Casa de Pensão/VIII
Amâncio sentiu um grande alívio, quando se achou afinal inteiramente só; a porta do quarto bem fechada e a luz do bico de gás quase extinta.
Estava morto de fadiga. As enfadonhas conversas de Coqueiro e Mme. Brizard, o jugo inquisitorial das cerimônias, a pândega da véspera, tudo isso dava àquela caminha fresca, de lençóis limpos, um encanto superior ao que houvesse de melhor no mundo. Seu corpo, quebrado de impressões diversas e na maior parte consumidoras e lascivas, bebia aquele repouso por todos os poros, voluptuosamente, como um sequioso que se metesse dentro da água.
Aninhou-se, encolheu-se, abraçado aos travesseiros, ouvindo com uma certa delícia esfuziar o vento nas portas e, lá fora, desencadear-se o temporal, arremessando água aos punhados contra telhas e paredes.
E deixava-se arrebatar pelo sono, como se deslizasse por uma ladeira interminável de algodão em rama.
Os acontecimentos do dia começaram a desfilar em torno de sua cabeça, em procissões fantásticas de sombras duvidosas e fugitivas. Dentre estas, era o vulto de Lúcia o que melhor se destacava, com o seu andar quebrado e voluptuoso, a remexer os quadris, atirando a barriga para a frente. Chegava a distinguir-lhe perfeitamente os grandes olhos amortecidos e a sentir-lhe o perfume que ela trazia essa tarde no lenço e nos cabelos. Em seguida vinha a outra, a Amelinha, mas não com a lucidez da primeira. E logo depois Mme. Brizard, com o seu todo pretensioso; Nini, a fitá-lo muito aflita, as mãos inchadas e sem tato, o cabelo escorrido sobre a cabeça, cheirando a pomada alvíssima, bata de lã escura e sinistra como um burel. E depois, numa confusão vertiginosa — Coqueiro, a berrar versos, dançando no ar e a sacudir em uma das mãos um punhado de feijões pretos; e Paula Mendes a jogar os murros com a mulher; e Dr. Tavares a discursar com os braços erguidos para o ar; e César, o menino prodígio, a escarafunchar o nariz freneticamente; e Pereira, de olhos fechados, a andar como um sonâmbulo; e o...
Mas os vultos de todos se confundiam e desfibravam, como nuvens que o vento enxota. Amâncio já os não distinguia.
Acordou às oito horas do dia seguinte, meio inconsciente do lugar onde se achava. Logo, porém, que caiu em si, levantou-se de um pulo e abriu a janela de par em par. Um jato de luz dourada invadiu-lhe a alcova.
Olhou a manhã, que estava de uma transparência admirável. A chuva de véspera limpara a atmosfera; corria fresco. Os bondes passavam cheios de empregados públicos; viam-se amas-de-leite acompanhando os bebês; senhoras que voltavam do banho de mar, o cabelo solto, uma toalha ao ombro.
Aquele movimento era comunicativo. Amâncio sentiu vontade de sair e andar à toa pelas ruas. Todo ele reclamava longos passeios ao campo, por debaixo de árvores, em companhia de amigos.
Foi para o lavatório cantarolando; o sono completo da noite fazia-o bem disposto e animado.
Mal acabava de preparar-se quando bateram de leve na porta. Era uma mucamazinha, que já na véspera lhe chamara por várias vezes a atenção durante o jantar.
Teria quinze anos, forte, cheia de corpo, um sorriso alvar mostrando dentes largos e curtos, de uma brancura sem brilho.
Vinha saber se o Dr. Amâncio queria o café antes ou depois do banho.
Amâncio, em vez de responder, agarrou-lhe o braço com um agrado violento e grosseiro.
Ela pôs-se a rir aparvalhadamente.
Às dez horas, ao terminar o almoço, estava já resolvido que o rapaz, naquele mesmo dia, se mudaria definitivamente para a casa de pensão.
Com efeito, pouco de pois, no escritório de Campos, dizia a este, cheio de maneiras de pessoa ajuizada, "que afinal descobrira em casa da família de um amigo o cômodo que procurava". Agradeceu muito os obséquios recebidos das mãos do negociante, desculpou-se pelas maçadas que causara naturalmente e pediu licença para despedir-se de D. Maria Hortênsia.
Campos, logo que soube qual era a casa de pensão de que se tratava, aprovou a escolha, citou pessoas distintas que lá estiveram morando por muito tempo, e recomendou ao estudante — que lhe aparecesse de vez em quando; que não se acanhasse de bater àquela porta nas ocasiões de apuro, porque seria atendido, e, afinal, perguntou se Amâncio queria receber a mesada, já ou mais tarde.
— Como quiser... respondeu o provinciano, sem ter, aliás, a menor necessidade de dinheiro. E foi embolsando a quantia.
D. Maria Hortênsia recebeu-o com muito agrado. A irmã não estava em casa.
Conversaram.
Ela sentia que Amâncio se retirasse assim tão depressa; — mas, quem sabe? talvez não se desse bem ali; não fosse tratado como merecia...
O estudante protestava, jurando que não podia ambicionar melhor tratamento do que lhe dispensaram; reconhecia, porém, que já causava muito incômodo, e por conseguinte devia retirar-se. Não queria abusar.
Hortênsia afiançava e repetia que ele não dera incômodo de espécie alguma. — Tudo aquilo era feito com muito gosto!
Agora parecia mais familiarizada com o provinciano. Chegou a dirigir-lhe gracejos; disse, com um sorriso de intenção, que "sabia perfeitamente o que aquilo era! O que eram rapazes! — Não se queriam sujeitar a certo regime; só lhes servia pagodear à solta! Enfim!... tinham lá a sua razão... Se ela fosse rapaz faria o mesmo, naturalmente!".
Amâncio estranhou que tais palavras viessem de que vinham, e, não querendo perder a vaza, retorquiu com febre: "Que Hortênsia estava enganada a respeito dele, que não o conhecia! Se, à primeira vista ele parecia um pândego ou um sujeito mau, não o era todavia no fundo! Ninguém amava tanto a família; ninguém! desejava o lar com tanto ardor e com tanto desespero! Oh! que inveja não tinha de Campos!... que inveja não tinha de todo o homem, a cujo lado enxergava uma esposa bonita e carinhosa!..."
Hortênsia agradeceu com um sorriso.
— Oh! Quanto fora injusta!... prosse guiu Amâncio, com o rosto esfogueado de comoção. — Quanto fora injusta! O seu ideal, dele, era justamente o casamento; era possuir uma mulherzinha, cheirosa e meiga, com quem passasse a existência, ditosos e obscuros no seu canto, vivendo um para o outro, ignorados, egoístas, não cedendo nenhum dos dois, a mais ninguém, a menos particulazinha de si — um sorriso que fosse, um olhar amigo, um aperto de mão!
— Que rigor! exclamou Hortênsia, tomando certo interesse pelo que dizia o estudante. — Que rigor! Não o supunha assim, seu Amâncio!...
— Oh! Era assim que ele entendia o verdadeiro amor!...
E, cada vez mais quente:
— Era assim que ele amaria! Era assim que ele cercaria de beijos o anjo estremecido que o quisesse recolher à tepidez consoladora de suas asas! Era assim que ele sonhava a existência de duas almas gêmeas, soltas no azul, gozando a voluptuosidade do mesmo vôo.
— Pois é casar-se, meu amigo... aconselhou a mulher de Campos, pasmada de ouvir Amâncio falar daquele modo. — Não o fazia tão prosa!...
E, como era preciso dizer qualquer coisa, acrescentou muito amável:
— Quem sabe se alguma fluminense já não lhe voltou o miolo!...
Ele confessou que sim, sacudindo tristemente a cabeça. E, de tal modo exprimiu o seu amor por "essa fluminense", tão ardente e tão apaixonado se mostrou, que Hortênsia instintivamente se ergueu, a olhar para os lados, sobressaltada como se tivesse cometido uma falta.
Não quis saber de quem se tratava.
Deu uma volta pela sala, foi ao aparador, tomou alguns goles dágua e, procurando mudar de conversa, falou do baile que havia essa noite em casa do Melo. — Devia ser muito bom, constava que havia quinze dias se preparavam para a festa. Era em Botafogo. Campos, logo que recebeu o convite, lembrou-se de levar Amâncio consigo, este, porém, tão raramente aparecia em casa, e agora, com esta mudança...
— Não. Campos falou-me, disse o estudante.
— Ah! sempre chegou a lhe falar?
— Há três ou quatro dias; mas eu não tencionava ir...
— Por quê? O senhor é moço, deve divertir-se.
— A senhora vai?
— Sim, vou.
— Nesse caso irei também.
E Amâncio ligou tão expressiva entonação àquelas palavras, que Hortênsia abaixou os olhos, já impaciente, sem mais vontade de conversar.
— Seria possível, pensava ela — que aquele estudante lhe quisesse fazer a corte?... Não! não seria capaz disso, e, se fosse, ela saberia desenganá-lo! Ah! com certeza que o desenganava!
Campos subiu daí a um instante, e Amâncio, depois de combinar com ele que voltaria à noite para irem juntos à casa de Melo, entregou as suas malas a um carregador e saiu.
Sentia-se alegre; a nova atitude de Hortênsia dava-lhe um vago antegosto de prazeres; previa com delícia os bons momentos que o esperavam.
— E agora é que vou deixar a casa!... pensava ele já na rua. — Que tolo fui! Abandonar a empresa, justamente quando me sorri a primeira esperança! "Mas pedaço de asno, argumentava com seus botões — não calculaste logo que aquela mulher mais dia menos dia havia de escorregar? Por que diabo então não esperaste um pouco?..." Ora! mais que caiporismo, o meu! Sair nesta ocasião! Perder uma conquista tão boa! Agora também que remédio lhe hei de dar? O que está feito, está feito! A este momento minhas malas talvez já tenham chegado à casa de Coqueiro! E com este nome assaltaram-lhe logo o espírito as imagens de Lúcia e de Amelinha.
— Bem me dizia Simões, pensou ele. — Bem me dizia Simões: "Quando te começarem as aventuras, hás de ver o que vai por esta sociedade!"
E Amâncio, que não conseguia reter na cabeça as palavras dos seus professores, Amâncio, que era incapaz de guardar na memória um fato, um algarismo, uma fórmula científica, conservava, entretanto, com toda a inteireza aquela frase banal, pronunciada por um pândego em um almoço de hotel, depois de dúzia de garrafas de vinho.
O Simões tinha toda a razão... principiavam as aventuras! Diabo era aquela asneira de abandonar tão intempestivamente a casa de Campos! Fora uma triste idéia, que dúvida! Mas, ele também não podia adivinhar quais seriam as intenções de Hortênsia!... O melhor por conseguinte era não se apoquentar — o que lhe estivesse destinado havia de chegar-lhe às mãos!...
E já nem pensava nisso quando subiu as escadas da casa de pensão. Sorrisos amáveis de Amelinha e Mme. Brizard o receberam desde a entrada. Coqueiro estava na rua.
Veio à conversa o baile dessa noite. Amâncio, pela primeira vez, ia conhecer uma sala da Corte. As duas senhoras profetizavam que ele voltaria cativo por alguma carioca.
— Duvido! — respondeu o estudante, a rir.
— É! disse a francesa — vocês do Norte são todos uns santinhos! Eu já os conheço! Nunca vi gente tão assanhada.
Amelinha abaixou os olhos, depois de lançar à outra um gesto repreensivo.
Mme. Brizard não fez caso e acrescentou:
— Os demônios não podem ver um rabo-de-saia!
— Loló! censurou Amelinha em voz baixa.
— Também não é tanto assim!... contradisse o provinciano.
Mme. Brizard citou logo os exemplos de casa, até ali entre todos os seus hóspedes, só os nortistas devam sorte em questão de amor. — Um deles, um tal Benfica Duarte, chegara a raptar com escândalo uma crioula, e crioula feia!
Amelinha, bem contra a vontade, soltou uma risada, que lhe desfez por instantes o ar inocente da fisionomia; mas recuperou-o logo, e lembrou à cunhada "que não deviam estar ali e roubar o tempo a seu Amâncio. Ele tinha que cuidar das malas que já o esperavam no quarto".
— Nós podemos ajudá-lo nesse trabalho, acudiu a velha. — Certas coisas só ficam bem feitas por mão de mulher!
O estudante aceitou o oferecimento, e os três seguiram para o gabinete, sempre a rir e a conversar.
Amelinha, enquanto Amâncio entrava no quarto, observou, em voz baixa a Mme. Brizard, que não achava conveniente que esta arriscasse em sua presença pilhérias como as de ainda há pouco. — O rapaz, por muito ingênuo que fosse, podia desconfiar com aquilo e persuadir-se de que ela, Amelinha, não daria uma noiva bastante séria e digna dele! Que, às vezes, por estas e outras indiscrições, desmanchavam-se casamentos!
— Como te enganas! respondeu a velha — já compreendi bem esse sujeito: a sua corda sensível são as mulheres! Gosta que lhe falem nisso! Tu, do que precisas, é opor-lhe dificuldades, sem que o desenganes por uma vez; nega, mas promete, que obterás a vitória. Quando ele te pedir um beijo, dá-lhe um sorriso; e, quando quiser muito mais, dá-lhe então o beijo, contanto que te mostres logo arrependida, envergonhada, chorosa, inconsolável, e disposta a não lhe ceder mais nada, e disposta a nunca lhe pertenceres, a nunca lhe perdoares aquele atrevimento. E, se ele insistir, repele-o, insulta-o, jura que o desprezas e fá-lo acreditar que amas a outro. — É dessa forma que o hás de agarrar, percebes? Lá quanto às minhas chalaças de ainda há pouco, descansa que por aí não irá o gato às filhoses.
Nesse momento, o rapaz acabava de abrir as malas. As duas senhoras apareceram no quarto.
Ele tinha muita roupa branca, e tudo bom. Camisas finas de linho, ricas toalhas de renda marcadas cuidadosamente por sua mãe, fronhas bordadas, mostrando o seu nome entre labirintos e desenhos caprichosos.
Sentia-se o amor, o desvelo, com que tudo aquilo fora arrumado; cada objeto parecia conservar ainda a marca da mão carinhosa que o acondicionara a um canto da arca. Alguns denunciavam o trabalho paciente de longos tempos, traziam à idéia calmos serões à luz do candeeiro. Adivinhava-se, pelo completo daquele enxoval, a previdência de um coração materno; nada faltava.
À proporção que se iam tirando as peças de roupas, uma tepidez embalsamada respirava dentre elas; parecia que um perfume ideal de beijos se exalava ao desdobrar dos brancos lençóis de linho; percebia-se que muita lágrima e muito soluço ficaram abafados no fundo daquelas arcas.
Vieram ao provinciano novas e mais vivas saudades de Ângela. Uma vaga tristeza apoderou-se dele; ficou distraído, a olhar silenciosamente para as roupas que as duas mulheres empilhavam no chão e sobre a cama. Sentiu, compreendeu, que ele próprio, à semelhança daquelas arcas, havia também de ir perdendo, pouco a pouco, todas as ilusões, todos os perfumes, com que saíra impregnado dos braços de sua mãe.
E afastou-se do quarto para limpar as lágrimas. As lágrimas, sim, que o fato de sua primeira viagem, as impressões da Corte, a saudade, as aventuras amorosas, as ceatas pelos hotéis, davam-lhe ultimamente uma sensibilidade muito nervosa e feminil. Elas acudiam-lhe agora com extrema facilidade, chorava sempre que se comovia. Às vezes, no teatro, assistindo à representação de qualquer drama de efeitos, ficava envergonhado por não poder impedir que os olhos se lhe enchessem dágua; a simples descrição de um desgraça perturbava-o todo; a música italiana o entristecia; a idéia de um feito heróico ou de um rasgo de perversidade era o bastante para lhe agitar a circulação do sangue e formar-lhe godilhões na garganta.
Quando voltou ao quarto, já os baús estavam despejados.
Mme. Brizard não se fartava de elogiar a boa qualidade das fazendas, o bem cosido das roupas, a pachorra e asseio com que tudo fora feito. Apreciava o trabalho das marcas; chamava a atenção de Amélia para os bordados, para os labirintos e para as rendas.
— Olha! disse-lhe, mostrando um pano de crochê — o desenho é justamente como aquele da toalha do oratório. Só faltam aqui as duas borboletas do canto.
E arrumava tudo, com muito cuidado, nas gavetas da cômoda. Tomava religiosamente sobre os braços os pesados lençóis, os maços de ceroulas em folha, os pacotes intactos de meias listradas, os de lenço barrados de seda, os colarinhos de todos os feitios, as gravatas de todas as cores. E não acondicionava uma peça sem afagá-la, sem lhe passar por cima as mãos abertas.
— O rapaz estava provido de tudo! disse em voz baixa. E, depois, acrescentou alto, rindo: — Podia até casar se quisesse!
— Falta o principal... respondeu ele.
— Que é? acudiu logo Amélia.
— A noiva! explicou o moço, olhando intencionalmente para a rapariga.
— Deve estar à sua espera no Maranhão... volveu ela.
E abaixou os olhos com um movimento de inocência, muito bem feito.
— Não vê! exclamou a velha. — Então um rapaz desta ordem deixava as meninas da Corte para amarrar-se a uma provinciana?... Seria de mau gosto!
— Não sei por que, retorquiu Amâncio, ligeiramente escandalizado. — Na província há senhoras bem educadas, muito chiques!
— Sei, sei, perfeitamente, disse Mme. Brizard, evitando contrariá-lo. Sei que as há... mas é que o Sr. Vasconcelos tem elementos para desejar muito melhor! Seria pena que um rapaz tão perfeito não escolhesse uma noivazinha comme il faut. — Bonita, instruída, que soubesse entrar e sair numa sala, conversar, fazer música, recitar, servir um almoço, dirigir uma soirée. Além de que, meu caro senhor, as provincianas, em geral, saem muito mais exigentes do que as filhas da Corte.
E, como Amâncio fizesse um ar de espanto:
— Sim, porque a fluminense, habituada como está na capital e familiarizada com os bailes, com os espetáculos do lírico, com os passeios, já se não preocupa com essas coisas e, uma vez casada, dedica-se exclusivamente ao lar, ao marido e aos filhinhos; ao passo que com as outras, as provincianas, sucede justamente o contrário, visto que ainda não conhecem aqueles gozos e só desejam o casamento para conhecê-los. Daí as suas exigências; nada cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração as satisfaz, porque tudo fica muito aquém dos seus sonhos da província; o que para as outras é tudo, para elas não é nada. Bailes e teatros toda a noite, carruagens, lacaios, vestidos de seda, dez ou vinte criados, nada as contenta, nada corresponde ao que elas ambicionam. E o marido, o pobre marido de semelhante gente, depois de arruinado e depois de passar uma existência sem amor e sem conchegos de família, ainda terá de suportar as queixas e os ressentimentos de uma mulher desiludida e blasé.
— Perdão! replicou o estudante. — Isso prova simplesmente que toda a mulher, seja da província ou da Corte, apresenta sempre certa dose de ambições. Com a diferença, porém, de que a provinciana, por isso mesmo que o Rio de Janeiro é o seu ideal, é o seu sonho dourado, contenta-se com ele; enquanto que a outra, visto que o supradito Rio de Janeiro para ela nada mais é que o comum, estende naturalmente a sua ambição — e quer Paris. O Passeio Público já não a satisfaz, é preciso dar-lhe Bois de Boulogne; já não lhe chegam carruagens, criados e teatros; quer tudo isso e mais um título de baronesa pelo menos!
E, encantado com a clareza do seu argumento, continuou a discutir, chegando à conclusão de que seria loucura desejar uma mulher isenta de ambições e caprichos, e que ele já se daria por muito satisfeito se encontrasse alguma, cujo ideal não fosse além do Rio de Janeiro.
Amélia era precisamente dessa opinião, mas entendia que, mesmo na Corte, se encontravam meninas bem educadas e, aliás, muito modestas.
Amâncio declarou que não argumentava com exceções. — Sabia perfeitamente que nem todas as fluminenses calçavam pela mesma forma, e não tinha a pretensão de dizer "desta água não beberei, deste pão não comerei!" apenas não admitia aquela razão, que apresentava Mme. Brizard, para provar que as provincianas eram mais dispendiosas do que as filhas da Corte. Isso não! que o desculpassem, mas não podia admitir!
Sempre queria vê-lo casado com uma provinciana!... observou a francesa, tomando a roupa que lhe passava a outra. — Então sim! Aposto que não teria a mesma opinião!
Amâncio não respondeu logo, porque estava muito ocupado a apanhar do chão uma grande pilha de camisas engomadas, que Amelinha deixara cair. Mme. Brizard acudiu também a ajudá-los, e, na precipitação com que todos três, agachados um defronte dos outros, queriam ao mesmo tempo recolher a roupa espalhada no soalho, as mãos do estudante encontravam-se com umas mãozinhas finas que não eram certamente as de Mme. Brizard.
Mas todas as vezes que ele tentou retê-las entre as suas, as tais mãozinhas fugiam tão ligeiras, como se lhes houvessem chegado uma brasa.