra o judeu.

Quando a besta popular mostrava sêde de sangue — servia-se á canalha sangue israelita.

É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck. A Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam a vêr que os seus males vêm dos seus idolos.

Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser grave encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca, com os seus dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza, riqueza inconcebivel, que, como dizia ha dias a Saturday Review, é um phenomeno inquietador e difficil d’explicar.

Portanto, á falta d’uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a attenção do allemão esfomeado — apontando-lhe para o judeu enriquecido. Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas falla nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica a estranha e desastrosa declaração do governo.

Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, Endymion, não me resta, n’esta carta, espaço para rir. Figuram n’elle, sob nomes transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe de Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia, duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual o editor Longman pagou cincoenta e quatro contos de reis fortes.

Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n’este exemplo de ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria, publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido durante alguns annos — primeiro ministro de Inglaterra!