Casa de Pensão/XIX
A pequena tinha toda a razão; Amâncio, parecia resolvido a desistir da viagem, era porque nessa mesma tarde encontrara Paiva e, na sua necessidade de expansão, levou-o para o fundo de um café e abriu-se com ele. Contou-lhe as dificuldades que o afligiam, e pediu-lhe conselhos.
— Não há que saber!... disse o consultado. — Não há que saber!... Aí só vejo dois partidos a tomar: — ser tolo — ou — não ser tolo!
E, como o outro fizesse um trejeito de má compreensão:
— Tolo, se ficares e — não tolo — se te puseres ao fresco!
— Mas, Paiva, você então acha que devo ir?... perguntou Amâncio, hesitando, a morder as unhas.
— Homem! volveu aquele — se precisas ir ao Norte, prepara-te caladinho e vai! Que necessidade tens tu de que a gente do Coqueiro saiba disso?... Deve-lhes satisfação de teus atos?... Se não deves, é aprontar as malas e... por aqui é o caminho! olha! deixa-lhe uma carta, muito delicada, já se vê, muito cheia de promessas. "Que voltas, que hás de fazer, que hás de acontecer!" E, no entanto, vai-te raspando... Porque estas coisas, filho, assim é que se decidem. E, quanto aos arranjos da viagem... cá estou eu para te ajudar!...
Calaram-se por alguns instantes. Paiva Rocha pediu um novo sherry-cobler e prosseguiu enquanto o amigo, muito pensativo, fitava o mármore da mesa:
— Agora, se estás tão embeiçado pela sujeita, que não tenhas ânimo de a deixar; isso é outra coisa!... Neste caso, o melhor é escrever à velha, dizendo-lhe que venha, arranja um novo advogado de confiança que se encarregue de teus negócios no Maranhão, e faze a vontade à pequena — casa-te!
Amâncio torceu o nariz com enfado:
— Qual!
— Então, filho, que esperas?... É perder o amor aos objetos que lá tens, e fazer o que já te disse!
— Mas Coqueiro não poderá tomar alguma vingança?...
— Não sejas parvo! resmungou o outro, bebendo de um trago o que ainda tinha no copo; e ergueu-se disposto a sair. — Amanhã às mesmas horas, cá estou! Traze o cobre e deixa o resto por minha conta!
Separaram-se concordes e que no dia seguinte ficariam depositados na república do Paiva os apetrechos da fuga.
Em casa de Coqueiro, todos, à semelhança de Amelinha, nem de leve mostravam suspeitar de coisa alguma; pareciam até mais tranquilos e satisfeitos. Nem um gesto de ressentimento, nem uma palavra indiscreta que os denunciasse. Tudo era paz e bem-aventurança.
Reapareceram as primitivas noites de amor, como boa estação que volta carregada de flores. Os dois amantes nunca se possuíram tão satisfeitos um do outro e nunca se patentearam tão convictos da mesma felicidade. No empenho comum de se enganarem, cada qual redobrava de carinhos e meiguices; enquanto por dentro os corações lhes bocejavam, aborrecidos e fatigados.
O dia da viagem chegou sem novidade alguma. Amâncio levantou-se como das outras vezes, apenas um pouco mais cedo. Olhou por um momento Amélia que ainda dormia, toda sumida nos lençóis, vestiu-se cautelosamente para não a acordar; depois foi à varanda, bebeu café e saiu em ar de passeio.
No Largo do Machado tomou um carro e bateu para a república de Paiva.
Não encontrou o colega, havia já saído. — Devia estar à sua espera com a bagagem, no cais Pharoux.
Amâncio mandou tocar o carro para lá. E, à proporção que se aproximava do mar, crescia-lhe por dentro um vago sobressalto de impaciência e de medo.
— Anda! Gritou ao cocheiro, espiando repetidas vezes pela portinhola e apalpando de instante a instante o bilhete da passagem que tinha no bolso.
Estava comovido, principiava a sentir pena de deixar a Corte; apareciam-lhe saudades das boas noites com Amélia, das patuscadas com os amigos. E um mundo de recordações formava-se e transformava-se atrás dele, fugindo, desaparecendo como sombras que se esbatem.
Para disfarçar a impressão desagradável de tais mágoas, procurava embriagar-se com a idéia das aventuras que o esperavam na província, grupando na fantasia tudo aquilo que o pudesse interessar de qualquer modo; e compunha, e construía, inventava episódios, cenas, dramas inteiros, nos quais lhe cabia sempre a principal figura. E, depois de bem mergulhado nos seus devaneios, depois de bem envolvido na alacridade de seus sonhos de glória, o Maranhão aparecia-lhe risonho e brilhante como a última expressão do que há de melhor sobre a terra.
Mas, na ocasião em que se apeava, um tipo mal encarado, olhou por cima dos óculos, a barba grisalha, um tom geral de porcaria no seu velho fato de pano preto, nas suas botas acalcanhadas, no seu chapéu de pêlo cheio de manchas amarelas, aproximou-se dele e, com uma voz enxuta e morfanha, intimou-o "a comparecer imediatamente em presença do delegado de semana na secretaria de polícia". Era um oficial de justiça.
— Mas que desejam de mim... perguntou o estudante, empalidecendo e procurando o Paiva com os olhos. — Eu não tenho nada com a polícia!
E recuou dois passos.
— O senhor está intimado! repetiu secamente o outro, e, em voz baixa, disse a dois sujeitos que se haviam adiantado: — Cerca! cerca o homem!
Então aqueles avançaram logo, jogando o corpo num pé só, o chapéu para trás, um grosso porrete na mão.
— Comigo é onze! exclamou um deles, muito canalha, a cuspilhar para os lados.
— Mas, por que me prendem?!... perguntou o estudante, sentindo-se tolhido.
— São coisas!... responderam-lhe, fazendo-o entrar no carro.
Amâncio ainda procurou descobrir Paiva; depois, azoinado pela gentalha que se reunia em torno dele, saltou para a almofada, perseguido sempre pelos três sujeitos.
O oficial segredou alguma coisa ao cocheiro, e o carro deu volta e rodou em sentido contrário ao cais.
Amâncio cobriu o rosto com o lenço e principiou a soluçar.
Coqueiro, desde a prevenção que lhe fez a irmã, não se descuidou mais um instante de vigiar a sua presa: seguiu-lhe os passos, farejando, até o momento em que Amâncio tomou bilhete de passagem para o norte.
Então, correu à casa do Dr. Teles de Moura.
O Teles era um advogado velho, muito respeitado no foro; não pelo caráter, que o não mostrava nunca, nem pela sua ciência, que não a tinha; nem tampouco pelo seus cabelos brancos, que a estes nem ele próprio respeitava, invertendo-lhe a cor; mas sim pela sua proverbial sagacidade, pelas suas manhas de chicanista, pela sua terrível figura de raposa velha, pelos seus olhinhos irrequietos e matreiros, pelo seu nariz a bico de pássaro e pela sua boca sem lábios, donde a palavra saía seca e penetrante como uma bala.
O passado de Teles era toda uma legenda de vitórias judiciais; atribuíam-lhe anedotas mais antigas do que ele; muito processo se anulou naquelas unhas aduncas de tamanduá; muito criminoso escapou às penas da lei por entre as malhas da sua astúcia; muito inocente foi parar à cadeia ensarilhado nas pontas de seus sofismas.
Para ele não havia causas más; em suas mãos qualquer processo se enformava ao capricho dos dedos como uma bola de miolo de pão.
E o irmão de Amélia sabia de tudo isso perfeitamente quando lhe foi bater à porta.
Seriam então nove horas da manhã; a raposa almoçava.
Coqueiro esperou um instante e, só terminado o barulho dos pratos, animou-se a tocar a campainha.
Apareceu um moleque, tomou o recado no corredor e pouco depois trouxe a resposta. "O amo estava muito cheio de ocupações naquele dia, não falava com pessoa alguma. Coqueiro que voltasse noutra ocasião."
Mas Coqueiro recalcitrou. Esperaria... Tinha que falar ao Dr. Teles, custasse o que custasse. "Tratava-se de uma causa importantíssima!"
Veio afinal o doutor, palitando os dentes, o ar muito ocupado, os movimentos de quem tem pressa.
— Que era? O que desejava?
Coqueiro, com a voz alterada, os gestos dramaticamente desesperados, disse que ia ali buscar proteção de justiça. "Era pobre, sim, mas estudioso e trabalhador. Sua vida aí estava — limpa! Podia até servir de modelo! — Casara-se na idade em que os rapazes em geral só pensam nos prazeres e nas loucuras!... Adorava a família; sim! adorava, porque a família era o bem único de que ele dispunha na terra! Tinha uma irmã, inocente e indefesa, a quem até aí servira de pai e de tutor..."
O advogado deixou escapar uma tossezinha de impaciência.
— Pois bem, senhor doutor! exclamou o outro, puxando com ambas as mãos, contra o peito, o seu chapéu de feltro. — Pois bem! Essa menina, que era todo o meu orgulho, que era como o documento vivo do bom cumprimento de meu dever... essa menina, que eduquei sob os maiores sacrifícios... essa pobre criança...
— Que fez, perguntou o velho muito calmo. — Arribou de casa?...
— Não senhor, acaba de ser vítima da maior traição, da mais degradante maldade, que...
— Mas, afinal, o que houve?... interrogou o doutor fugindo às preliminares.
— Foi desvirtuada por um rapaz, um colega meu que, há coisa de um ano, hospedei, por amizade, debaixo de minhas telhas!...
— E ele? perguntou o advogado, sem se comover.
— Ele já está de passagem comprada para o Maranhão e foge amanhã mesmo, se não houver uma alma reta e caridosa que lhe embargue a viagem.
— Ela ficou pejada?
— Não senhor.
— É menor?
— Tem vinte e três anos, respondeu o queixoso, triste porque sua irmã não tinha menor idade.
— Está o diabo!... resmungou a raposa; espetando os dentes com o palito. — E ele?
— Ele tem vinte e um.
— Feitos?
— Feitos, sim senhor.
— Bem.
E acendeu um cigarro que levava a preparar lentamente.
— É o diabo!... repisava. — Não se pode fazer nada, sem a verificação do fato... É o diabo!
E calaram-se ambos. O velho a pensar; o outro, de cabeça baixa, o aspecto infeliz, a choramingar baixinho.
— Ele tem recursos? perguntou aquele afinal.
— É rico, bastante rico, respondeu Coqueiro, sem tirar os olhos do chão.
— Emancipado?...
— Totalmente. Órfão de pai! E até sócio comanditário de uma importante casa comercial. Tem para mais de quatrocentos contos de réis.
— Bem. Arranja-se a queixa-crime. Olhe! Deixe-me aí o seu nome, o dele, o da vítima, o dos competentes pais, se os tiverem, as respectivas moradas, profissões, etc., etc. Enfim a substância da queixa...
— O senhor doutor acha então que?...
— Veremos! Veremos o que se pode fazer!... Não perca tempo — escreva.
Coqueiro escreveu prontamente, interrompendo-se de vez em quando para pedir informações.
— Está direito! sussurrou o advogado, correndo os olhinhos pela folha de papel que o outro lhe acabava de passar. — Pode ir descansado. Vá.
E seu todo impaciente estava a despedir a visita. Esta, porém, fazia não dar por isso e desejava mais esclarecimentos; queria saber ao certo o tempo que deitaria aquela questão. "Se era de esperar que Amâncio casasse com a vítima; se havia recursos na lei para o perseguir, etc., etc."
O velho palitou os dentes, mais vivamente. "Que diabo! Um processo era um processo! Tinha de percorrer todos os componentes sacramentos! Não se chegava ao fim, sem passar pelos meios!... Amâncio podia furtar-se à citação, esconder-se; os oficiais de justiça eram tão fáceis de ser comprados!... tão ordinários!... vendiam-se por qualquer lambugem, por um relógio, por um pouco de dinheiro!...
E principiou a encarecer a causa, grupando termos jurídicos, apontando dificuldades. Sua voz transformava-se ao sabor daquela terminologia especial. Em primeiro lugar tinham de apresentar uma queixa perante o juiz de direito do distrito criminal. Deferida a petição, intimar-se-ia o indicado para a audiência que se designasse. — E os interrogatórios? E a pronúncia? e os recursos?... Enfim havia de se fazer o que fosse possível!..."
— E por enquanto... acrescentou o chicanista, consultando apressado o relógio — não tenho de meu nem mais um segundo!
E despedindo o outro com um aperto de mão:
— Olhe! Procure-me logo mais na polícia, ao meio-dia. Estou lá a sua espera, pode ir descansado. Adeus!
E empurrando-o brandamente:
— Não deixe de ir, hein?... Meio-dia em ponto! Adeus! Desculpe!
Coqueiro saiu, mastigando agradecimentos.
Estava agora mais tranquilo; — a fama do Dr. Teles de Moura enchia-o de esperanças radiosas. "Sua causa não podia cair em melhores mãos!"
E a verdade é que ele, industriado pela raposa velha obteve um mandato de notificação, obrigando Amâncio a comparecer na polícia, imediatamente, para investigações policiais, e peitou o oficial da justiça e arranjou dois secretas e, afinal, o amante da irmã foi conduzido à presença do delegado de semana e daí levado à detenção, donde só sairia para responder ao primeiro interrogatório.
O advogado requereu corpo de delito na ofendida e, para a seguinte audiência, o comparecimento dos outros dois inquilinos que, por ocasião do crime, moravam na casa de pensão — o Dr. Tavares e o guarda-livros.
No inquérito, duas testemunhas fizeram-se ouvir contra Amâncio; um taverneiro das Laranjeiras — bicho gordo, cabeludo, a pele cor de telha e dono de uma venda que encostava os fundos com os da casa de Amélia, e um alferesinho de polícia, noutro tempo vizinho do queixoso em Santa Teresa e agora morador do casarão da Rua do Resende — homenzito magro, pobre de sangue, olhos fundos e boca devastada por uma anodontia horrorosa.
Amâncio, que ainda não conhecia de perto o que vinha ser "um processo" e estava longe de imaginar as tricas e os ardis de que costumam lançar mão os litigantes para defender ou acusar um pobre diabo que a justiça lhe atira às unhas, ficou pasmo, quando na ocasião de assinar os atos e termos, leu a matéria do fato criminoso que lhe arguiam.
O alferes declarou em substância que: "na noite de 16 de julho do ano tal, pela uma hora da madrugada, estando em Santa Teresa, no sótão que então ocupava (o qual era místico ao sótão de uma outra casa, onde viera a saber mais tarde, residira Amâncio), ouviu daí partirem gemidos angustiados e uma voz fraca, de mulher, a dizer: Solte-me! Solte-me! Não me force! E que, tomado de curiosidade, trepara-se a espreitar para a casa do vizinho e, então, percebera distintamente que um homem violentava uma rapariga; e que depois cessaram as vozes e só se ouviram suspiros e soluços abafados."
O tavarneiro depunha que: "naquela mesma noite, estando casualmente de passeio em Santa Teresa, ouvira, ao passar pela casa onde então residia João Coqueiro com a família uma altercação de duas vozes, na qual se destacava uma de mulher que chorava, implorando piedade e suplicando, por amor de Deus, que a não desonrassem."
E tudo isso estava perfeitamente de acordo com que já havia declarado Coqueiro. Dissera este que "nessa mesma noite se recolhera às três horas da madrugada, pois estivera até então em Botafogo, na companhia de seu colega Firmino de Azevedo, e que, ao entrar em casa ouvira leves gemidos no quarto da irmã e, chamando por esta da varanda e perguntando-lhe o que tinha, ela respondera que — não era nada, apenas havia acordado às voltas com um pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa explicação, ficou muito sobressaltado e ainda mais, quando, depois de acordar a esposa, que dormia profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma novidade durante a sua ausência, lhe ouvira dizer que — até às nove horas da noite podia afiançar que nada acontecera, mas que, daí em diante, não sabia, visto que, sentindo-se àquela hora muito incomodada, se havia recolhido ao quarto com seu filho César e, como usava água de flor de laranja para os seus padecimentos nervosos, supunha ter essa noite medido mal a dose e tomado demais o remédio, em virtude do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o momento em que o marido a chamara. — Por conseguinte, das nove horas da noite as três da madrugada, Amâncio e Amélia haviam ficado em plena liberdade".
E mais: "que, no dia seguinte àquela noite fatal, Amélia não quis sair do quarto e que ele, indo ter com a irmã e perguntando-lhe se sofria de alguma coisa e se precisava de médico, notou-lhe certa perturbação, certo constrangimento e um grande embaraço na resposta negativa que deu; e que ela, todas as vezes que era interrogada, fugia com o rosto para o lado contrário e abaixava os olhos, como tolhida de vergonha; e que, examinando-a melhor, lhe descobrira sinais roxos nos lábios, nas faces, e pequenas escoriações no pescoço, nas mãos e nos braços; e que então, fulminado por uma suspeita terrível, exigiu energicamente a revelação de tudo que se passara na véspera durante a sua ausência, e que ela, empalidecendo, abrira a chorar e, só depois de muito resistir, confessou que fora violentada por Amâncio, mas que este prometera, sob palavras de honra, em breve reparar com o casamento a falta cometida."
Mme. Brizard confirmou o que disse o marido a seu respeito.
Amâncio, porém, logo que foi novamente interrogado, negou: 1.º — Que conhecesse as duas testemunhas deponentes contra ele; 2.º — Que em tempo algum houvesse sucedido o que elas afirmavam; 3.º — Que tivesse empregado violência contra Amélia; 4.º — Que fizesse promessa de casamento a quem quer que fosse e debaixo de quaisquer condições. E confirmou: 1.º — Que na noite, não de 16, mas de 20 de julho daquele ano, estabelecera relações carnais com a queixosa; 2.º — Que nessa noite, permanecendo de pé o conchavo de uma entrevista combinada entre eles, Amélia, logo que a casa se achou de todo recolhida, apresentara-se-lhe no quarto e aí ficara até às cinco horas da manhã, sem mostrar durante esse tempo o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás, muito satisfeita e feliz com o que se dera, como se alcançara a realização do seu melhor desejo; 3.º — Que de tudo isso nada absolutamente teria sucedido, se Amélia não o perseguisse com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas provocações de todo o instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do trabalho com uma aluvião de beijos! que não teria sucedido, se todos os de casa, todos! — o irmão, a cunhada, ela, César, os fâmulos, não concorressem direta ou indiretamente para aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas para ambos, explanando ocasiões escorregadias, nas quais fora inevitável uma queda!
E Amâncio acrescentou, arrebatado pela correnteza de suas palavras:
— Nada disso teria acontecido, senhor juiz, se me não desafiassem, se me não sobressaltassem os instintos, atirando-a todo o momento contra mim; se nos não empurrassem para o outro, com insistência, com tenacidade, deixando-nos a sós horas e horas consecutivas: fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama, pespegando-a todos os dias, todas as noites, diante de meus olhos, ao alcance de minha mãos — enfeitada, perfumada, preparada, como uma armadilha, como uma tentação viva e constante!
O delegado observou discretamente que Amâncio se excedia nas suas declarações; mas o auditório, na maior parte formando de estudantes, protestava, atraído por aquela setentrional verbosidade que enchia toda a sala.
Rebentavam já daqui e ali, algumas exclamações de aplauso. E a voz do nortista, irônica e crespa no seu sotaque provinciano, ainda se fez ouvir por alguns instantes, em meio do quente rumor que se alevantava.
— Ah! Por Deus! por Deus, que bem longe estava ele de imaginar um fim tão dramático àquela comédia! Bem longe estava de imaginar que, depois de o escodearem por tantas maneiras; já o fazendo chefe de uma família que não era a sua; já lhe exigindo a compra de uma casa, exigindo vestidos, jóias, carros, dinheiro para a despesas diárias, dinheiro para a botica, dinheiro para o açougue, para o médico, para tudo! — ainda se lembrassem de estorquir-lhe a coisa única que até aí não haviam cobiçado — seu nome! — o nome que herdara de seus pais!
— Bravo! Bravo! Muito bem!
E a matinada dos estudantes rebentou com entusiasmo, sufocando os novos protestos que apareciam. O delegado reclamava silêncio, e Amâncio, muito pálido, a testa luzente de suor, tinha os braços cruzados, a cabeça baixa, numa atitude dramática de altiva resignação.
Findo o inquérito e dada a queixa, o sumário caminhou sem mais incidente. Todavia, o provinciano, sempre que era interrogado, deixava-se arrebatar como da primeira vez,
As testemunhas, com mais ou menos tergiversação, reproduziam as suas patranhas; concederam-se os dias da lei ao indiciado, para que juntasse a sua defesa escrita e os documentos; e, afinal, subiram os autos à Relação, onde foi sustentada a pronúncia, e o processo esperou que designassem a sessão em que Amâncio teria de entrar em julgamento.