Casa de Pensão/III

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Estava hospedado havia dois dias em Casa do Campos; esse tempo levara ele a entregar cartas e encomendas. À noite, fatigado e entorpecido pelo calor, mal tinha ânimo para dar uma vista de olhos pelas ruas da cidade.

Entretanto, a vida externa o atraía de um modo desabrido; estalava por cair no meio desse formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja vibração lhe chegava aos ouvidos como os ecos longínquos de uma saturnal. Queria ver de perto o que vinha a ser essa grande Corte, de que tanto lhe falavam; ouvira contar maravilhas a respeito das cortesãs cínicas e formosas, ceias pela madrugada, passeios pelo Jardim Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado; — e tudo isso o atraía em silêncio, e tudo isso o fascinava, o visgava com o domínio secreto de um vício antigo.

Mas por onde havia de principiar?... Não tinha relações, não tinha amigos que o encaminhassem!... Além disso, Campos estava sempre a lhe moer o juízo com as matrículas, com a entrada na academia, com um inferno de obrigações a cumprir, cada qual mais pesada, mais antipática, mais insuportável!

— Olhe, seu Amâncio, que o tempo não espicha — encolhe!... É bom ir cuidando disso!... repetia-lhe o negociante, fazendo ar sério e compenetrado. Veja agora se vai perder o ano! Veja se quer arranjar por aí um par de botas!...

Amâncio fingia-se logo muito preocupado com os estudos e falava calorosamente na matrícula.

— Mexa-se então, homem de Deus! bradava o outro. Os dias estão correndo!...

Afinal, graças aos esforços do Campos, conseguiu matricular-se na academia, duas semanas depois de ter chegado ao Rio de Janeiro.

O medo às matemáticas levara-o a desistir da Marinha e agarrar-se à Medicina, como quem se agarra a uma tábua de salvação: pois o Direito, se bem que, para ele, fosse de todas as formaturas a mais risonha, não lhe servia igualmente, visto que Amâncio não estava disposto a deixar a Corte e ir ser estudante na província.

A Medicina, contudo, longe de seduzi-lo, causava-lhe um tédio atroz. Seu temperamento aventuroso e frívolo não se conciliava com as frias verdades da cirurgia e com as pacientes investigações da terapêutica. Pressentia claramente que nunca daria um bom médico, que jamais teria amor à sua profissão.

Esteve a desistir logo nos primeiros dias de aula: o cheiro nauseabundo do anfiteatro da escola, o aspecto nojento dos cadáveres, as maçantes lições de Química, Física e Botânica, as troças dos veteranos, a descrição minuciosa e fatigante da Osteologia, a cara insociável dos explicadores; tudo isso, o fazia vacilar; tudo isso lhe punha no coração um duro sentimento de má vontade, uma antipatia angustiosa, um não querer doloroso e taciturno.

Às vezes, no entanto, pretendia reagir: atirava-se ao Baunis Bouchard e ao Vale, disposto a ler durante horas consecutivas, disposto a prestar atenção, a compreender; mal, porém, ele se entregava aos compêndios, o pensamento, pé ante pé, ia-se escapando da leitura, fugia sorrateiramente pela janela, ganhava a rua, e prendia-se ao primeiro frufru de saia que encontrasse.

E Amâncio continuava a ler a estranha tecnologia da ciência, a repetir maquinalmente, de cor, os caracteres distintivos das vértebras, ou a cismar abstrato nas propriedades do cloro e do bromo, sem todavia conseguir que patavina daquilo lhe ficasse na cabeça.

— Não haver uma academia de Direito no Rio de Janeiro! lamentava ele, bocejando, a olhar vagamente a sua enfiada de vértebras, que havia comprado no dia anterior.

Porque, no fim de contas, tudo que cheirasse a ciência de observação o enfastiava: "Deixassem lá, que a tal Osteologia e a tal Química nada ficavam a dever às Matemáticas!..."

Ah! o Direito, o Direito é que, incontestavelmente, devia ser a sua carreira. Preferia-o por achá-lo menos áspero, mais tangível, mais dócil, que outra qualquer matéria. E esse mesmo...Valha-me Deus! tinha ainda contra si o diabo do latim, que era bastante para o tornar difícil.

E lembrar-se Amâncio de que havia por aí criaturas tão dotadas de paciência, tão resignadas, tão perseverantes, que se votavam de corpo e alma ao cultivo das artes... das artes, que, segundo várias opiniões, exigiam ainda mais constância e mais firmeza do que as ciências!... Com efeito! Era preciso ter muita coragem, muito heroísmo, porque as tais belas-artes, no Brasil, nem sequer ofereciam posição social, nem davam sequer um titulozinho de doutor!

— Qual! Não seria com ele!... Fosse gastando quem melhor quisesse a existência na concepção de um bom quadro, de uma boa estátua, de uma ópera genial ou de um bom livro de literatura, que ele ficava cá de fora — para apreciar. O mais que podia fazer, era — aplaudir; aplaudir e pagar! — E já não fazia pouco!...

Isso justamente ouviu, por mais de uma vez, da boca de seu pai. O velho Vasconcelos nunca tomou a sério os artistas "Uns pedaço-d'asnos!" qualificava ele, e, de uma feita em que o Franco de Sá lhe comunicou os seus projetos de estudar pintura na Europa, o negociante fez uma careta e exclamou, batendo-lhe no ombro: "Homem, seu Sazinho! não seria eu que lhe aconselhasse semelhante cabeçada... porque, meu amigo, isto de artes é uma cadelagem! Procures meios de obter cobres, e o senhor terá à sua disposição os artistas que quiser!"

— E nisto tinha o velho toda a razão, pensava Amâncio. Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudo de certas ciências... como a Medicina... Sim! porque, afinal, com dinheiro também obtemos os médicos de que precisamos, e não vale a pena, por conseguinte, gramar seis anos de academia e curtir as maçadas que estou aqui suportando, sabe Deus como!

— Mas, neste caso, a questão muda muito de figura!... dizia-lhe em resposta uma voz que vinha de dentro do seu próprio raciocínio. Não se trata aqui de fazer um "médico", trata-se de fazer um "doutor", seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma "profissão", trata-se de obter um "título". Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade.

— Visto isso, porém, objetava Amâncio, quero crer que o mais acertado seria comprar uma carta na Bélgica ou na Alemanha, e mandar ao diabo, uma vez por todas, aquela peste de Medicina!

Ora, Medicina! Medicina servia para algum moço pobre que precisasse viver da clínica; ele não estava nessas circunstâncias. Era rico! só com o que lhe tocava por parte materna, podia passar o resto da vida sem se fatigar!... Por que, pois, sofrer aquelas apoquentações do estudo? Por que razão havia de ficar preso aos livros, entre quatro paredes, quando dispunha de todos os elementos para estar lá fora, em liberdade, a divertir-se e a gozar?!...

Mas uma idéia sustinha-lhe o vôo do pensamento; o vulto angélico de sua mãe vinha colocar-se defronte dele, abrindo os braços, como se o quisesse proteger de um abismo.

Ah! quanto empenho não fazia a pobre velha em vê-lo formado às direitas, numa faculdade do Brasil... Vê-lo doutor!...

— Doutor, hein?! repetia Amâncio, meio animado com o prestígio que ao nome lhe daria o título.

E ligava-os mentalmente, para ver o efeito que juntos produziam:

— Doutor Amâncio! Doutor Amâncio de Vasconcelos! Não fica mal! não fica! A mãe tinha razão. Era preciso ser doutor!

E quanto gosto, que prazer, não sentiria nisso a querida velha!... Oh! ele agora pensava em Ângela com muito mais ternura; nela resumia toda a família e tudo que houvesse de bom no seu passado. Só com a ausência pôde avaliar o muito que a respeitava e o muito que a estremecia. Ele, que não chorara ao despedir-se da mãe; ele, que algumas vezes chegou até a aborrecer-se de seus desvelos e da insistência de seus carinhos — agora não a podia ter na memória, sem ficar com o coração opresso e os olhos relentados de pranto. Pungia-lhe a consciência uma espécie de remorso por não se ter mostrado mais afetuoso e mais amigo, enquanto a possuiu perto de si, por não ter melhor aproveitado essa ocasião para deixar bem patente que sabia ser "bom filho".

E punha-se então a mentalizar planos de melhor conduta para quando voltasse ao lado de Ângela; considerava os mimos que teria com ela, os afagos que lhe havia de dispensar, os beijos que lhe havia de pedir.

— Ah! Se naquele momento ele a tivesse ali, o que não lhe diria!

E, por uma necessidade urgente de expansão, levantou-se da cadeira em que estava e correu à secretária, disposto a escrever uma carta, longa, à sua mãe. Precisava queixar-se do isolamento em que vivia, contar-lhe as suas tristezas, as suas contrariedades, justamente como fazia dantes, em pequeno, ao voltar da aula de Pires. Sua alma tornava atrás, fazia-se muito infantil, muito criança, muito ingênua e carecida de amparo.

A mãe, enquanto esteve ao lado dele, foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e os queixumes.

Também, só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno — brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite.

E escreveu: "Mamãe."

Hesitou logo. Aquele modo de tratar não lhe pareceu conveniente; queria uma carta de efeito, com estilo, uma carta a primor, que desse idéia de seu talento e ao mesmo tempo de sua afeição:

... "Minha querida mãe.

Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-me longe de vosse-mecê..."

Vinham, em seguida, muitos protestos de amor filial e depois uma extensa descrição da cidade, a qual ocupava duas laudas da carta. Na terceira escreveu o seguinte:

"Desde que vim daí, o Sabino só me tem dado maçadas; a bordo vivia a brigar com os outros criados; aqui nunca me aparece; sai pela manhã e já faz muito quando volta à noite. Pilhou-se sem castigo e abusa desse modo. Ainda não lhe consegui arranjar a matrícula no Tesouro e nem sei como isso se obtém: o Campos é que há de ver.

"Como sabe, há mês e meio que me acho hospedado em casa deste. Aqui nada me falta, é certo, mas igualmente nada me satisfaz, porque estou muito isolado e aborrecido. A família é atenciosa o quanto pode ser comigo; eu, porém, apesar disso, não deixo de ser para eles um estranho, como tal, apenas recebo cortesias e hospitalidade. D. Maria Hortênsia é amável, mas por uma simples questão de delicadeza; da irmã, D. Carlotinha, nem é bom falar! Esta, se já me dispensou duas palavras, foi o máximo, parece até que tem medo de olhar para mim; talvez com receio de desagradar ao guarda-livros, que, pelos modos, é lá o seu namorado. O que não resta dúvida é que o tal guarda-livros é de todos o mais antipático e difícil de suportar. Um hipócrita! Está sempre com a carinha na água e já, por várias vezes, se tem querido meter a espirituoso cá para o meu lado. — São ditinhos, indiretas de instantes a instante. Eu, qualquer dia destes, o chamo à ordem! Ainda não há uma semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro de Alcântara e à volta, quando cheguei a casa, quis acender a vela para estudar. Quem disse?... o fogo não se comunicava ao pavio. Verifico: no lugar da torcida haviam posto um prego; fiquei com os dedos queimados. E esta graça não foi de outro senão do tal cara de mono!

"Já me lembrou mudar-me; o Campos, porém, acha que o não devo fazer enquanto não descobrir por aí um bom cômodo, em alguma casa de pensão."

E no mesmo teor ia por diante, até encher duas folhas de papel marca pequena. Amâncio narrava à mãe todos os seus passos e todos os seus desgostos, sem lhe confessar, todavia, que o principal motivo daquele descontentamento estava em não se poder recolher de noite às horas que entendesse; em ter por único companheiro de passeios o Luís Campos, cuja sobriedade nos gestos e costumes, cuja discrição nos termos, cujo aspecto repreensivo e pedagógico de mentor faziam-no já perfeitamente insuportável aos olhos do estudante.

— Ora adeus! considerava este, deveras enfiado. — Não foi para me fazer santo que vim ao Rio de Janeiro!

Boas! Podia lá estar disposto a sofrer aquele maçante do Campos!... Mas também não seria muito divertido andar sozinho pela cidade, a trocar pernas, sem um companheiro, sem um amigo. Além disso temia do seu provincialismo, receava "fazer figura triste"; ainda não conhecia o preço das coisas e o nome das ruas. No Maranhão falavam com tanto assombro dos gatunos da Corte! — os tais capoeiras! E Amâncio sobressaltava-se pensando num encontro desagradável, em que lhe cambiassem o dinheiro e as jóias por uma navalhada.

Seu maior desejo era ter ali um dos amigos da província, a quem confiasse as impressões recebidas e com quem pudesse conversar livremente, à franca, sem maior palavras, nem tomar as enfadonhas reservas e composturas, que lhe impunha a censória presença do negociante.

Por isso, numa ocasião, em que atravessava pela manhã o Beco do Cotovelo, sentiu grande alegria ao dar cara a cara com Paiva Rocha. O Paiva era seu comprovinciano e fora seu condiscípulo; pertenceram à mesma turma de exames na aula do Pires e matricularam-se juntos no Liceu. Mas, enquanto o filho de Vasconcelos estudou as três primeiras matérias, o outro fez todos os preparatórios.

Abraçaram-se. Houve exclamações de parte a parte.

— Ora Paiva! disse Amâncio afinal, encarando o amigo com um olhar muito satisfeito. — Não te fazia aqui na Corte!

— Estou na Politécnica.

— Ah! exclamou Amâncio, com interesse. — Que ano?

— Terceiro.

— Bom. Estás quase livre!

— Qual! resmungou Paiva, mascando o cigarro. — Tenho ainda muito que aturar!

E passaram então a falar de estudos. Amâncio fazia recriminações: "Só encontrara dificuldades". Disse a sua antipatia pelas ciências práticas; queixou-se de alguns veteranos, que, por serem mais antigos na escola, se julgavam com direito de maltratar os outros. "Era estúpido! simplesmente estúpido!"

— Tradições, respondeu Paiva, com a indiferença de quem não preocupam tais bagatelas. — Isso há de acabar... A natureza não dá saltos!

Amâncio, como qualquer provinciano que ainda não tivesse ocasião de apreciar o Rio de Janeiro, julgava-se tão desiludido a respeito dele, quanto a respeito de estudos.

— Sempre imaginei que fosse outra coisa!... disse. — A tal Rua do Ouvidor, por exemplo!...

Paiva já não o ouvia, era todo atenção para um cartaz de teatro que um sujeito pregava na parede defronte.

Amâncio prosseguiu, declarando que, até ali, nada encontrara de extraordinário na Corte.

— Com franqueza — antes o Maranhão! Com franqueza que antes! Não achas?... perguntou.

— É! respondeu o outro, distraído.

Mas Amâncio precisava desabafar e não se contentou com aquela resposta. Insistiu na pergunta; chamou a atenção do Paiva, agarrando-lhe à gola esgarçada do fraque.

— Não, filho, deixa-te disso, retorquiu o interrogado. A Corte sempre é Corte!...

— Ora qual!

— É porque ainda não estás acostumado, ainda não conheces o Rio! Hás de ver depois!...

Amâncio duvidava.

— Verás! repetia Paiva. Daqui a um ou dois anos é que te quero ouvir!

E passaram de novo a falar de estudos, de matrícula e de exames.

Paiva bocejou; o outro estava "caceteando". Quis safar-se.

— Espera! implorou Amâncio, apoderando-se-lhe de novo da gola do fraque. — Espere! Onde vais tu?... Conversa mais um pouco! suplicava ele com voz infeliz de quem pede uma esmola. Não te vás ainda! Que pressa!

Paiva tinha de ir almoçar com um amigo. Estava muito ocupado! "Naquele dia não dispunha de um momento de seu!" Depois, depois se encontrariam!

— Não! Vem cá! Espera!

Paiva levantou as sobrancelhas, impacientando-se.

— Mas, vem cá, dize-me uma coisa: o que é que tanto tens hoje a fazer?... inquiriu o outro.

— Filho, questões de interesse respondeu aquele, procurando abreviar explicações. Veio-lhe, porém, um ímpeto de raiva e começou a falar alto sobre dinheiro; havia brigado na véspera com o seu correspondente.

— Um burro! exclamava — um vinagre! Imagina tu que o malvado sabe perfeitamente que não tenho ninguém por mim aqui no Rio, e põe-se com dúvidas para me dar a mesada!... Como se aquele dinheiro lhe saísse do bolso! Diabo da peste!

— Ele então não te quis dar a mesada?... perguntou Amâncio muito espantado.

— É o costume aqui! retrucou Paiva desabridamente. — Eles julgam que nos fazem grande obséquio em dar-nos aquilo que nos pertence!

E, olhando para Amâncio com os olhos apertados:

— Mas também, filho, disse-lhe meia dúzia de desaforos, como ele nunca ouviu em sua vida! Cão!

E expôs a descompostura por inteiro, na qual as palavras galego, ladrão, cachorro entravam repetidas vezes.

— De sorte que, terminou o estudante mais tranquilo, como se houvesse despejado um peso das costas — não tenho lá ido! Questão de capricho, sabes? olha, estou assim!

E bateu nas algibeiras.

— Isso arranja-se... disse Amâncio timidamente, receoso de humilhar o colega. E depois, com um vislumbre: Vamos almoçar a um hotel?!

Paiva concordou, sacudindo os ombros. E, como Amâncio perguntasse onde deviam ir, começou a citar os melhores hotéis, já sem deixar transparecer o menor indício de pressa.

Fazia-se grande conhecedor da Corte, muito carioca, saboreando voluptuosamente o efeito da pasmaceira que a sua superioridade causava no amigo. Deu-se logo ares de cicerone; mostrou-se habituadíssimo com tudo aquilo que pudesse causar admiração a um provinciano recém-chegado; fingiu desdém por umas tantas coisas, que à primeira vista pareciam boas e falou de outras, menos conhecidas, com entusiasmo, com interesse pessoal e com orgulho.

Amâncio escutava-o em recolhido silêncio, mas, como estivesse a cair de apetite, voltou logo à idéia do almoço: lembrou que poderiam ir ao Coroa de Ouro.

Paiva fitou-o espantado, e espocou depois uma risada falsa:

— Aquela era mesma de quem vinha do norte! Almoçar no Coroa de Ouro! Vade retro!

Amâncio não teve ânimo de defender a sua proposta, e seguiu o companheiro que se pusera a andar com ímpeto.

Entraram na Rua do Carmo, atravessaram a de São José e, ao caírem na da Assembléia, Paiva, que ia a pensar, voltou-se de súbito para Amâncio e perguntou-lhe decisivamente.

— Tu queres almoçar bem?!

E feriu a última palavra.

— É! respondeu o outro.

— Pois então vamos ao Hotel dos Príncipes!

E seguiram pela Rua Sete de Setembro até o Rocio.

Ao penetrarem no largo, uma menina italiana, de alguns dez anos de idade, toda vestida de luto, morena, e ar suplicantemente risonho e cheio de miséria, abraçou-se às pernas de Amâncio, pedindo-lhe dinheiro — para levar à mãe que estava em casa morrendo de fome.

— Sai gritou-lhe o Paiva, procurando arredá-la.

Mas a pequena ajoelhou-se, sem largar as pernas do calouro, de cujas mãos já se tinha apoderado e cobria de beijos.

— Então, papai! papaizinho bonito! uma esmolinha sim?... dizia ela, voltando para o moço seus belos olhos de criança, e rindo com uns dentes muito brancos que se lhe destacavam vivamente da cor morena do rosto.

— Coitadinha! lamentou Amâncio, fazendo-lhe uma festa no queixo e procurando dinheiro na algibeira das calças.

Puxou um maço grosso de cédulas.

— Não seja tolo! gritou-lhe o companheiro. — Isto é especulação de algum vadio! Vestem por aí essas bichinhas de luto e mandam-nas perseguir a humanidade! É uma esperteza, não seja tolo!

A pequena lançou ao Paiva um gesto de raiva e sorriu para Amâncio, suplicando.

— Em todo o caso faz dó, coitada! murmurou este dando-lhe uma cédula de dois mil-réis.

A italianinha agarrou-se ao dinheiro e olho surpresa para o calouro. Depois beijou-lhe novamente as mãos e fugiu, atirando-lhe beijos.

— Coitada! repetiu ele.

— Ainda estás muito peludo! resmungou o Paiva. Olha que isto por cá não é o Maranhão!...

E pôs-se logo a falar nas especulações do Rio de Janeiro. Contou fatos horrorosos de cinismo e gatunagem. "Amâncio que se acautelasse: no caminho em que ia, haviam de arrancar-lhe até os olhos. — Ali, a ciência de cada um consistia em fazer com que o dinheiro passasse das algibeiras dos outros para as próprias algibeiras." Estava indignado! "Não podia, a sangue frio, ver assim se atirar à rua — dois mil-réis! Ah! se o outro soubesse quanto o dinheiro custava a ganhar, não teria as mãos tão rotas!"

E mostrava-se extremamente empenhado nos interesses do colega: dava-lhe conselhos; havia de abrir-lhe os olhos, indicar-lhe o verdadeiro caminho a seguir. "Não! Que ele não era desses, que só querem desfrutar!... Quando simpatizava com um rapaz, sabia ser amigo! Amâncio o veria no futuro!..."

— Olha! segredou-lhe, passando-lhe um braço nas costas. — Hás de encontrar por aí muito artista! Acautela-te, filho! acautela-te, que os cabras sabem levar água ao seu moinho! Digo-te isto, porque te estimo, porque sou teu amigo, percebes?

Amâncio percebia e jurava muito grato àquela dedicação. Tiveram, porém, de interromper o diálogo: dois outros estudantes acabavam de parar defronte deles.

Eram amigos do Paiva. Houve logo novas exclamações e cumprimentos rasgados.

— Meus senhores, exclamou aquele, apresentando Amâncio. O nosso colega, Amâncio de Vasconcelos, estudante de medicina. Escuso dizer que é muito talentoso e um caráter excelente.

Os dois apertaram a mão de Amâncio com solenidade, e afiançaram que tinham imenso gosto em conhecê-lo.

— João Coqueiro e Salustiano Simões! nomeou o Paiva, indicando os dois. — São ambos da Politécnica.

E acrescentou em voz baixa, ao ouvido de Amâncio, mas de modo que fosse ouvido por todos:

— Muitos distintos!...

O Coqueiro observava em silêncio o novo colega, enquanto o Paiva e o Salustiano reatavam um velho colóquio, interrompido à última vez que estiveram juntos; aquele saiu do seu recolhimento para indagar de que província era Amâncio, como se ia dando nos estudos e onde estava hospedado. Entretanto o Simões afrouxava lentamente na conversa com o outro e caía aos poucos na sua habitual concentração; já respondia apenas por monossílabos e só despregava o cigarro dos dentes para bocejar. Afinal, sem conter a impaciência, quis dissolver o grupo; mas Amâncio tolheu-lhe a idéia perguntando-lhe e mais ao Coqueiro se já tinham almoçado e, visto que não, pediu-lhes que lhe fizessem companhia.

Aceitaram, depois de alguma resistência por parte do último; e os quatro rapazes seguiram imediatamente caminho do hotel, a rir e a dar língua, como se fossem todos amigos de muito tempo.

Paiva Rocha pediu um gabinete particular e aí se instalou com os outros.

Amâncio estava maravilhado. O aspecto daquelas salas afestoadas, cheias de espelhos, de cortinas e douraduras, no gênero pretensioso dos hotéis, o ar parisiense dos criados, vestidos de preto e avental branco; a cor estridente do gabinete; o perfume das flores que guarneciam jarras de proporções luxuosas; o alvoroço palavroso e alegre dos que faziam a sobremesa; o crepitar do riso das mulheres, cujos penteadores branquejavam sobre o escuro dos tapetes; a reverberação dos cristais; a expectativa de um bom almoço, que seria devorado com apetite, e finalmente a circunstância de que Amâncio, havia muito não gozava uma pândega; tudo isso lhe refrescava o humor e o fazia feliz naquele momento.

— Garçom! gritou o Paiva, entrando no gabinete com um ar sem-cerimônia. La carte!

O criado disparou.

— Tu falas francês?... inquiriu Amâncio, já com admiração na voz.

— Ora respondeu Paiva, levantando os ombros. Aqui na Corte será difícil encontrar alguém que não fale francês!...

— Pois eu ainda não sei... disse aquele tristemente.

— Questão de prática! observou o outro.

Coqueiro, que acabava nesse momento de entrar no gabinete, conversando com Simões, propôs que se despissem os paletós.

Principiaram a comer.

O Paiva encarregara-se do menu. Estava radiante; parecia empenhado na direção do almoço, como se tratasse de um trabalho difícil e glorioso. Escolhia pratos esquisitos e determinava os vinhos que os deviam acompanhar.

— Este Paiva é terrível para um menu! observou Simões em ar de troça.

— Não! disse aquele. — Não admito que ninguém dirija um almoço melhor do que eu!

— Sim, considerou Coqueiro — mas vais ver por que preço sai tudo isso!...

— Não faz mal!... apressou-se Amâncio a declarar. — Sinto-me tão bem entre os senhores... há tanto tempo não tinha um momento livre, que...

— Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de "senhor". Entre rapazes não deve haver cerimônias, mal-entendidos; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por "tu". Não és da mesma opinião, ó Paiva?

— In totum! respondeu este, abraçando Amâncio pela cintura. — Nós cá somos camaradas velhos! Vem de longe!

E parecia querer provar que os seus direitos sobre o comprovinciano eram muito mais legítimos que os dos outros dois; que Amâncio lhe pertencia quase exclusivamente, como um tesouro, como uma fortuna que se traz do berço. E para deixar isso bem patente, fazia-se muito íntimo com ele: batia-lhe nas pernas; evocava recordações; lembrava-lhes as correrias da província:

— Ah! nós éramos muito camaradas! Lembras-te, Amâncio, daquele passeio que fizemos ao Portinho?...

— Em que Malheiros tomou uma bebedeira de charuto? Perguntou o interrogado a rir. — Naquele dia do barulho no Liceu; quando o Chico moleque foi expulso!...

— É verdade! que fim levou esse rapaz! quis saber Paiva — Era um bom tipo. Inteligente!

— Morreu, coitado! de bexigas. Ultimamente estava no comércio.

E aquele pequeno, o...

— Qual?

— Aquele bonito, de cabelos grandes... ora, como se chamava ele?... o...

— Ah! exclamou Amâncio, soltando uma risada — o Dominguinhos?

— Isso! isso! Dominguinhos justamente! Que fim levou?

— Não sei, não! Creio que seguiu para Manaus com a família. Um bobo! Lembra-se da troça que lhe fizemos no convento?...

E os dois riram-se muito com a mesma idéia.

Simões, que até aí parecia pouco disposto à pândega, foi-se animando na proporção das garrafas que se enxugavam. O almoço aquecia. João Coqueiro propôs um brinde a Amâncio e declarou, depois de lhe fazer muitos elogios, que folgaria imenso em ser recebido no rol de seus amigos.

Amâncio abraçou-o e prometeu que o iria visitar no primeiro domingo.

— Vá feito! sustentou Coqueiro. Ali não há cerimônia, minha família é muito despida dessas coisas.

— Ah! mora com a família? interrogou o provinciano.

— Sou casado, respondeu o outro. — Isso, porém, nada quer dizer. Apareça.

Ficou decidido que Amâncio iria sem falta no próximo domingo.

Simões principiou então a falar sobre casamento; daí passou às mulheres: descreveu a sua indiferença por elas. Só lhe conhecia dois gêneros: "a mulher cínica e a mulher hipócrita."

Paiva Rocha protestava: — Havia muita mulher honesta, verdadeiros anjos de virtude! E que deixassem lá falar! em certas ocasiões uma boa rapariga tinha o seu cabimento! Sim! Quem não gostava da estética?...

Amâncio era da mesma opinião, e queixou-se de sua infelicidade no Rio a esse respeito.

— Ainda é cedo, elucidou o Salustiano. — Quando te começarem as aventuras, há de ver o que vai por essa sociedade!

— Não é tanto assim! opôs Coqueiro. — Vocês são todos homens dos extremos!

E voltando-se confidencialmente para Amâncio:

— O Doutor, decerto, encontrará muita mulher perigosa, de quem deve fugir como o diabo da cruz; mas terá também ocasião de ver algumas raparigas bem educadas, honestas e inteligentes. Não as vá procurar na alta sociedade, não, que aí se escondem as piores! mas indague-as cá por baixo, na mediocracia, que as há de descobrir. E olhe, se quer aceitar um conselho de amigo, case-se! Não há melhor vidinha! Estou casado há três anos e ainda não tive um segundo de arrependimento!... Ao menos conserva-se a saúde, desenvolve-se o espírito e trabalhe-se mais... O método, homem! o método é o segredo da existência!

E, puxando a cadeira para mais perto de Amâncio falou-lhe em voz baixa. Que no Rio de Janeiro era preciso ter um amigo sincero, não que "primasse nos menus", mas que fosse capaz, que tivesse imputabilidade moral! — Amâncio estava defronte de duas estradas; uma que conduzia à verdadeira felicidade e outra que conduzia à desordem, ao vício e à completa desmoralização! Que se não deixasse levar pelos pândegos!... E olhava à esconsa os dois outros companheiros. Aquilo era gente sem nada a perder!... Amâncio, enfim, que aparecesse no domingo e teriam ocasião de falar mais de espaço. Não deixasse de ir: havia muito o que dizer e conversar.

Amâncio prometeu de novo.

O almoço chegara ao ponto em que os comensais falam todos ao mesmo tempo e em voz alta. Havia agitação; afogueavam-se as faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete. Simões discutia com Paiva a incompetência dos professores da Politécnica.

— Uma súcia! uma cambada! sintetizava ele. — Se fosse preciso despedir dali os que não prestam, não ficaria nenhum!

O outro protestava, gritando e batendo punhadas sobre a mesa. Havia já dois copos quebrados.

O criado trouxera a sobremesa — uma salada russa.

Paiva pediu gelados e quis que lhe dessem uma omelete ao rum. "Não podia passar sem isso no almoço!"

Suavam.

Amâncio tornava-se expansivo: falou de seus amores na província; contou as suas intenções a respeito da mulher do Campos.

— Ela parece que tem medo, dizia. — Mas eu sou perseverante! Espero!

— Menino, segredou-lhe Paiva. — Vai aproveitando, vai aproveitando, porque é isso o que se leva deste mundo!

— E o mais são histórias... concluiu o filho de Vasconcelos.

E fazia-se muito fino, perigoso, e continuava a parolar com embófia, loquaz, um pouco sacudido pelo almoço.

Coqueiro estudava-o de socapa, a seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as intenções. Dos quatro era o único que não estava tonto: seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fixidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa.

Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e fulvo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quanto muito, vinte e dois.

Paiva erguera-se para fazer um bestialógico, e soltava de enfiada frases sonoras e ocas de sentido: ouvia-se-lhe falar em "gazofiliáceos, camelos da Patagônia e constelações híbridas do mapa-mundi". Simões, o macambúzio, derreara a cadeira contra a parede, e jazia palitar a boca, estendido para trás, em uma posição de homem farto: barriga ao vento, braços moles e um olhar muito pando, que se lhe entornava por todo o rosto em sorrisos de preguiça. Amâncio reatava a sua conversa com Coqueiro.

— É como lhe digo, recapitulava este. — Aquilo não é um hotel, é uma — casa de família! Não temos hóspedes, temos amigos! Minha mulher é quem toma conta de tudo!... E dando à voz um tom grave: — Ela é muito asseada, muito exigente em questões de comida! Você não imagina!... Ao almoço temos três pratos a escolher, leite, chá ou café, e vinho; pelo almoço pode calcular o que não será o jantar! — E depois é preciso observar a qualidade dos gêneros!... enfim, só mesmo você indo ver!

Amâncio reprometia.

— Fica-se muito melhor em uma casa de família, continuava o outro. A vida em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo — o estômago, o caráter, a bolsa; ao passo que ali, você têm o seu banho frio pela manhã, torradas à noite e, se cair doente (o que lhe não desejo), há quem o trate, quem lhe prepare um remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés... Olhe! até, se você quiser, eu...

Mas a porta abriu-se com violento empurrão, e uma mulher loura, gorda, vestida de seda amarela, precipitouse no gabinete, espavorida, a soltar gritos. Vinha-lhe no encalço um sujeito idoso, cheio de corpo, o chapéu à ré, o olhar desvairado e convulso.

— Podes ir para onde quiseres, que eu não te deixo! berrava ele com fúria, a dardejar o guarda-chuva sobre as costas da perseguida. Esta corria de uma lado para outro, procurando escapar-lhe, mas o sujeito agarrou-a pelos cabelos e conseguiu arrebatá-la, levando os dois, aos trambolhões, tudo o que encontravam no caminho.

Em menos de um segundo era completa a desordem no gabinete. Caíram cadeiras; a mesa estremeceu com um encontrão e a saleira e duas garrafas perderam o equilíbrio e tombaram, varrendo copos e esmagando pratos. O guarda-chuva do sujeito havia com um só golpe espatifado os globos do candeeiro e reduzido um espelho a mil pedaços.

— Isto não tem jeito! gritou Paiva ao homem. — O senhor faz mal em invadir desta forma um gabinete ocupado!

Mas o invasor já não ouvia coisa alguma e acabava de sair aos pescoções com a sujeita.

Paiva atirou-se-lhe à pista, armado de uma garrafa. O gerente do hotel apareceu, porém, cortando-lhe o passo e pedindo-lhe, por amor de Deus que não fizesse caso, que deixasse lá os dois se esbordoarem à vontade!

— Era o costume! Acabariam por entender-se perfeitamente!

— O senhor então acha que isto é razoável?! perguntou Paiva furioso.

— Não, decerto!

E o gerente dava aos rapazes toda a razão: — Deviam estar maçados, mas que tivessem paciência! que desculpassem! Não fora possível evitar tão grande sensaboria: O Brás, em questões de mulheres, perdia sempre a cabeça! E ele não sabia que diabo de rabicho tinha o basbaque pelo demônio da Rita Baiana, que, de vez em quando, era aquilo!

— Pois que se vá enrabichar para o diabo que o carregue!

— Decerto, decerto! apoiava o gerente, procurando acalmar o estudante.

— Ajuste as suas contas onde quiser, menos nos gabinetes ocupados pelos outros! Arre!

— É exato! Os senhores têm todo o direito, mas por quem são, não façam caso! Não façam caso.

— E esta?! insistia Paiva. — Pois se a gente paga muito mais para ficar em liberdade, como o diabo há de admitir isto?!...

— Tem toda a razão! Tem toda a razão!... repetia o gerente, erguendo as cadeiras e apanhando do tapete os cacos de vidro.

Só então intervieram os outros rapazes. Amâncio, até aí, parecia colado à cadeira. Estava lívido e as pernas tremiam-lhe.

O gerente ia responder a todos, quando a porta se tornou a abrir, e Brás, ainda transformado pela comoção da briga, ofegante e pálido, quase sem poder falar, entra, dizendo — que ia pedir desculpa da grosseria por ele praticada há pouco.

— Mas estava possesso! Justificava-se ele. — Aquela não-sei-que-diga lhe fazia perder as estribeiras! Que o desculpasse, porque um homem em certas ocasiões nem se podia conter! Uma mulher, com quem já havia gasto para mais de dez contos de réis!... exclamava ele fora de si. Uma mulher "que erguera da lama" podia assim dizer! Uma desgraçada, que, antes de o conhecer, não podia ir a parte alguma por não ter um vestido capaz!... Uma miserável, que dantes, para matar a fome, precisava aviar encomendas de costura e se andar alugando na casa das modistas... Era duro! Pois não achavam?!...

Os estudantes meneavam a cabeça, afirmativamente.

— Ah! continuou o Brás. Aquelas contas tinham-se de ajustar na primeira ocasião em que ele a encontrasse com o tal troca-tintas! Ah! Já não podia! Era demais! Uf!

E passeava no gabinete, a empurrar com o pé os cacos esquecidos no chão, e a sorver o ar em grandes haustos, consoladamente, como se acabasse de alijar um peso da consciência.

As palavras do Brás tranquilizaram os rapazes, cuja embriaguez parecia ter fugido com o susto. Simões chegou mesmo a rir do fato, jactando-se mais uma vez da sua eterna indiferença pelas mulheres! Com ele é que nunca haveria de suceder semelhante coisa!... afirmava.

Amâncio convidou Brás a beber, e vazou-lhe vinho num copo.

— Aquela descarada! resmungava o ciumento, examinando uma arranhadura que vinha de descobrir na mão direita. — Ela, porém, comigo está iludida! — ou me anda muito direitinha ou há de me ficar debaixo dos pés! Pedaço de uma ingrata!

E, voltando-se para o gerente, que acabava de entrar:

— O sujeitinho foi-se, hein?

— Ora!... respondeu aquele com um riso servil. — Ganhou logo a rua e... por aqui é o caminho! Ela é que, pelos modos, ficou bem convidada! Meteu-se no quarto a chorar.

— Pois que chore na cama, que é lugar quente! Não fosse ordinária! Faça lá o que bem entender, mas, com os diabos! não enquanto estiver comigo! Vá divertir-se com o boi! Sebo!

E passando logo em seguida para um tom de voz calma e amiga, disse baixo ao gerente:

— Veja de quanto foi o prejuízo e faça-me uma conta à parte.

Pediu ainda uma vez desculpa aos rapazes, afiançou que eles tinham um criado na Ladeira da Glória, número tanto, e saiu, sempre às voltas com a sua arranhadura da mão direita.

Amâncio quis condenar o fato, mas Paiva observou-lhe que aquilo se dava todos os dias no Rio de Janeiro.

— Eu já não estranho, disse. — Falta de educação!...

— Bem, meus senhores, são horas de eu me ir também chegando, advertiu Coqueiro, erguendo-se e enfiando o paletó.

Simões fez igual movimento e declarou que o acompanhava.

— Então, que é isto, já? exclamou Amâncio, querendo detê-los.

— É. Está se fazendo tarde, respondeu Coqueiro, a consultar o relógio. — Três horas.

— Impossível! negou Amâncio.

Era exato.

E Coqueiro, já de chapéu na cabeça e guarda-chuva debaixo do braço, apertou-lhe a mãos com as duas, dizendo que folgava em extremo haver travado relações com ele e que o esperava, sem falta, no domingo. Simões fez igualmente as suas despedidas, e os dois saíram a conversar sobre o quanto poderia custar a Amâncio aquele almoço.

— Também que diabo ficamos nós fazendo aqui? lembrou Paiva, quando se viu a sós com o amigo. — Paga isso e vamo-nos embora. Queres tu ir até lá a casa?...

— Mas eu já estou há muito tempo na rua... considerou Amâncio.

— E o que tem isso?!... Deves contas de ti a alguém?! Ora essa!

— É que Campos pode reparar!...

— Pois que repare! Manda plantar batatas o tal Campos! Tu não és nenhum caixeiro dele... Eu, no teu caso, nem ficava ali mais um dia! Que necessidade tens agora de passar às sopas de um negociante, e sujeitar-te a regulamentos comerciais? É de mau gosto estar hospedado em casa de negócio! Olha! Se quiseres, muda-te lá para a república. Sempre é outra coisa morar com rapazes! Aprende-se!

O criado, a quem já tinham pedido a conta, entrou com uma pequena salva na mão e foi, instintivamente, depô-la em frente de Amâncio.

— Espere, disse este, tirando dinheiro do bolso. E entregou-lhe uma nota de cem mil-réis.

O moço saiu correndo.

— Quanto foi? desejou saber Paiva.

— Oitenta e cinco mil-réis, respondeu o outro.

— Oitenta e cinco mil-réis! Oh! que grande ladroeira!

E logo que o criado voltou com o troco:

— Tomem, faça o favor de dizer em que se gastaram aqui oitenta e cinco mil-réis... Salvo se vossemecês metem também na conta o que quebrou Brás!

— Não senhor! Eu só cobrei os copos, que já estavam partidos antes do rolo.

— Que enorme ladroeira! insistia Paiva, a sacudir a cabeça.

— Deixa lá! aconselhou Amâncio, puxando-o para fora.

Precisava andar e tomar fresco. Aqueles gabinetes eram um forno — sentia-se mal.

— É que não posso ver extorquir desta forma o dinheiro de ninguém! disse Paiva indignado.

E principiou a fazer as contas pelo que se lembrava de ter vindo à mesa.

Amâncio o puxou de novo:

— Deixa lá isso, homem!

— Nada! Pelo menos hei de vingar-me aqui em alguma coisa!

O criado havia saído. Paiva Rocha principiou a derramar o resto das garrafas no açucareiro, a emporcalhar o damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas.

Amâncio ria-se formalmente, mas, no íntimo, aborrecido.

— Agora podemos ir! disse afinal o outro. — Ao menos deixo-lhes um prejuízo!

E ainda meteu no bolso um paliteiro e duas colheres.

Lá na república precisava-se daqueles objetos! acrescentou rindo.

Já na rua, Amâncio reparou que a cabeça lhe estava muito pesada e queixou-se de suores frios. Paiva chamou um carro, e, uma vez dentro com o colega, mandou tocar para a Rua de Mata-Cavalos.

— Esqueceste aquilo de que falamos? perguntou em viagem ao companheiro.

Amâncio já não se lembrava.

Paiva respondeu, fazendo um sinal com os dedos.

— Ah! Quanto queres?

— Dá cá daí uns cinquenta ou sessenta... depois te pagarei.

— Pois não, gaguejou Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil-réis.