Casa, não casa/I
Se alguma das minhas leitoras morasse na Rua de S. Pedro da cidade nova, há coisa de quinze anos, e estivesse à janela na noite de 16 de março, entre uma e duas horas, teria ocasião de presenciar um caso extraordinário.
Morava ali, entre a Rua Formosa e a Rua das Flores, uma moça de vinte e dois anos, bonita como todas as heroínas de romances e contos, a qual moça na sobredita noite de 16 de março, entre uma e duas horas, levantou-se da cama e a passo lento foi até à sala com uma luz na mão.
Não estando as janelas fechadas, a leitora, caso morasse defronte, veria a nossa heroína pousar a vela sobre um aparador, abrir um álbum, tirar um retrato, que não saberia se era de homem ou de mulher, mas que eu lhe afirmo ser de mulher.
Tirado o retrato do álbum, pegou a moça na vela, desceu a escada, abriu a porta da rua e saiu. A leitora ficaria naturalmente assombrada com tudo isto; mas que não diria quando a visse seguir pela rua acima, voltar a das Flores, ir até à do Conde, e parar à porta de uma casa?
Justamente à janela dessa casa estava um homem, rapaz ainda, vinte e sete anos, olhando para as estrelas e fumando um charuto.
A moça parou.
O moço espantou-se do caso, e vendo que ela parecia querer entrar, desceu a escada, com uma vela acesa e abriu a porta.
A moça entrou.
— Isabel! exclamou o rapaz deixando cair a vela no chão.
Ficaram às escuras no corredor. Felizmente trazia o moço fósforos na algibeira, acendeu outra vez a vela e fitou os olhos na recém-chegada.
Isabel (tal era o seu verdadeiro nome) estendeu o retrato ao rapaz, sem dizer palavra, com os olhos fitos no ar.
O rapaz não pegou logo no retrato.
— Isabel! exclamou ele outra vez mas já com a voz sumida.
A moça deixou cair o retrato no chão, voltou as costas e saiu. O dono da casa ainda mais aterrado ficou.
— Que é isto? dizia ele; estará louca?
Pôs a vela sobre um degrau da escada, saiu à rua, fechou a porta e seguiu lentamente atrás de Isabel, que foi pelo mesmo caminho até entrar em casa.
O mancebo respirou quando viu Isabel entrar na casa; mas ficou ali alguns instantes, a olhar para a porta, sem nada compreender e ansioso por que chegasse o dia. Todavia era forçoso voltar para a Rua do Conde; lançou um último olhar às janelas da casa e retirou-se.
Ao entrar em casa apanhou o retrato.
— Luísa! disse ele.
Esfregou os olhos como se duvidasse do que via, e ficou parado na escada a olhar largos minutos para o retrato.
Era preciso subir.
Subiu.
— Que quererá isto dizer? disse ele já em voz alta como se falasse a alguém. Que audácia foi essa de Isabel? Como é que uma moça, filha de família, sai assim de noite para... Mas estarei eu sonhando?
Examinou o retrato, e viu que tinha nas costas as seguintes linhas:
À minha querida amiga Isabel, como lembrança de eterna amizade. Luísa.
Júlio (era o nome do rapaz) não pôde descobrir nada por mais que parafusasse, e parafusou muito tempo, já deitado no sofá da sala, já encostado à janela.
E na verdade quem seria capaz de descobrir o mistério daquela visita a semelhante hora? Tudo parecia antes uma cena de drama ou romance tétrico, do que um ato natural da vida.
O retrato... O retrato tinha certa explicação. Júlio andava quinze dias antes a trocar cartas com o original, a formosa Luísa, moradora no Rocio Pequeno, hoje Praça Onze de Junho.
Todavia, por mais agradável que lhe fosse receber o retrato de Luísa, como admitir a maneira por que lho levaram, e a pessoa, e a hora, e as circunstâncias?
— Sonho ou estou doido! concluiu Júlio depois de longo tempo.
E chegando à janela, acendeu outro charuto.
Nova surpresa o esperava.
Vejamos qual foi ela.