Cartas de Inglaterra (Eça de Queirós)/VII

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VII

A Irlanda e a Liga Agraria


É necessario fallar da Irlanda, fallar da Liga Agraria, fallar de Parnell...

Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta, são o cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de tudo o que em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos caricaturistas. E dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento universal, vae-se exaltar pela questão da Irlanda, como outr’ora pela questão da Polonia.

A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus primeiros enthusiasmos! N’esse tempo, ser polaco era synonimo de ser heroe: e a fórma mais usual da paixão, n’uma alma de vinte annos, não consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir e ir tomar as armas pela Polonia. Em Coimbra, sempre que nos reuniamos mais de quatro amigos, faziamos logo esse projecto, gritando: — Viva a Polonia! Os jornaes transbordavam de poemas á Polonia e de injurias ao Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e compendios para soccorrer a Polonia, em subscripções enthusiasticas. Em beneficio da Polonia eu representei muito melodrama em que ora, virgem trahida e vestida de branco, soluçava com as minhas tranças soltas — ora, traidor, soltando gargalhadas cynicas, cravava um ferro no peito de Condé!

Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848, marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação da Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!» diziam os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida; a França é o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo das nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.»

Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em Paris: e mesmo muito sangue.

Por estes tempos de opportunismo e de naturalismo, a pobre Irlanda não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr’ora á Polonia.

De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois casos differentes. É certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez considerar-se uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma raça opprimida, cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as familias historicas da nação conquistadora, e que desde então tem permanecido em servidão agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os abusos, que esta situação origina, são recobertos pelo regimen parlamentar de um bello verniz de legalidade: e a Irlanda soffre as miserias de um paiz vencido e explorado — mas dentro das fórmas constitucionaes.

O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos arrebatados, imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o Polaco, o irlandez catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle ser heretico de nacionalidade, misturando com o odio politico o conflicto de religião. Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda patriotica da independencia, das revoltas suffocadas, dos agitadores heroicos, legenda que falla á imaginação popular tanto como a mesma religião, inspirando eguaes fanatismos, de tal sorte que o irlandez é tão devoto dos seus santos como dos seus patriotas; como o polaco despreza o russo, assim o irlandez olha o anglo-saxonio como um barbaro e um estupido e tem por elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de improvisadores póde ter por uma raça de criticos e de analistas. Na ordem social, como na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda outras curiosas afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é imitada da Polonia: a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo quem fallará em nome dela, n’um manifesto com o titulo de Opressor e Oprimido.

Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda, o mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais boçal dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar os interesses tyrannicos d’um milhar de ricos proprietarios, deixa na miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia na Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela Lei marcial, como qualquer czar. E, para suspender os planos da Liga Agraria, viola os segredos das cartas.

Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão confusa como o proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na Irlanda começa por haver tres nações distinctas com interesses contradictorios: os irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou orangistas, os inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é sem duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a questão policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc. E sobre cada uma d’estas questões é difficil achar dois irlandezes de accordo. Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como são eloquentes e sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma amplificam e azedam as dissensões.

Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção da Unidade — tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta com os dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado não divirja, de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho. No mundo dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor: a Liga Agraria não aceita os Fenians, e os Fenians abominam as tendencias parlamentares dos Home-rulers: e dentro mesmo do partido dos Home-rulers ha democratas e conservadores. É um numeroso conflicto por toda a pobre Irlanda.

Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica em equilibrio.

Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como evidencia dos perigos que teria essa autonomia.

Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada a si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão de ruinas n’uma poça de sangue.

Se os irlandezes se não entendem bem sobre os males da Irlanda, os inglezes comprehendem-se menos ácerca dos remedios para a Irlanda. E a confusão em que se está provém principalmente da abundancia da discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d’Inglaterra, que não tenha um jornal do tamanho da Gazeta de Noticias, com oito paginas e typo cerrado. E d’alto a baixo esta vastidão de papel, desde que começou a agitação da Liga Agraria, é occupada por estudos e artigos sobre a Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres ou quatro mil gazetas que a pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme: juntem-se-lhe os artigos dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas e dos Magazines, os pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis como as estrellas do céo, os livros e tratados de toda a sorte, os discursos do parlamento, as arengas dos meetings, as conferencias, os sermões, as controversias publicas, as lições, emfim, toda essa colossal litteratura que nestes ultimos mezes tem tomado por assumpto a Irlanda.

E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações, — não é natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n’esta questão da Irlanda, perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n’este cahos mental tenho illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a sinceridade e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a unica coisa nitida e clara que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da confusão irlandeza...

Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os land-lords indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza quando os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria — comer!

Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem a quatrocentos contos de reis — e o infeliz tem ainda uns duzentos contos mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso talvez dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado, a população de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o seu suor e o seu esforço lhe arrancam do sólo este rendimento, — a unica cousa que realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram mais fome e mais frio que de costume: e lá foram em farrapos, e com os pés nús sobre a neve, supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester, que lhes fizesse uma diminuição de dez por cento nas rendas — exageradas, absurdas e devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores, naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem essa liberalidade — e que a repetição d’uma tal supplica não podia ser tolerada.

E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio e para a fome.

Direi de passagem que se o pedido, em logar de ser feito pelos seus rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra, Sua Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a Irlanda é um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a policia fila-o pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez ergue a sua voz de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem, e o edificio monarchico e feudal treme nas suas bases.

Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais tempo possivel esta illustre companhia: quand on prend du Duc on n’en saurait trop prendre) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes são as relações agrarias entre um proprietario, um land-lord, e os seus rendeiros.

 

O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez uma de suas avós, n’uma noite que estava mais decotada, attrahisse o inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da Restauração: d’esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O alegre Stuart era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão tristemente sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos II tinha pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma mesada do rei de França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos, ou de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro para um Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso negocio. Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições sobre um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras da Casa de Leicester...

Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se ao sólo como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza para a America sáe principalmente da população operaria das cidades. Ora, nos contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente á mercê do senhor da propriedade.

O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d’esse nome; mas esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais aceitada pelos proprietarios. N’isto está a origem de todas as miserias da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem todo o producto da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito menos economizar.

Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita reparações, o land-lord dará naturalmente alguma madeira, uma mão-cheia de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a cabana miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos gados; e a esta generosidade regia o land-lord juntará talvez um velho arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se faz embolsar por prestações trimestraes.

Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre.

Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e de ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar.

Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda e amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza tivesse assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais aspera, mais hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza, quando não se apresenta ao trabalhador irlandez sob o aspecto de sólo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pantano.

Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco.

E diz-lhe com a sua ternura de mãe:

— Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia?

O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda a parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e identicos lamaçaes — fica. E é então que se apresenta de novo a generosidade do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é compassiva) a escoar o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer melhoramentos na terra. Sua Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus o recompense!) offerece a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as bençãos do ceu o vistam!) dá os adubos.

E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno a renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como os terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro não póde pagar: dirige-se então ao agiota — ou ao Lord mesmo. E desde esse momento está n’uma rede de dividas, lettras, colheitas empenhadas, juros accumulados, protestos, o demonio — de que jámais se poderá desenredar. O resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente) penhora-o, apossa-se do grão que está nos celleiros, do gado que está nos curraes, do pequeno bragal que está na arca, das arrecadas da mulher, das enxergas — e expulsa-o da casa e da propriedade — da casa que elle talvez construiu, da propriedade que elle com o seu trabalho melhorou! Tal qual como na meia edade.

Estas expulsões, que se chamam evictions, são o terror irlandez. Que ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó entrévada, que se vê d’uma hora para a outra no meio de uma estrada, por um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea de pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto passa-se em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal de legua em legua.

Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando de fome, os doentes levados n’uma padiola, até que se encontre algum rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a familia errante! Mas por pouco tempo — porque todos são pobres, todos estão endividados, todos ameaçados da expulsão...

E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe Chateaux Margaux de 6$000 reis a garrafa, caça, etc. — e aluga a fazenda, d’onde expulsou o miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º 2, como a encontra melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e depois de explorado, sugado, expremido, durante dois ou trez annos, é expulso — para dar logar ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo processo de trituração, et sic per omnia...

E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas, é impossivel que o rendeiro as possa pagar — e viver.

 

Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade, apontada nas suas feições essenciais.

Descendo-se a detalhes — vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça e miseria.

Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo inglez?

Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto oprobio? — dir-me-hão.

Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o chefe da Liga Agraria, na sua celebre entrevista. E eu responderei com as palavras de Parnell.

Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia: pelo menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade, só sentia colera.

E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos seus agitadores. Mas estes homens, desde O’Connell cometteram sempre o erro de misturar as queixas d’um proletariado opprimido ás aspirações d’independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as exigencias dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a Irlanda se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a ordenar que se lhe dê um justo regimen de propriedade.

O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque lhes suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz que só pedia pão e a voz que reclamava autonomia.

E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias. Era, porém, um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão de sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional.

De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse em manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado como d’antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem com um suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!» De facto não se tinha feito nada.

Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada da questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro da constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos land-lords, calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido. Então haveria a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e os seus horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das declamações rebeldes e das agitações separatistas — determinasse dar a tantos males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a Liga Agraria.

Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade — a Liga Agraria, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando introduzia um novo personagem, o heroe providencial, n’um fim de folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes e da sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte. Não se esqueçam que ficamos no momento em que, n’este palco da Historia Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a Liga Agraria.