Casa de Pensão/IX

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O baile em casa de Melo esteve bom. Este, muito magro, de suíças negras, olhos fundos e movimentos rápidos, não descansava um instante; tão depressa o viam conduzindo senhoras pela escada, como a receber apresentações na sala de jantar, como a formar quadrilhas; voltando-se para todos os lados e atendendo a todas as pessoas.

O Melo tinha boas relações e alguns bens adquiridos no comércio; nunca se envolveu diretamente com a política; mas prezava o monarca e esperava, com resignação, um habito que há dez anos lhe haviam prometido pingar sobre a lapela da casaca. A mulher, que já não era criança, ainda metia muita vista e passava por bonita; homens, que envelheceram com ela, citavam-na como um tipo de formosura.

Amâncio foi recebido com especial agrado, graças ao Luís Campos que era íntimo do dono da casa.

A circunstância de que ali se achava só, no meio de tanta gente estranha, como que apertava o círculo de suas relações com a família do correspondente. Fazia-se muito deles, muito aparentado; não dispunha de mais ninguém para desabafar as suas impressões e para conversar um pouco mais à vontade.

Assim, quando saltamos em um porto pela primeira vez, sentimos estreitarem-se de repente nossas relações com os companheiros de bordo, ainda mesmo que os conheçamos de poucos dias.

Até Carlotinha parecia mais expansiva, principalmente depois que Amâncio se revelou insigne dançador de valsa. Ela era louca pela dança. Maria Hortênsia notara igualmente que o provinciano tinha um certo talento coreográfico muito peculiar, e não ficou isolada nesse juízo, porque várias senhoras se declararam da mesma opinião.

Não tardou muito a que semelhante julgamento se estendesse pelas outras salas, e em breve estavam todas as damas de acordo que Amâncio era o melhor par daquela noite.

Com efeito, se ele em qualquer outra coisa não conseguiu a perfeição, na dança ao menos nada se lhe tinha a desejar, dançava admiravelmente, por vocação, por índole, por um jeito especial do corpo, e com um amaneirado gracioso que sabia dar aos braços, à cabeça, e às pernas. Pode-se dizer que na valsa dispunha de um estilo próprio, original.

Quando, sacudido pela música, os olhos meios cerrados, a boca meia aberta, arremessava-se com a dama no turbilhão da sala, tinha alguma coisa de pássaro que desprende o vôo. Ficava até mais bonito; os cabelos crespos tremiam-lhe romanticamente sobre a testa; o cansaço dava ao moreno de suas faces uma palidez misteriosa e doce. E, com o braço direito engranzado à cintura do par, o esquerdo repuxando nervosamente a mão que a dama estendia sobre a sua, ele empertigava-se todo com delícia, a fechar os olhos e a rodar extasiado, embevecido, como se fora arrebatado por entre nuvens de arminho.

No seu temperamento, excessivamente lascivo, gozava com sentir ligado ao corpo o corpo precioso de uma mulher de estimação; comprazia-lhe em beber-lhe o hálito acelerado pela dança, embebedava-se com respirar-lhes os perfumes agudos do cabelo e o infiltrante cheiro animal da carne.

Afinal, depois de uma valsa, estonteado e ofegante atirou-se ao canto do divã em que estava Hortênsia.

Confessava-se prostrado, a limpar o suor do pescoço e da fronte. Fora imensa a valsa e ele cansara três pares que se abateram inúteis, como as espadas de Ney na batalha de Waterloo.

— Apre! disse.

As senhoras olhavam-no já com respeito, acompanhavam-lhe os menores movimentos com enorme interesse.

— Muito bem! muito bem! cochichou-lhe a mulher de Campos. — Ignorava que o senhor fosse tão forte na valsa!

E começaram a conversar sobre o mal que se dançava ultimamente. Ela declarou que uma das coisas que mais apreciava, era a boa valsa. Isso desde criança; no colégio, às vezes, as meninas passavam a hora do recreio dançando umas com as outras.

— Ninguém o diria... considerou Amâncio, fazendo-se muito seu camarada. — A senhora hoje só tem querido dançar quadrilhas.

Ela respondeu com um risinho significativo.

— Quer uma valsa comigo?... perguntou o rapaz, em segredo, requebrando os olhos.

— Não posso! disse ela, quase com um suspiro. — Aceitaria de bom grado, mas não posso...

— Valha-me Deus! Por quê?

— Porque...

Hortênsia sorriu de novo, sem ânimo de confessar a verdade — o marido não gostava de a ver valsar. Também não se podia desculpar, dizendo que não sabia, porque ainda há pouco dissera justamente o contrário; afinal, sem fazer empenho de ser acreditada acrescentou gracejando.

— Porque... porque me faz mal...

Amâncio prometeu que a conduziria devagar e que não dançaria longo tempo seguido; aceitava todas as condições, contanto que desfrutasse a suprema ventura de lhe merecer uma valsa.

Hortênsia não respondeu; tinha o olhar esquecido sobre um grande quadro que lhe ficava defronte suspenso da parede. E abanava-se, lentamente, como seguindo o vôo de um vago pensamento voluptuoso.

O quadro representava uma cena de Fausto e Margarida, no jardim (um longo beijo apaixonado que parecia soluçar entre a folhagem misteriosa do painel. O encantado filósofo tomava nas mãos brancas a loura cabeça de sua amante, e sorvia-lhe a alma pelos lábios. O sol morria ao longe, dourando a paisagem, e um casal de pombos arrulhava à sombra azulada de uma planta).

Hortênsia olhava para isso, enquanto, ao gemer das rebecas, cruzavam-se na sala os pares, marcando contradanças. O aroma das flores, que se fanavam em grandes vasos japoneses, misturava-se ao cheiro das mulheres e penetrava a carne com a sutilidade de um veneno lento e delicioso como o fumo do charuto. Os membros lácteos das senhoras, expunham-se nus à grande claridade artificial do gás; as jóias faiscavam; os olhos desfaleciam e um calor gostoso ia infirmando os sentidos e entontecendo a alma.

— Então?... pediu Amâncio, pondo muita doçura na voz — dance comigo, sim?... Faça-me a vontade. Eu sentiria nisso tanto gosto...

E todo ele suplicava aquele obséquio, com o empenho apaixonado de quem pede uma concessão de amor.

Ela dizia que não, meneando a cabeça; mas, um sorriso, que se lhe escapava dos lábios, dizia o contrário.

— Então!... sim?... sim?... um bocadinho só! insistia o estudante, a devorá-la com os olhos.

Estava ainda cansado; a voz não lhe vinha inteira, mas quebrada, como por um espasmo; os olhos dele arqueavam-se luxuriosamente; as pernas principiavam-lhe a tremer.

— O que lhe custa, à senhora, dançar um pouquinho comigo?...

E, vendo que ela não respondia, balbuciou em tom magoado, de criança ressentida:

— Bem, bem, não lhe peço mais nada, não a importunarei de hoje em diante. Desculpe!

Hortênsia voltou-se para ele, ia talvez desenganá-lo; mas a orquestra, que havia emudecido depois da quadrilha, deu sinal para a "valsa". Era o Danúbio, de Strauss.

O rapaz ergueu-se como um soldado que ouvisse tocar o rebate.

Ela não resistiu, levantou-se de um salto e entregou-lhe a cintura.

Dançaram. A princípio vagarosamente: depois, como a música se acelerasse, Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar, a cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração doida.

A música redobrou de carreira.

Foi então um rodar convulso, frenético: a casa, os móveis, as paredes, tudo girava em torno deles.

Hortênsia dançava tão bem como o rapaz. Os dois pareciam não tocar no chão; os passos casavam-se como por encanto; as pernas gravitavam em volta uma das outras com precisão mecânica.

Encheu-se a sala de pares. Amâncio fugiu com Hortênsia, sem interromper a valsa; pareciam empenhados numa conjuntura amorosa. Ela arfava, sacudindo o colo com a respiração; os seus braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos amorteciam-se defronte dos dele; não podia fechar a boca, o seu hálito misturava-se ao hálito fogoso do estudante.

De repente, Amâncio parou, exausto. Ouvia-se-lhe de longe a respiração.

— Não! não! balbuciava ela, quase sem poder falar. — Ainda! mais um pouco!...

E abraçaram-se de novo, freneticamente.

Quando parou a música, Hortênsia caiu sobre um divã pelos braços de Amâncio.

Não podia dar uma palavra; não podia abrir os olhos. Sua respiração parecia longos suspiros contínuos e estalados.

Vários cavalheiros se aproximaram.

— Ficou muito fatigada?... perguntou Amâncio, inclinado-se sobre ela, a mão apoiada nas costas do divã.

Hortênsia não respondeu. Cobriu o rosto com o lenço de rendas e continuou recostada. Foi a voz do marido que a despertou.

— Que loucura é esta Neném?... perguntou ele, sorrindo com o seu bom ar de homem honesto.

Ela sorriu também, e pediu desculpas com o olhar.

— Sabes que te faz mal, para que valsas?...

Hortênsia soltou uma risadinha de intenção e disse baixinho: Não é o mal que me faz que te dá cuidado...

— Como assim?

— Ora, é que tu não gostas muito de me ver valsar...

— Porque te faz mal, filha!...

— É só por isso? afianças que não tens outro motivo?

Campos respondeu com um movimento de ombros.

— Olha lá!... ameaçou a bonita senhora, sacudindo um dedinho da mão direita. — Olha! que sou muito capaz de, hoje em diante, não perder mais uma só valsa!...

Ele repetiu o movimento dos ombros, e acrescentou:

— Isso é lá contigo, filha; a saúde é tua, faze o que entenderes, ora essa!

Algumas pessoas perceberam o seu mal humor e riram com disfarce.

Nessa ocasião, Amâncio encostado ao bufê, pedia que lhe servissem um grogue à americana.

— Está retemperando a fibra? perguntou-lhe um sujeito magrinho, elegante, meio calvo, a bater-lhe amigavelmente no ombro.

O estudante voltou-se apressado e, logo que viu o outro, exclamou:

— Oh! o Dr. Freitas! Como passou? Não sabia que estava também por cá!

Freitas respondeu com a sua vozinha gasta — que chegara havia pouco; não lhe fora possível vir antes; tivera que acompanhar o enterro de um parente! — Coitado! cacete até depois de morto, três necrológicos de hora e meia cada um!... Ah! os parentes! os parentes eram uma desgraçada invenção, principalmente se não deixavam alguma coisa!

E, depois de retesar o peito da camisa e puxar a gola da casaca:

— Mas então como ia o Sr. Amâncio de Vasconcelos?... Pela fisionomia jurava-se que tinha saúde para dar e vender, e, pelos atos, não parecia menos disposto, porque o Freitas presenciara a conversa do amigo com Hortênsia.

E rindo:

— Homem, faz você muito bem! Aproveite enquanto está no tempo! Se eu tivesse a sua idade, com a experiência de que disponho hoje, não havia de proceder como procedi! Oh! aquele aforismo tem muito fundo! "Si jeunesse savait..."

E a olhar para os pés, com o gesto cheio de tédio: — Gostei de o ver na valsa, gostei seriamente! Ah! Eu é que já não sou homem para estas coisas! Aceito tudo, menos o que me obrigue à fadiga!

Amâncio fez-se modesto; negava que dançasse bem; mas o outro, em vez de insistir nos elogios, como esperava ele, perguntou-lhe muito descansadamente por que razão não lhe apareceu depois da primeira visita.

O estudante desculpou-se com a falta de tempo e excesso de estudo. Havia, porém, de aparecer, mais tarde.

As relações com o Dr. Freitas procediam de uma carta de recomendação, que um amigo do velho Vasconcelos lhe arranjara. Freitas era uma excelente amizade para qualquer estudante pouco escrupuloso; dispunha de ótimas relações, que podiam servir de empenho nas épocas apertadas de exame.

Tinha alguma coisa, gostava de ir à Europa de vez em quando, e os seus quarenta e tantos anos não espantavam a ninguém; ao contrário, ainda havia muito olho esperto de mulher que se arregalava para o ver. Isso sem falar nas senhoras que se foram aposentando, enquanto ele parecia eternamente empalhado nos seus fraques irrepreensíveis, nos seus chapéus à moda e nos seus enormes sapatos à inglesa de um elegantismo feroz. Em consciência, ninguém o poderia qualificar senão de rapaz. As mulheres eram o seu fraco, o seu vício mais acentuado; várias anedotas suas, inspiradas neste assunto, corriam de boca em boca há vinte anos.

Amâncio ficou muito seu camarada, desde a primeira visita. Em menos de uma hora de conversação, falavam já sobre as cocotes mais conhecidas na Corte; e, alguns dias depois, quando se encontraram na Fênix, Freitas apresentou-lhe uma espanholona de buço louro, a qual nessa ocasião passava pelo corpo mais bonito do mundo equívoco.

— Pois você já está um fluminense acabado! disse o elegante, a medir Amâncio de alto a baixo. — Não imaginei que andasse tão depressa...

E, porque voltasse à conversa sobre mulheres, continuou o que dizia há pouco:

Infelizmente só chegamos a conhecê-las quando vamos caindo na idade; de sorte que é preciso aproveitar o espaço que medeia dos trinta aos quarenta anos; antes disso — não sabemos, depois — não podemos. Ah! se aos vinte já se conhecesse a mulher... se então já se soubesse quais são os seus gostos e suas preferências.. se tal acontecesse, nem uma só se conservaria virtuosa!... Mas, nesse período dos sonhos e das ilusões, no período em que está o senhor, meu amigo, ninguém é capaz de uma audácia! Para chegar a fazer qualquer coisa é preciso ser provocado, mas muito provocado!

Amâncio protestava com um sorriso pretensioso.

— Oh! oh! exclamou o outro, cheio de experiência, a calcar o monóculo sobre o olho. — Já tive a sua idade, meu amigo, já tive a sua idade! Pensava então que, para agradar mulheres, era indispensável fazer-me bonito, meigo, romântico, atencioso, que sei eu!... Engano! puro engano! Elas aborrecem tudo isso, e só exigem coisas num homem: a primeira: — muita audácia; a segunda — um pouco de inteligência; a terceira — algumas relações na boa sociedade! e... ainda temos uma de que me esquecia e que, entretanto, é a base de todas as outras: — Não ser seu marido! Com estas quatro qualidades, desde que se tenha mocidade e boa disposição, não há mulher que resista! Quanto à beleza, boas maneiras e bom caráter — histórias, homem! histórias! Elas, ao contrário, detestam os tipos afeminados e não morrem de amores pelos sujeitos rigorosamente honestos e bem comportados. Qual! Querem o seu bocado de vício; o belo deboche de vez em quando, para variar!...

E metendo as mãos nos bolsos da calça, e jogando o corpo com um ar canalha:

— Lá para a seriedade basta-lhe o marido! É boa!

Amâncio ria-se, abarrotado de intenções. Freitinhas foi nesse momento apreendido pelo dono da casa: "As damas reclamavam a sua presença, dele, nas salas! Era preciso não se meter pelos cantos!"

Dr. Freitas deixou-se levar, sempre muito enfastiado; mas, antes de ir, bateu no ombro de Amâncio e segredou-lhe com a sua voz de tuberculoso:

— Aproveita, menino, aproveita! Não mandes nada ao bispo!



Iam já desaparecendo os convidados. Os pais de família toscanejavam encostados às ombreiras das portas, esperando, com os braços carregados de capas e mantas, que as mulheres e as filhas se resolvessem a seguir para a casa. Havia um vago tom de cansaço nas fisionomias; entretanto, alguns cavalheiros jogavam ainda, em um quarto próximo à luz trêmula das velas da estearina. Melo conduzia senhoras pelo braço à porta da rua, agradecendo-lhes muito o obséquio de aceitarem o seu convite.

Foi Amâncio quem ajudou Hortênsia a entrar na carruagem. Campos parecia contrariado com a demora — há duas horas que desejava retirar-se.

Encurtaram-se despedidas. O horizonte principiava a franjar-se com os galões prateados da aurora, e, do lado das montanhas desciam tons mutatinos de natureza que desperta.

Hortênsia, muito embrulhada na sua capa de casimira branca e guarnecida de arminhos, atirou-se com impaciência sobre as almofadas do carro, levantando um luxuoso farfalhar de sedas que se amarrotam. Logo, porém, que o cocheiro sacudiu as rédeas ela chegou o rosto à portinhola, e gritou para fora:

— Aparece domingo! Vá jantar conosco. Adeus!

Amâncio, perfilado na calçada, o chapéu suspenso na mão direita, em atitude de quem faz um cumprimento respeitoso, disse agitando o braço:

— Adeus, minha senhora. Hei de ir.

O carro de Campos tomou a direção da praia de Botafogo, o rapaz ainda o acompanhou com a vista; depois, levantando os ombros e abotoando melhor o sobretudo, meteu-se num tílburi que se aproximava lentamente e mandou tocar para a casa de pensão.

O animal disparou, sacudindo as crinas ao vento fresco da manhã.

Amâncio acendeu um charuto e, com os olhos meio cerrados, derreou-se para o fundo do tílburi.

Naquele momento sentia gosto em se fazer muito farto, muito cansado de amores. Suas últimas impressões enchiam-lhe o cérebro de uma espécie de vapor azotado, que asfixiava todos os outros pensamentos.

— A continuarem as coisas daquele modo, dizia ele consigo, chupando o charuto aos solavancos do carro — em breve o tempo será pouco para tratar só de namoros!...

A cada passo que dera na sua inútil existência, rasgara com o pé uma página do livro das ilusões. Mas a presença deste raciocínio, longe de afligi-lo, dava-lhe à vaidade um certo prazer doentio e picante.

— Como poderia acreditar agora nas tais virtudes femininas?... Pois se até falhara a própria mulher de Campos!...

Quando poderia ele imaginar que Hortênsia tão severa e tão grave ainda há pouco, uma criatura por quem todos "metiam a mão no fogo", fosse assim leviana e fácil, como as outras?...

E Amâncio saboreava esta convicção, porque, a despeito do que dissera aos amigos no Hotel dos Príncipes, sua consciência, por conta própria, tomara sempre a defesa de Hortênsia e insistia em mostrá-la cercada de um grande prestígio venerando e respeitável.

— A consciência agora que falasse!

E refocilava-se todo com o seu triunfo. — Agora é que ele queria saber quem tinha razão; sim, porque, enquanto procurava convencer-se de que devia esperar de Hortênsia aquilo mesmo, a rezingueira da consciência saltava-lhe em cima com um nunca terminar de razões e apresentava-lhe a "excelente senhora" cada vez mais pura e menos acessível! E eis que, de supetão, quando menos se esperava, erguiam-se os fatos brutalmente para desmentir uma impostura.

E ele sorria, vendo as asas do anjo baquearem a seus pés, murchas e retraídas, como os galhos de uma árvore arrancados pelo nordeste.

— Bem dizia Simões: "Quando te começarem as aventuras..." E melhor ainda Dr. Freitas: "Para conquistar as mulheres são apenas quatro coisas necessárias: audácia, boas relações, um pouco de inteligência e não ser seu marido!"

E os fatos, como disciplinados por estas palavras, formavam ala e começavam a cantar as vitórias do estudante. Na sua lógica indiscutível afirmavam eles que Hortênsia, o tal modelo de severidade e pureza, morria de amores por Amâncio, que o desejava ardentemente, que se entregaria na primeira ocasião, fazendo loucuras, dando escândalos, que nem uma heroína de romance!

— Está segura! exclamou o rapaz, sacudido por estas idéias. O sangue saltava-lhe no corpo; aquela aventura se lhe afigurava a melhor de sua vida; seu orgulho pueril, de namorador vulgar, espinoteava qual potro que se pilha às soltas no prado verdejante e proibido. As outras conquistas vinham logo chamadas por aquelas, e todas as vítimas de sua sensibilidade, ou as cúmplices do seu temperamento e da sua má educação, enfileiravam-se defronte dele, como um submisso batalhão de prisioneiros.

Chegou a casa ao amanhecer e não dormiu logo. Os pensamentos revoavam-lhe no cérebro com o frenesi de folhas secas, redemoinhadas pelo vento.