Casa de Pensão/II
No dia seguinte mudava-se Amâncio para a casa do Campos. Seria por pouco tempo — até que descobrisse um "cômodo definitivo".
Deixou com algum pesar o hotel. Aquela vida boêmia, com os seus almoços em mesa-redonda, o seu quartinho, uma janela sobre os telhados, e a plena liberdade de estar como bem entendesse, tinha para ele um sedutor encanto de novidade.
Nunca saíra do Maranhão; vira de longe a Corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de Janeiro, afigurava-se-lhe um Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock, um Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes e costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província.
Há muito tempo ardia de impaciência por tal viagem: pensara nisso todos os dias; fizera cálculos, imaginara futuras felicidades. Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de horas, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente romântico, como o de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade, velha, cheia de ruas tenebrosas, cheias de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas; fidalgas encantadoras e libertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo. E Amâncio sentia necessidade de dar começo àquela existência que encontrara nas páginas de mil romances. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos de alcova e loucuras de paixão.
Entretanto, o seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente o contrário. Ninguém, contemplando aquele insignificante rosto moreno, um tanto chupado, aqueles pômulos salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade quase infantil, aquela boca estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados, ninguém acreditaria que ali estivesse um sonhador, um sensual, um louco.
Sua pequena testa, curta e sem espinhas, margeada de cabelos crespos, não denunciava o que naquela cabeça havia de voluptuoso e ruim. Seu todo acanhado, fraco e modesto, não deixava transparecer a brutalidade daquele temperamento cálido e desensofrido.
Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português antigo e austero, desses que confundem o respeito com o terror. Em pequeno levou muita bordoada; tinha um medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de um inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a voz ou lhe sentia os passos. Se acaso algumas vezes se mostrava dócil e amoroso, era sempre por conveniência: habituou-se a fingir desde esse tempo.
Sua mãe, D. Ângela, uma santa de cabelos brancos e rosto de moço, não raro se voltava contra o marido e apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-se-lhe às saias fora de si, sufocado de soluços.
Aos sete anos entrou para a escola. Que horror!
O mestre, um tal de Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito de ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.
Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios dos outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável.
Todos os pequenos da aula tinham birra ao Pires. Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre; mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam-se satisfeitas; riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça, e afinal, coitadas! iam-se habituando ao servilismo e à mentira.
Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de "endireitar os filhos".
Elogiavam-lhe a rispidez, recomendavam-lhe sempre que "não passasse a mão pela cabeça dos rapazes" e que, quando fosse preciso, "dobrasse por conta deles a dose de bolos".
Ângela, porém, não era dessa opinião: não podia admitir que seu querido filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho, que ela afagava com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada com os seus beijos — fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela ordem! "Ora! isso não tinha jeito!"
Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em cima: Que deixasse lá o pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas!
Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado. Adquiriu tal fama com o seguinte fato:
Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra.
Um dia pegaram-se mais seriamente. Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares.
Fez-se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com afetação. Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada.
Houve rumor. Pires levantou-se, tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato.
Amâncio foi único acusado.
— Sr. Vasconcelos! — gritou o mestre — por que espancou aquele menino?
Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe.
— É mentira! protestou o novo acusado.
— Que disse ele?! perguntou Pires.
Amâncio repetiu o insulto que recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas.
— Cale-se atrevido! berrou o professor encolerizado a tocar a campainha. — Mariola! Dizer tal coisa em pleno recinto de aula!
E, puxando a pura força o delinquente para junto de si, ferrou-lhe meia dúzia de palmatoadas.
Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.
— Ah! ele é isso? exclamou o professor. — Tens gênio, tratante?! Ora espera! isso tira-se.
E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.
Este declarou formalmente que não se submetia ao castigo. O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam colados contra a palma.
O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo.
Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo.
Um "Oh!" formidável encheu a sala. Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido. A aula ergueu-se em peso, com grande desordem. Caíram bancos e derramaram-se tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua.
Mas quatro pontapés puseram em fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cinquenta estudantes o levaram à presença do Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória.
Amâncio sofreu novo castigo; serviu de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou a casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada.
Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens:
— Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa mais forte!...
Só Ângela, sua adorada, sua santa mãe, à noite, ao beijá-lo antes de dormir, depois de lhe perguntar se ficara muito magoado com o castigo, segredara-lhe entre lágrimas que "ele fizera muito bem..."
Como aquele, outros fatos se deram na meninice de Amâncio. Todas às vezes que lhe aparecia um ímpeto de coragem, sempre que lhe assistia um assomo de dignidade, sempre que pretendia repelir uma afronta, castigar um insulto, o pai, ou professor, caía-lhe em cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos.
Ficou medroso e descarado.
No fim de algum tempo já podiam na escola insultar a mãe quantas vezes quisessem que ele não se abalaria; podiam lançar-lhe em rosto as ofensas que entendessem porque ele se conservaria impassível. Temia as consequências de qualquer desafronta. "Estava domesticado", segundo a frase do Pires.
Todavia, esses pequenos episódios da infância, tão insignificantes na aparência, decretaram a direção que devia tomar o caráter de Amâncio. Desde logo habituou-se a fazer uma falsa idéia de seus semelhantes; julgou os homens por seu pai, seu professor e seus condiscípulos. — E abominou-os. Principiou a aborrecê-los secretamente, por uma fatalidade de ressentimento; principiou a desconfiar de todos, a prevenir-se contra tudo, a disfarçar, a fingir que era o que exigiam brutalmente que ele fosse.
Nunca lhe deram liberdade de espécie alguma: Se lhe vinha uma idéia própria e desejava pô-la em prática, perguntavam-lhe "a quem vira ele fazer semelhante asneira".
Convenceram-mo de que só devemos praticar aquilo que outros já praticaram. Opunham-lhe sempre o exemplo das pessoas mais velhas; exigiam que ele procedesse com o mesmo discernimento de que dispunham seus pais.
E os rebentões da individualidade, e o que pudesse haver de original no seu caráter e na sua inteligência, tudo se foi mirrando e falecendo, como os renovos de uma planta que regassem diariamente com água morna.
À mesa devia ter a sisudez de um homem. Se lhe apetecia rir, cantar, conversar, gritavam-lhe logo: "Tenha modo, menino! Esteja quieto! comporte-se!"
E Amâncio, com medo da bordoada, fazia-se grave, e cada vez ia-se tornando mais hipócrita e reservado. Sabia afetar seriedade, quando tinha vontade de rir; sabia mostrar-se alegre, quando estava triste; calar-se, tendo alguma recriminação a fazer; e, na igreja, ao lado da família, sabia fingir que rezava e sabia aguentar por mais de uma hora a máscara de um devoto.
Como o pai o queria inocente e dócil, ele afetava grande toleima, fazia-se um ingênuo, muito admirado com as coisas mais simples.
— É uma menina!... dizia a mãe, convicta — Amancinho tem já dez anos e conserva a candura de um anjo!
Vasconcelos nunca o puxava para junto de si, nem conversava com ele, o interrogava; e quando a infeliz criança, justamente na idade em que a inteligência se desabotoa, ávida de fecundação, fazia qualquer pergunta, respondiam-lhe com um berro: "Não seja bisbilhoteiro, menino!"
Amâncio emudecia e abaixava os olhos, mas logo que o perdiam de vista, ia escutar e espreitar pelas portas.
Com semelhante esterco não podia desabrochar melhor no seu temperamento o leite, que lhe deu a mamar uma preta da casa.
Diziam que era uma excelente escrava: tinha muito boas maneiras; não respingava aos brancos, não era respondona: aturava o maior castigo sem dizer uma palavra mais áspera, sem fazer um gesto mais desabrido. Enquanto o chicote lhe cantava nas costas, ela gemia apenas e deixava que as lágrimas lhe corressem silenciosamente pelas faces.
Além disso — forte, rija para o trabalho. Poderia nesse tempo valer bem um conto de réis.
Vasconcelos a compara, todavia, muito em conta, "uma verdadeira pechincha!", porque o demônio da negra estava então que valia duas patacas; mas o senhor a metera em casa, dera-lhe algumas garrafadas de laranja-da-terra, e a preta em breve começou a deitar corpo e a endireitar, que era aquilo que se podia ver!
O médico, porém, não ia muito em que a deixassem amamentar o pequeno.
— Esta mulher tem reuma no sangue, dizia ele — e o menino pode vir a sofrer para o futuro.
Vasconcelos sacudiu os ombros e não quis outra ama.
— O doutor que se deixasse de partes!
A negra tomou muita afeição à cria. Desvelava por ela noites consecutivas e, tão carinhosa, tão solícita se mostrou, que o senhor, quando o filho deixou a mama, consentiu em passar-lhe a carta de alforria por seiscentos mil-réis, que ela ajuntara durante quinze anos. Mas a preta não abandonou a casa de seus brancos e continuou a servir, como dantes; menos, está claro, no que dizia respeito aos castigos, porque a desgraçada, além de forra, ia já caindo na idade.
Amâncio dera-lhe bastante que fazer. Fora um menino levado da breca; só não chorava enquanto dormia e quando se punha a espernear, não havia meio de contê-lo.
Era muito feio em pequeno. Um nariz disforme, uma boca sem lábios e dois rasgões no lugar dos olhos. Não tinha um fio de cabelo e estava sempre a fazer caretas.
A princípio — muito achacado de feridas, coitadinho! Os pés frios, o ventre duro constantemente.
Levou muito para andar e custou-lhe a balbuciar as primeiras palavras. Ângela adorava-o com entusiasmo do primeiro parto; por duas vezes supôs vê-lo morto e deu promessas aos santos da sua devoção.
Conseguiram fazê-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos.
Quando acabou as primeiras letras, não era, entretanto, dos rapazes mais débeis da aula do Pires. Para isso contribuíram em grande parte uns passeios que costumava dar, pelas férias, à fazenda de sua avó materna, em São Bento.
Esses passeios representavam para Amâncio a melhor época do ano. A avó, uma velha quase analfabeta, supersticiosa e devota, permitia-lhe todas as vontades e babava-se de amores por ele. O rapaz escondia-lhe o cachimbo, pisava-lhe os canteiros da horta, divertia-se em quebrar a pedradas as lamparinas dos santos suspensas na capela, e, às vezes, quando não estava de boa maré, atirava com os pratos nos escravos que serviam à mesa.
A avó ralhava, mas não podia conter o riso. O netinho era o seu encanto, o fraco de sua velhice; só um pedido daquele diabrete faria suspender o castigo dos negros e desviar do serviço da roça algum dos moleques — para ir brincar com Nhôzinho. Estava sempre a dizer que se queixava ao genro e que o devolvia para a cidade; mas no ano seguinte, se Amâncio não aparecia logo no começo das férias, choviam os recados da velha em casa de Vasconcelos, rogando que lhe mandassem o neto.
— Mande! mande o pequeno! aconselhava o médico.
E lá ia Amâncio.
Só aos doze anos fez o seu exame de português na aula do Pires.
Houve muita formalidade. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis; havia vinte e tantos examinandos. Amâncio tremia naqueles apuros. Não tinha em si a menor confiança.
Foi, contudo, "aprovado plenamente". Mas não sabia nada, quase que não sabia ler. Da gramática apenas lhe ficaram de cor algumas regras, sem que ele compreendesse patavina do que elas definiam. Pires nunca explicava: — se o pequeno tinha a lição de memória, passava outra, e, se não tinha, dava-lhe algumas palmatoadas e dizia-lhe que trouxesse a mesma para o dia seguinte.
Mas, enfim, estava habilitado a entrar para o Liceu onde iria cursar as aulas de francês e geografia.
O Liceu, que bom! — oh! Aí não havia castigos, não havia as pequenas misérias aterradoras da escola! Não poderia faltar às aulas, é certo; mas, em todo o caso, estudaria quando bem entendesse e, lá uma vez por outra, havia de "fazer a sua parede"!
E, só com pensar nisso, só com se lembrar de que já não estava ao alcance das garras do maldito Pires, o coração lhe saltava por dentro, tomado de uma alegria nervosa.
O Vasconcelos quis festejar o exame do filho, com um jantar oferecido aos senhores examinadores e aos velhos amigos da família.
À noite houve dança. Amâncio convidou os companheiros do ano; compareceram somente os pobres — os que não tinham em casa também a sua festa.
O pai, por instâncias de Ângela, fizera-lhe presente de um relógio com a competente cadeia, tudo de ouro. A avó, que se abalara da fazenda para assistir ao regozijo do seu querido mimalho, trouxera-lhe de presente um moleque, o Sabino.
Amâncio, todo cheio de si, a rever-se na sua corrente e a consultar as horas de vez em quando, foi nesse dia o alvo de mil felicitações, de mil brindes e de mil abraços.
Alguns amigos do pai profetizavam nele uma glória da pátria e diziam que o João Lisboa, o Galvão e outros, não tinham tido melhor princípio.
Lembraram-se todas as partidas engraçadas de Amâncio, vieram à baila os repentes felizes que o diabrete tivera até aí. Na cozinha a mãe preta, a ama, contava às parceiras as travessuras do menino e, com os olhos embaciados de ternura, com uma espécie de orgulho amoroso, referia sorrindo os trabalhos que ele lhe dera, as noites que ela desvelara.
— Já em pequeno, diziam — era muito sabido, muito esperto! enganava os mais velhos; tinha lábias, como ninguém, para conseguir as coisas, e sabia empregar mil artimanhas para obter o que desejava! — Não! definitivamente não havia outro!
Ângela, a um canto da varanda, assentada entre as suas visitas, seguia o filho com um olhar temperado de mágoa e doçura.
— O que lhe estaria reservado?... o que o esperaria no futuro?... cismava a boa senhora, meneando tristemente a cabeça — oh! às vezes cria-se um filho com tanto amor, com tanto amor, com tanta lágrima, para depois vê-lo andar por aí aos trambolhões, nesse mundo de Cristo!... E a idéia de que, talvez, nem sempre o teria perto de si, que nem sempre o poderia obrigar a mudar a camisa quando estivesse suado; obrigá-lo a tomar o remédio quando estivesse doente; obrigá-lo a comer, a dormir com regularidade; a evitar, enfim, tudo que lhe pudesse prejudicar a saúde; oh! a idéia de tudo isso lhe entrava no coração como um sopro gelado, e fazia tremer a pobre mãe.
— Ai! ai! disse ela.
— Que suspiros são esses, D. Ângela? perguntou o Dr. Silveira, que estava ao seu lado. Homem íntimo da casa e figura conhecida na política da terra.
— Malucando cá comigo... respondeu a senhora. E como o outro estranhasse a resposta: — Quem tem filho, tem cuidados, senhor doutor!...
— Oh! oh! exclamou este, com um gesto autorizado, abrindo muito a boca e os olhos. — A quem o diz, Sr.ª D. Ângela, a quem o diz... Só eu sei o que me custam esses quatro pecados que aí tenho!...
E para provar que dizia a verdade, teria falado nos seus cabelos brancos, se não os pintasse.
Quando Ângela se afligia daquele modo, sendo rica; quanto mais ele — pobre jurisconsulto, com pequenos vencimentos e uma família enorme!...
— Ah, os tempos vão muito maus...
Puseram-se logo a falar na ruindade dos tempos. "Estava tudo pela hora da morte! — Comia-se dinheiro!"
Mas Silveira voltara-se rapidamente para dar atenção a Amâncio, que acabava de aproximar-se, em silêncio, com o ar presumido de quem tinha consciência de que toda aquela festa lhe pertencia.
— Então, meu estudante! — disse o jurisconsulto, empinando a cabeça. — Já escolheu a carreira que deseja seguir?
— Marinha, respondeu Amâncio secamente.
A farda seduzia-o. Nada conhecia "tão bonito" como um oficial de marinha.
A mãe riu-se com aquela resposta, e olhou em torno de si, chamando a atenção dos mais para o desembaraço do filho.
À meia-noite foram todos de novo para a mesa. Vasconcelos era muito rigoroso quando recebia gente em casa; queria que houvesse toda a fartura de vinhos e comidas. Os brindes reapareceram. Abriram-se garrafas de Moscato d'Asti, Chateau Yquem e Champagne.
Conversou-se a respeito dos vinhos de Vasconcelos. "O Maranhão era incontestavelmente uma das províncias onde melhor se bebia!"
Do meio para o fim da ceia, Amâncio sentiu-se outro.
Em uma ocasião que o pai se afastara da mesa, ele pediu um brinde e cumprimentou as "pessoas presentes".
Este fato causou delírios. O próprio pai não se pôde conter e disse entredentes, a rir:
— Ora o rapaz saiu-me vivo!
Ângela abraçou o filho, chorando de comovida.
— Que lhe disse eu?... resmungou delicadamente Silveira ao ouvido dela. — Este menino promete! Dêem-lhe asas e hão de ver... dêem-lhe asas!...
Amâncio foi coberto de ovações. Batiam-se no copo, faziam-lhe saúdes. Ele a todos respondia, rindo e bebendo.
Daí a uma hora recolheram-no à cama da mãe, porque lhe aparecera uma aflição na boca do estômago; mas vomitou logo e adormeceu depois, completamente aliviado.
Foi a sua primeira bebedeira.
Aos quatorze anos prestou exame de francês e geografia e matriculou-se na aulas de gramática geral e inglês.
Já eram válidos felizmente, os exames do Liceu do Maranhão, e com as cartas que daí houvesse, podia entrar nas academias da Corte.
Amâncio, depois da escola do Pires, nunca mais voltou a passar férias na fazenda da avó. Preferia ficar na cidade: tinha namoros, gostava loucamente de dançar, já fumava e já fazia pândegas grossas com os colegas do Liceu.
Como o pai não lhe dava liberdade, nem dinheiro, e como exigia que ele às nove horas da noite se recolhesse à casa, Amâncio arranjava com a mãe os cobres que podia e, quando a família já estava dormindo, evadia-se pelos fundos do quintal. Era Sabino quem lhe abria e fechava o portão.
O moleque gostava muito dessas patuscadas. O senhor-moço levava-o às vezes em sua companhia. Amigos esperavam por eles lá fora, reuniam-se; tinham um farnel de sardinhas, pão, queijo, charutos e vinhos. Era pagodear até pela madrugada!
Se havia chinfrim — entravam, ou então iam tomar banho no Apicum ou cear ao Caminho Grande. Em noites de luar faziam serenatas; aparecia sempre alguém que tocasse violão ou flauta ou soubesse cantar chulas e modinhas. Aos sábados o passeio era maior; no dia seguinte Amâncio estava a cair de cansaço, aborrecido, necessitando de repouso.
Mas não deixava de ir — Era tão bom passear pela rua, quando toda a população dormia, fumar, quando tinha certeza de que nenhum dos amigos de seu pai o pilharia com o charuto no queixo; era tão bom beber pela garrafa, comer ao relento e perseguir uma ou outra mulher que encontrassem desgarrada, a vagar pelos becos mal iluminados da cidade!
Tudo isso lhe sorria por prisma voluptuoso e romanesco.
Às vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia dormir logo; vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios.
E afinal adormecia, lendo Mademoiselle de Maupin, Olympia de Clèves ou Confession d'un enfant du siècle.
Não penetrava bem na intenção deste último livro, mas tinha-o em grande conta e, visto conhecer a biografia de Musset, embriagava-se com essa leitura; ficava a sonhar fantasias estranhas, amores céticos, viagens misteriosas e paixões indefinidas.
As criadas da casa ou as mulatinhas da vizinhança já o enfaravam; era preciso descobrir amores mais finos, mais dignos, que, nem só lhe contentassem a carne, como igualmente lhe socorressem as ânsias da imaginação.
Por esse tempo leu a Graziella e o Raphael de Lamartine. Ficou possuído de uma grande tristeza; as lágrimas saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu necessidade de amar por aquele processo, mergulhar na poesia, esquecer-se de tudo que o cercava, para viver mentalmente nas praias de Nápoles, ou nas ilhas adoráveis da Sicília, cujos nomes sonoros e musicais lhe chegavam ao coração como o efeito de uma saudade, de uma nostalgia inefável, profunda, sem contornos, que o atraía para um outro mundo desconhecido, para uma existência que lhe acenava de longe, a puxá-lo com todos os tentáculos do seu mistério e da sua irresistível melancolia.
Uma ocasião, deitado ao pé da janela de seu quarto, pensava em Graziella.
À tarde precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de tons plangentes e doloridos. A um canto da rua um italiano tocava uma peça no seu realejo. Era a Marselhesa.
Amâncio conhecia algumas passagens da revolução de França: lera os Girondinos, de Lamartine. E a reminiscência do sentimentalismo enfático dessa obra, coada pela retórica poderosa da música de Lisle, trouxe-lhe aos nervos um sobressalto muito mais veemente que das outras vezes.
Julgou-se infeliz, sacrificado nas suas aspirações, no seu ideal. Precisava viver, gozar, gozar sem limites!... Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do Liceu, mas além, muito além, onde não fosse conhecido, onde tudo para ele apresentasse surpresas de uma outra vida, atrativos de um mundo vasto, enorme, que sua imaginação mal podia delinear.
Por isto estimou deveras ter de seguir para o Rio de Janeiro. A Corte era "um Paris", diziam na província, e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas, impressões novas e amores, — oh! amores principalmente!
E, com efeito, desde que pôs o pé a bordo, principiou a gozar a impressão de novidade, produzida no seu espírito pela viagem.
A circunstância de achar-se em um paquete sozinho, ouvindo o ronrom monótono da máquina e sentindo, como nos romances, as vozes misteriosas dos elementos sussurrarem à volta de seus ouvidos — encantava-o. Prestava muita atenção ao mais pequeninos episódios de bordo: olhava interessado para a grossa figura dos marinheiros que baldeavam pela manhã o tombadilho, a dançar com a vassoura aos pés; estudava o tipo dos outros passageiros, procurando descobrir em cada qual um personagem de seus livros favoritos; ao abrir e fechar das portas do camarotes, espiava sempre, e às vezes lobrigava de relance, ao fundo no beliche, uma figura pálida, ofegante, toda descomposta na imprudência do enjôo.
Ele é que nunca enjoava. À noite ia fumar para a tolda, estendido sobre um banco, as pernas cruzadas, os olhos perdidos pelo oceano.
Vinham-lhe então as nostalgias da província: o coração dilatava-se por um sentimento morno de saudade. Via defronte de si o vulto carinhoso de sua mãe, a chorar, com o rosto escondido no lenço, o corpo sacudido pelos soluços.
Quanto não custou à pobre mulher separar-se ao filho?... Que violência não foi preciso para lho arrancarem dos braços! foi como se pela segunda vez lho tirassem a ferro das entranhas.
Antes mesmo da partida de Amâncio, muito sofrera a mísera com a idéia daquela separação. Pensava nisso a todo instante, sem se poder capacitar de que ele devia ir, atirado a bordo de um vapor, tão sozinho, tão em risco de perigos. "Oh! era muito duro! Era muito duro!..." Mas Vasconcelos opunha-lhe argumentos terríveis: — O rapaz precisava fazer carreira, ter uma posição! Não seria agarrado às saias da mãe que iria pra diante! Há muito mais tempo devia ter seguido — o filho de fulano fora aos quinze anos; o de beltrano voltara com vinte e três, e Amâncio já tinha vinte. Ia tarde! Ângela que se deixasse de pieguices. Justamente por estimá-lo é que devia ser a primeira a querer que ele fosse, que se instruísse, que se fizesse homem! além disso o rapaz poderia visitá-la pelas férias, nem sempre, mas de dois em dois anos.
Ângela parecia resignar-se com as palavras de Vasconcelos; fazia-se forte: jurava que "não era egoísta", que "não seria capaz de cortar a carreira de seu filho"; mal porém, o marido lhe dava as costas, voltava-lhe a fraqueza; vinham-lhe as lágrimas, tornavam as agonias. Por vezes, no meio do jantar, enquanto os outros riam e conversavam, ela, que até aí estivera a pensar, abria numa explosão de soluços e retirava-se para o quarto, aflita, envergonhada de não poder dominar aquele desespero. Outras vezes acordava por alta noite, a gritar, a debater-se, a reclamar o filho, a disputá-lo contra os fantasmas do pesadelo.
No dia da viagem não se pôde levantar da cama, tinha febre, vertigens; a cabeça andava-lhe à roda. E não queria mais ninguém perto de si, além do filho, só ele! "Não a privassem de Amâncio ao menos naquele dia!" E tomava-o nos braços, procurava agasalhá-lo ao colo, com fazia dantes, quando ele era pequenino. Afagavalhe a cabeça, beijava-lhe os cabelos, prendia-o contra o seio. Depois, voltava a acarinhá-lo, beijava-lhe de novo as mãos, os olhos, o pescoço, envolvia-o tudo em mimos, como, se, na santa loucura de seu amor, imaginasse que eles lhe preservariam o filho contra os escolhos da jornada e contra os futuros perigos que o ameaçavam.
— Minha pobre mãe!... suspirava Amâncio no tombadilho, derramando o olhar lacrimoso pela inconstante planície das águas.
— Minha pobre mãe!...
E vinham-lhe então fundas saudades de sua terra, de sua casa e de seus parentes. As palavras de Ângela palpitavam-lhe em torno da cabeça, com uma expressão de beijos estalados. Lembrava-se dos últimos conselhos que ela lhe dera, das suas recomendações, das suas pequeninas providências; de tudo isso, porém, o que mais lhe ficara grudado à memória foi o que lhe disse a boa velha, muito em particular, a respeito de dinheiro. "Se te não chegar a mesada, ou se te vierem a faltar os recursos, escreve-me logo duas linhas, que eu te mandarei o que precisares. Mas não convém que teu pai saiba disto..."
Para as primeiras despesas na corte e para os gastos nas províncias, juntem, ao que dera Vasconcelos ao filho, mais quinhentos mil-réis; não achava bom, entretanto, que Amâncio saltasse em todos os portos. "Era muito arriscado! Ele não se devia expor de semelhante forma!"
E a lembrança do dinheiro puxou logo outras consigo e arremessou-o no frívolo terreno de seus devaneios voluptuosos. Vieram as recordações; começou a desenfiar mentalmente o rosário dos amores que acumulara dos quinze anos até ali.
Era um rosário extravagante; havia contas de todos os matizes e de todos os feitios.
Entre elas, porém, só três se destacavam, três belas contas de marfim: a filha mais velha do Costa Lobo, a mulher de um comendador, amigo de seu pai, e uma viúva de um oficial do Exército.
E só. Todas as suas outras conquistas não valiam nada; de algumas tinha, contudo, bem boas recordações: a Francisca de Vila do Paço, por exemplo — uma caboclinha, que se apaixonou por ele e vinha persegui-lo até à cidade, uma espanhola, mulher de um tipo barbado e calvo, que andava a mostrar figuras de cera pelas províncias do Norte, uma senhora gorda, amasiada com um boticário, da qual elogiavam muito as virtudes, mas que um dia atirou-se brutalmente sobre Amâncio, dizendo que o amava e trincando-lhe os beiços.
E como estas, outras e outras recordações foram-se enfiando e desenfiando pelo espírito sensual e mesquinho do vaidoso, até deixá-lo mergulhado na apatia dos entes sem ideais e sem aspirações.
Mas, já não queria pensar nesses amores da província; tudo isso agora se lhe afigurava ridículo e acanhado. A Corte, sim! é que lhe havia de proporcionar boas conquistas. "Ia principiar a vida!!"
E, nessa disposição, chegou ao Rio de Janeiro.