Casa de Pensão/VII
Dos hóspedes de cama e mesa só três compareceram ao jantar — Lúcia, o marido e o tal gentleman de nome difícil. Paulo Mendes estava de passeio, com a mulher, em casa de um artista.
Amâncio foi apresentado àqueles três pelo João Coqueiro. Trocaram bonitas palavras de etiqueta; fizeram-se os mentirosos protestos da cortesia e cada um tomou à mesa o seu lugar competente.
Mme. Brizard, como era de costume, ocupou a cabeceira, defronte de uma pilha enorme de pratos fundos, os quais ia enchendo de sopa, um a um, paulatinamente, depois de rodar a concha três vezes no fundo da terrina; e, à proporção que os enchia, passava-os ao marido que nesse dia lhe ficara à esquerda, visto que à direita, seu lugar favorito, cedera-o ele ao novo hóspede.
Na ocasião de conferir-lhe semelhante honra, bateu-lhe carinhosamente no ombro e disse-lhe baixinho: — Ficas bem! Ficas junto a Loló!
Mme. Brizard, que ouvira estas palavras, acrescentou sorrindo:
— O Sr. Vasconcelos preferia talvez ficar entre as moças...
— Ó minha senhora!... balbuciou Amâncio, vergandose para o lado da francesa. — Estou muito bem aqui; não podia desejar melhor vizinhança!...
E voltou o olhar para a sua direita, onde Lúcia acabava de tomar assento.
Examinou-a logo, à primeira vista, sem o dar a conhecer, e a impressão recebida não foi das melhores. Achou-a esquisita, um tanto feia, um ar pretensioso, de doutora.
Era de estatura regular, tinha as costas arqueadas e os ombros levemente contraídos, braços moles, cintura pouco abaixo dos seios, desenhando muito a barriga. Quando andava, principalmente em ocasiões de cerimônia, sacudia o corpo na cadência dos passos e bamboleava a cabeça com um movimento de afetada languidez. Muito pálida, olhos grandes e bonitos, repuxados para os cantos exteriores, em um feitio acentuado de folhas de roseira; lábios descorados e cheios, mas graciosos. Nunca se despregava das lunetas, e a forte miopia dava-lhe aos olhos uma expressão úmida de choro.
Em seguida via-se o marido. Um homenzinho gordo, de barba por fazer e pequeno bigode castanho, em parte lourejado pelo fumo. A fronte abria-lhe para o crânio em dois semicírculos constituídos na ausência do cabelo. Fisionomia inalterável, de uma tranquilidade irracional e covarde. Fechava de vez em quando os olhos, por um sestro antigo, e então parecia dormir profundamente.
Percebia-se que ele e a mulher estiveram, antes de vir para a mesa, empenhados em alguma discussão desagradável, porque, mal se furtaram às apresentações e aos cumprimentos da chegada, Lúcia pôs-se a falar-lhe em voz baixa, com azedume disfarçado. Ele, porém, não dava resposta, e, quando a mulher insistia, cerrava os olhos como se fugira para dentro de si mesmo.
César, ao lado, acompanhava-lhe os movimentos com persistência tão grosseira que a outro qualquer constrangeria.
Defronte perfilava-se o gentleman. Teso, o pescoço imobilizado no rigor de uns grandes colarinhos; as sobrancelhas franzidas diplomaticamente; o olhar grave, de quem medita coisa de alta importância; a boca engolida por um farto bigode grisalho; o queixo escanhoado, formando largas pregas, sempre que Lambertosa voltava o rosto com amabilidade para responder o que lhe diziam da direita ou da esquerda. Bonita figura, bem apessoado, fronte espaçosa, cabelo branco, puxando de trás sobre as orelhas.
Entre ele e Coqueiro, Amelinha, cheia de piscos de olhos e de gestozinhos passarinheiros, recebia do irmão os pratos de sopa e passava-os adiante.
— E Nini?... perguntou Mme. Brizard com interesse.
E, como Amâncio a fitasse, quando lhe ouviu aquela pergunta, ela explicou que Nini era uma filha sua, "muito doente, coitadinha!"... E contou logo a história da pobre menina — a viuvez, a dolorosa morte do filhinho "que lhe havia ficado como extrema consolação", e, afinal, falou daquela "maldita moléstia que sobreviera a tantas calamidades e que parecia disposta a não abandonar mais a infeliz".
— Não dá idéia do que foi! disse após um suspiro. — Era uma beleza e tinha o gênio mais alegre deste mundo! Ah! Está muito mudada! muito mudada! Impressiona-se com tudo, tem exigências pueris, caprichos, coisas de uma verdadeira criança! E ninguém a contraria, que aparecem as crises, os ataques! Uma campanha! — Ainda outro dia porque não lhe deixaram ver um desenho que meu marido achou na chácara...
E, voltando-se rapidamente para Amâncio:
— O Sr. Vasconcelos não se serve de vinho?... — Um desenho indecente; pois ficou prostrada e eu tive sérios receios de a ver perdida para sempre! Desde então está nervosa que se lhe não pode dizer nada! É preciso não insistir com ela em coisa alguma: se a chamam duas vezes para a mesa, começa a chorar e não vem; se a querem constranger a pôr um vestido melhor, um penteado mais decente, são gritos, soluços, repelões, e agarra-se à cama, que não há meio de tirá-la! Eu já não sei o que faço!...
— Por que, Madame, não experimenta os banhos de mar? perguntou o gentleman, limpando energicamente o seu grosso bigode no guardanapo que atara ao pescoço.
— Qual! Não produzem efeito nenhum! Ela já tomou quarenta seguidos. Acho até que ficou pior.
— É estranho!... volveu o gentleman, franzindo o sobrolho e passando à Lúcia a corbelha de farinha. — É estranho, porque, segundo Durand Fardel, não há enfermidades nervosas que resistam a um bom regime de banhos marítimos; mas aconselha também o uso interno de água salgada, e prova que a mineralização desta é muito mais rica em cloreto se sódio do que a das águas minerais da fonte.
— Não sei, Sr. Lamber...
Mme. Brizard não se lembrava do nome dele.
— Lambertosa, Madame, Lambertosa!
— Não sei, Sr. Lambertosa, não sei... O caso é que Nini não consegue melhorar. Temos experimentado tudo, tudo!
E, mudando de tom, bateu no braço de Amâncio, segredando-lhe com um sorriso:
— Não se esqueça de provar daqueles camarões. São especiais!... E descreveu uma olhadela entre ele e Amélia.
— O casamento talvez a restabelecesse! observou o provinciano, servindo-se dos afamados camarões. — Dizem que há muitos exemplos de...
Amélia afetou um sobressaltozinho, e olhou para ele que procurando disfarçar o mau efeito de sua proposição, citou Le Bon.
— O doutor acha então que o histerismo se pode curar com o casamento?... perguntou Lúcia da direita.
— Parece, minha senhora, a dar crédito aos fisiologistas...
A sonoridade desta palavra consolou-o.
— E é exato!... confirmou Pereira, marido de Lúcia.
— Tu mesmo entendes disto!... respondeu-lhe a mulher desdenhosamente.
Pereira fechou os olhos e não deu mais palavra.
Lambertosa havia já limpado o bigode para emitir a sua conceituada opinião, mas teve de renunciar a essa idéia, porque Nini acabava de assomar à porta do quarto, arrastando-se dificilmente ao peso de suas inchações.
Vestia uma bata de lã parda, enxovalhada e sem cinta. A gordura balofa e anêmica tirava-lhe o feitio do corpo; as suas costas formavam-se de uma só curva e os quadris pareciam duas grandes almofadas.
Contudo ainda se lhe reconhecia a mocidade e ainda se alcançavam os vestígios desbotados dos encantos, que a moléstia foi pouco a pouco devastando.
Só depois de assentada, Nini desmanchou o ar aflito que fazia, pelo esforço de andar.
— Ah! respirou, quase sem fôlego. E correu os olhos em torno de si, abstratamente, como se despertasse de um desmaio. Ao dar com Amâncio, ficou a encará-lo com insistência de criança; depois, contraiu os músculos do rosto e espalhou a vista, vagarosamente, a tomar longos sorvos de ar.
Um silêncio formou-se em torno de sua chegada; percebia-se que pensavam nela.
— Queres sopa , Nini? perguntou afinal Mme. Brizard, com ternura. E, como a filha fizesse um movimento afirmativo de cabeça, passou-lhe um prato cheio.
Nini sorveu-o todo, a colheradas seguidas e pediu mais.
A mãe aconselhou-a que comesse antes outra qualquer coisa.
Nini largou a colher no prato, sem dizer palavra, e pôs-se de novo a encarar para Amâncio, com um olhar tão dolorido e tão persistente, que o rapaz ficou impressionado.
E não lhe tirou mais a vista de cima. O estudante remexia-se na cadeira, importunado por aqueles dois olhos grandes, rasos, de um azul duvidoso, que se fixavam sobre ele, imóveis e esquecidos.
Disfarçava, procurava não dar por isso, nada, porém, conseguia. Os dois importunos lá estavam, sempre, assentados sobre ele a lhe queimar a paciência, como se fossem dois vidros de aumento colocados contra o sol.
— Que embirrância! dizia consigo o provinciano.
Entretanto o jantar esquentava. A conversa explodia já de vários pontos da mesa com mais frequência; ouviam-se tinir os garfos de encontro à louça, e os copos esvaziavam-se e de novo se enchiam, sem ninguém dar por isso.
Mme. Brizard não se descuidava um minuto de Amâncio. Apontava-lhe os pratos preferíveis, puxava as garrafas para junto dele, sempre a falar da salubridade da casa, do bem que se ficava ali, da simpatia que toda a família parecia lhe dedicar, desde o primeiro momento em que o viu.
— Pois se até a pobre Nini não se fartava de olhar para o Sr. Vasconcelos!...
Amâncio sorriu.
O Lambertosa atirou-lhe diretamente a palavra sobre o Maranhão. Tratou com respeito dessa "judiciosa província, a qual merecia de justiça o honroso título que lhe fora conferido de — Atenas Brasileira!. E, depois de citar nomes ilustres, dispôs-se a contar as façanhas de um tal Maranhense, célebre pelas suas espertezas.
— Perdão! acudiu Amâncio. — Esse cavalheiro de indústria, além do nome, nada tem de comum com a minha província!
— Ah! fez o gentleman. — Pois eu o julgava filho de lá...
— Felizmente não é, respondeu o outro, ferido no seu bairrismo.
— E ainda que fosse!... observou Lúcia — que mal havia nisso?
— Certamente! confirmou Coqueiro, a encher o prato.
— Pois meu amigo, volveu Lambertosa, dirigindo-se a Amâncio — eu o felicito! E levou o copo à boca. Eu o felicito, porque, francamente, considero um padrão de glória ver a luz do dia em uma província tão...
Faltou-lhe o termo.
— Tão, tão gigantesca! Estude, caminhe, caminhe, que tem uma grande estrada aberta defronte de si!
E engrossando a voz:
— Assiste-lhe uma responsabilidade enorme! É caminhar e caminhar firme! Ah! terminou ele com um gesto lamentoso. — Quem me dera a sua idade, meu amigo! Quem me dera a sua idade!
Continuou-se a falar sobre o Maranhão. Lúcia quis informações; Amâncio voltou-se logo para ela, solicitamente, e na febre de falar de sua terra, começou, sem reparar que mentia, a pintar coisas extraordinárias. O Maranhão segundo o que ele dizia, era um viveiro de talentos; os grêmios e os jornais literários brotavam ali de toda a parte; cada indivíduo representava um gramático de pulso; as senhoras — ilustradíssimas; os homens — poços de instrução; as crianças saíam da escola bons poetas e prosadores.
Coqueiro afetava acompanhá-lo naquele entusiasmo, mais ria-se por dentro. O outro lhe parecia cada vez mais tolo.
Lúcia perguntou se Amâncio tinha algumas produções dos seus comprovincianos, que lhe pudesse emprestar. Ele prometeu que traria as que tivesse em casa. E recomendou Entre o Céu e a Terra, de Flávio Reymar.
— Há em sua província um poeta que eu adoro, disse ela, cortando em pedacinhos uma fatia de carne assada que tinha no prato.
— O Franco de Sá? perguntou o maranhense.
— Não, refiro-me ao Dias Carneiro.
Amâncio sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Nunca em sua vida ouvira falar de semelhante nome.
— É, disse, entretanto. — É um grande poeta!
— Enorme! corrigiu Lúcia, levando à boca uma garfada. — Enorme! Conhece aquela poesia dele, o...
Novo calafrio, desta vez, porém, acompanhado de suores. E não lhe acudia um título para apresentar, um título qualquer, ainda que não fosse verdadeiro.
— Ora, como é mesmo? insistia a senhora. — Tenho o nome debaixo da língua!
E, voltando com superioridade para o marido:
— Como se chama aquela poesia, que está no álbum de capa escura, escrita a tinta azul?
Pereira abriu os olhos e disse lentamente:
— O Cântico do Calvário!
— És um idiota! respondeu a mulher.
A resposta de Pereira provocou hilaridade. Amâncio consultou logo a opinião de Lúcia sobre o Varela. Mme. Brizard falou então dos versos do marido, prometeu que os mostraria depois do jantar.
Amâncio soltou uma exclamação de espanto:
— Ignorava que Coqueiro também fizesse versos!
— Faço-os, confirmou este — mas só para mim, publiquei já alguns com pseudônimo. Receio a convivência dos literatos que formigam por aí, esfarrapados e bêbedos. Não me quero misturar com eles. Faço versos, é verdade, mas tenho a presunção de escrevê-los como devem ser e não acumulando extravagâncias e disparates para armar ao efeito! Faço versos, mas não tomo parte nessas panelinhas de elogio mútuo e nesses grupos de imbecis escrevinhadores!
E, com muito azedume, com durezas de inveja, principiou a dizer mal dos rapazes que no Rio de Janeiro se tornavam mais conhecidos pelas letras.
— Pedantes! resmungava. — Súcia de idiotas! Hoje todos querem ser escritores; sujeitinhos que não sabem ligar duas idéias, arrogam-se, da noite para o dia, os foros literatos! Uma cambada!
E ria-se com um gesto amargo de desgosto.
Lúcia e Lambertosa defendiam timidamente alguns nomes.
— Ora o que, senhores! replicava Coqueiro furioso e pálido. — Qual é aí o tipo da tal "geração moderna" que se possa aproveitar?... Não me apontam nenhum! São todos umas bestas!
— Coqueiro!... repreendeu Mme. Brizard em voz baixa.
— São todos umas nulidades, uns zeros!...
Era a primeira vez que Amâncio via o colega sair de si. Não o supunha capaz daquelas explosões.
Mme. Brizard compreendeu o pensamento do provinciano e apressou-se a dizer-lhe ao ouvido:
— Também é só o que o faz sair do sério... a literatura!
Amélia indagou se Amâncio também escrevia. Ele disse que sim, a desculpar-se com os outros.
— Quem neste mundo não rabiscava mais ou menos?...
Ela mostrou logo empenho em lhe conhecer as produções.
— Não vale a pena! disse o moço. — Não vale a pena!
— Ai, ai! suspirou Nini, que parecia adormecida com os olhos abertos.
Mme. Brizard que já conhecia o alcance daquele suspiro, perguntou à filha o que desejava. Nini apontou melancolicamente para um prato, onde fatias transparentes de abacaxi nadavam em calda de vinho.
— Não senhora, volveu a mãe — isso não pode ser; faz-te mal.
Nini suspirou de novo e ficou e a olhar para Amâncio, resignadamente, o semblante muito pesaroso, a cabeça vergada para o lado.
— Serve-te antes de doce, aconselhou Mme. Brizard.
O Lambertosa apressou-se a passar a Nini a compoteira.
— Pouco, Sr. Lambertosa, dê-lhe pouco!
Veio o café. César levantou-se da mesa e foi brincar a um canto da sala. Mme. Brizard queria saber se estavam todos satisfeitos; ela, quanto a si, jantara perfeitamente, confessava.
E, com um aspecto regalado, deixava-se ficar prostrada na cadeira, entorpecida no bem-estar do seu estômago.
O copeiro, um preto alto de pernas compridas, levantou a toalha, acendeu o gás e trouxe curaçau e conhaque. Amélia bebericou o seu cálice de licor e levantou-se logo para ir à janela. Afastaram-se as cadeiras da mesa, e a conversa reapareceu com mais força.
O Lambertosa, Mme. Brizard e Coqueiro formaram grupo, a discutir o preço excessivo e a falsificação dos gêneros alimentícios. O gentleman reclamava uma junta de higiene, rigorosa, que mandasse lançar à praia todos os gêneros deteriorados que encontrasse. "Era assim que se fazia na Europa!"
Lúcia, do outro lado da mesa, continuava a falar com Amâncio sobre literatura. Já estavam em Théophile Gautier, Théodore de Banville e Baudelaire, depois de haverem tocado de passagem em alguns escritores de Portugal. Agora sentia-se mais eloquente o provinciano; acudiam-lhe opiniões e juízos perfeitamente armados; percebia que as suas palavras causavam bom efeito; ia bem.
Pereira e Nini conservavam-se um defronte do outro, igualmente concentrados e mudos; ela, porém, com os olhos muito abertos sobre Amâncio. O outro afinal ergueu-se, atravessou, lentamente, como um sonâmbulo, a sala de jantar, e foi estender-se em uma preguiçosa que ficava junto à janela.
Vibrou então o piano no salão de visitas.
— É melhor irmos todos para lá, alvitrou a dona da casa.
O marido e o Lambertosa aceitaram logo a idéia, e Amâncio, sem interromper a sua conversa com a mulher do Pereira, a esta deu o braço e seguiu o exemplo daqueles.
Lúcia caminhava toda reclinada sobre ele, falando-lhe em tom mui vagaroso, com acentuações finas de boa educação.
A sala iluminada tinha um caráter imponente. O gentleman encaminhou a conversa geral para a música, aconselhou a Amâncio a que solicitasse da Sr.ª D. Lúcia um pouco do Guarani, que ela tocava admiravelmente.
Lúcia queixou-se de que ultimamente sofria de certa fraqueza nos dedos e não tocava com a mesma expressão, mas sempre foi, pelo braço de Lambertosa tomar ao piano o lugar que Amélia deixara nesse instante. E logo as primeiras notas da introdução do Guarani encheram a sala com a sua corajosa e dominadora solenidade.
Fizeram silêncio.
Ela tocava bem, com muita energia e destreza. Amâncio encostara-se sozinho ao canto de uma janela e sentia-se ir pouco a pouco arrastando pela irresistível corrente daquelas frases musicais. Seu estômago, perfeitamente confortado, dava-lhe ao corpo um bem-estar beatífico e predispunha-lhe o espírito para as vagas concentrações e para os místicos arrebatamentos da fantasia. Um profundo langor, muito voluptuoso, apoderava-se de todo ele, e os vapores duvidosos de um princípio de embriaguez acamavam-se em torno de sua cabeça, anuviando-lhe os objetos exteriores.
E ali, da janela, suspenso ainda pelas novas impressões que lhe deparavam os novos aspectos de sua existência, abstrato e perdido em cismas indefinidas, enxergava, por entre as névoas de seu enlevo, o vulto melancólico de Lúcia, assentado defronte do piano, a tocar o teclado com os dedos, num frenesi delicioso.
Depois da música, principiou a simpatizar com ela; já gostava de a ver, misteriosa e pálida, arrastando a vida com a languidez de uma convalescente.
Estava todo embevecido a pensar nesta simpatia, quando voltou por acaso o rosto e deu com os olhos de Nini, que o fitavam sem pestanejar.
— É birra, não tem que ver! pensou ele aborrecido.
Duas horas depois tornavam à sala de jantar. Serviam-se as torradas. Pereira, com o César adormecido sobre as pernas, ressonava profundamente na mesma preguiçosa em que o tinham deixado.
Mme. Brizard chamou o copeiro e ordenou-lhe que recolhesse o menino. Pereira espreguiçou-se, abriu vagarosamente os olhos, mas tornou a fechá-los, bocejando.
Já estavam à mesa, quando os hóspedes principiaram a chegar.
Veio o Paula Mendes e mais a mulher. Ele de pequena estatura, grosso, os movimentos acanhados, a voz branda e a fisionomia triste; ela muito alta, cheia de corpo, despejada de maneiras e com feições de homem.
Chamava-se Catarina, estava sempre a implicar com as coisas e tinha muita força de gênio. Entrou na sala como uma fúria; o marido atrás. Cumprimentou a todos com um — "boas noites" terrível, e, atirando-se a uma cadeira, declarou, a bater com a mão na mesa, que vinha desesperada! — Pois, se em vez de piano, lhe haviam dado um tacho, um verdadeiro tacho, para executar um noturno de Chopin, dificílimo!
— Pouca-vergonha! exclamava ela, rangendo os dentes. — Canalhas!
— Mas o culpado foste tu, lesma de uma figa! — já devias conhecer melhor aquela súcia!
— Mas... ia responder o marido.
— Cale-se, berrou ela. — Não me dê uma palavra, que não estou disposta a lhe ouvir a voz! Diabo do basbaque!
Fez uma pausa, estava arquejante, mas continuou logo:
— Também ali, acabou-se! cruz na porta! Nunca mais! nunca mais! Nem admito que me falem na rua! Corja!
E, levantando-se com ímpeto, cumprimentou a todos com um arremesso, e subiu para o segundo andar, levando o marido na frente, aos empurrões.
— Safa, disse Amâncio consigo.
O Dr. Tavares é que vinha satisfeito. Estivera em casa de um amigo, pessoa de muita consideração, onde se reunia a mais fina sociedade.
E, necessitando de expandir o seu bom humor, entabulou conversa com Amâncio. Falou-lhe a um só tempo de mil coisas diferentes; tratou muito de si; das suas pretensões na Corte que apenas conhecia de alguns meses; das suas esperanças de obter o que desejava: do que lhe dissera tal ministro; do que lhe prometera tal conselheiro, e, afinal, da sua profissão de advogado, profissão que ele exercia com entusiasmo, com delírio, porque, desde pequeno, toda a sua queda fora sempre para falar em público, para dominar as massas.
E, esquentando-se ao calor de suas próprias palavras, discursava, como se já estivesse no tribunal. Armava posições; recorria aos efeitos da tribuna, vergava para trás a cabeça, ameaçando espetar o auditório com a ponta de sua barba triangular.
Sentia-se radiante por ver que todos os mais não abriam a boca, enquanto ele estivesse com a palavra.
Seu tipo indeciso, de cearense do interior, uma dessas fisionomias confusas e duvidosas, nas quais o fulvo castanho dos cabelos quase que não se distingue do moreno da pele e do pardo verdoengo dos olhos, seu tipo transformava-se na febre da eloquência e parecia acentuar-se por instantes.
E, já de pé, com uma das mãos apoiada nas costas da cadeira, jogava freneticamente com a outra, ora espalmando-a em cheio sobre o peito, ora apontando terrível para o teto, ora indicando o chão, horrorizado, como se aí estivesse um abismo, ora dando com o indicador ligeiras e repetidas facadinhas no ar; ao passo que a voz, pelo contrário, se lhe arrastava em trêmulos prolongados, como as notas graves de um harmonium.
Enquanto ele parolava, outros hóspedes se recolhiam aos competentes quartos, atravessando a varanda pelo fundo na ponta dos pés, com medo da "caceteação".
Aquele homem era o terror da casa. Às vezes, depois do jantar, quando ele abria as torneiras da loquacidade, iam todos, um por um, fugindo sorrateiramente, até deixá-lo a sós com o Pereira que, afinal, adormecia.
Amâncio principiava a sentir cansaço. Quis retirar-se; não lho consentiram.
— Passava já da meia-noite, a casa de Campos devia estar fechada àquela hora. — O melhor seria ficar, observou a francesa.
— Que diabo, acudiu Coqueiro. — Fica! não incomodarás ninguém... Está tudo providenciado; a cama feita... Além disso, olha! E mostrando o céu pela janela: — Vamos ter chuva!
Com efeito sopravam os ventos do sul. Amâncio ainda opôs algumas razões, mas finalmente cedeu.
Era mais de uma hora quando se dispersou a roda e cada um, depois de novos protestos e oferecimentos se recolheu à competente alcova.
Mme. Brizard recomendou muito a Amâncio que ficasse à vontade; que não tivesse escrúpulos em reclamar qualquer coisa de que sentisse falta. Supunha, porém, não haver ocasião disso, porque fora ela própria e mais a Amelinha quem lhe arranjara o quarto.
Coqueiro acompanhou-o até à cama, examinou rapidamente se estava tudo no seu lugar e depois, dando mais luz ao bico do gás, e tirando um folheto da algibeira, disse-lhe com um sorriso:
— Sempre te vou mostrar os versos...
Amâncio, já meio despido, estremeceu, mas não opôs a menor consideração, e meteu-se debaixo dos lençóis.
O outro, em pé, ao lado da cama, folheava amorosamente o seu caderno de versos, à procura do que deveria ler em primeiro lugar.
Descobriu afinal e, com a voz clara e sonora, principiou:
"Estamos em plena Roma. Os Césares devassos..."