Casos do Romualdo/V

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Já em rapaz eu ouvira falar numa raça de tatus-rosqueira, porém, punha minhas dúvidas nessas históriasPassaram-se os anos caminhei muito, muito, aconteceu-me muito, mas de. tatu-rosqueira, nada!

Pois dessa feita, no Rincão das Tunas, vi; do outro lado do rio Camaquã, com estes, que a terra há de comer, vi... e se me fosse contado não acreditaria.

Periga a verdade, mas lá vai, e, demais, estavam presentes o capitão Felizardo, já falecido, o licenciado Silvinha (que perdi de vista), além dos peães, sem falar nos cachorros, por sinal bons tatuzeiros.

É sabido que as jararacas andam sempre em casal e que se alguém mata uma pode também matar a outra, no mesmo lugar, porque a viúva vem pelo rastro da companheira; se se carrega a primeira, por exemplo, para perto de casa, é contar que a outra aí vem dar; quer dizer, o bicho acompanha o seu defunto, ou seja pelo faro, ou pela dor da saudade, com os olhos da alma...

Sabe-se também - isso eu vi, vezes e vezes! - que o lagarto conduzido pela cauda, semimorto ou semivivo (há diferença entre estes estados de saúde), quando menos se espera, quebra o rabo e escapa-se.

A perdiz, finge de morta: fecha os olhos, afrouxa o pescoço, reina as asas e... zuct! de repente apruma-se e desfere o vôo.

O zorrilho...

Esta pequena divagação, que pode parecer maçante, é necessária e vem apenas provar que todo animal tem um instinto muito particular para certas aflições em que se encontra.

Era por uma bonita noite de luar. Estávamos mateando e pitando; conversa vai, conversa vem, quando o major Felizardo lembrou que podia divertir-nos proporcionando-nos uma caçadita aos tatus.

— E tatu-rosqueira, então, que é praga! ... concluiu o major.

A este dito, saltei.

— Pois há? ... inquiri.

—Xi! assim!...

E o major juntou em molho os dedos das duas mios, e assobiou comprido.

Aprestamo-nos e saímos rumo do rincão.

De chegada soltamos os cachorros, e daí a um quase-nada já lhes ouvíamos o ganiçado. Começamos a bater as toca. Aquilo foi rápido.

Havia mesmo muito tatu!

Cachorro farejava, cavava na entrada da toca, e nós já rente, de enxada, dá-le que dá-le!

Eu é que tive a sorte de descobrir o primeiro tatu; o primeiro tatu, não, o primeiro rabo de tatu. E no que o descobri, agarrei-o. Tironeei, tironeei, e nada, o bicho não vinha; já ia meter o dedo... sabem, bem?... quando o licenciado Silvinha gritou-me:

— Não faça isso, Romualdo... destorça a rosca do rabo!...

— Quê?

— Sim, e para a esquerda, a modo de parafuso inglês!

Sem ter consciência do que fazia, às mãos ambas dei umas quantas voltas para a esquerda, e qual não foi o meu espanto quando senti que efetivamente aquilo cedia, afrouxava, desatarraxava-se! ... E fiquei com o rabo na mão... sem o tatu!

Pelos outros lados os companheiros andavam na mesma faina. Algo desapontado, indaguei do licenciado:

— E agora?...

— Passe a outro. Guarde esse rabo aí no saco; daqui a pouco você verá o resto!

Aquilo era curioso, passei a outra cova, a mesma manobra: outro rabo, no saco; outra e outra, e assim porção delas.

A certa altura o tenente-coronel deu ordem de parar, pois não poderíamos transportar toda a caçada; o saco estava cheio a mais de meio.

Eu estava desconfiado e furioso, mas disfarçando, achava esquisito vir ao mato caçar tatus e só levar-lhes as caudas...

Mas o coronel Felizardo fez um sinal e logo nos arrolhamos em volta do saco; fez-se silêncio e daí a pouco começou a tatuzada a sair das tocas - desrabados todos - e vieram se chegando para o saco, focinhavam nele e ficavam quietos, como viúva velha chorando na cova de marido novo...

Ai então é que era pegar e sangrar tatu! ... Foi uma senhora matança! Fizemos umas quantas enfiadas e voltamos para casa vergando ao peso da caçada. Eu, por mim, confesso, estava atônito!

Em caminho é que o brigadeiro Felizardo me foi contando a cousa pelo miúdo

— Romualdo, você conhece o tatu peludo ou de rabo mole, o bola, o guaçu e outros; mas parece que este, nunca viu...

— De ouvido, sim!

— Ora! ouvir falar é uma cousa, ver é outra... Este tatu tem o rabo como uma rosca, por isso se chama rosqueira; caçá-lo é facílimo: descoberta a toca, basta poder agarrá-lo pela cauda e em vez de puxar destorcê-la e depois levá-la para um pouco distante naturalmente o rosqueira sente falta do peso do rabo e pelo faro vai em busca, acha-o e começa logo a cavar no chão um buraco estreito e fundo, entra então com o focinho a dar voltas e mais voltas à cauda solta, e tanto trabalha que fá-la cair de ponta para baixo no buraco que preparou: então, chega-lhe terra e vai-o enchendo, de forma que a cauda pode ficar fincada corno uma estaca, e quando ele sente que está firme, senta-se-lhe em cima e...

— E... parece incrível!

— E começa a andar à roda, à roda, sempre para a direita, até atarraxar-se de novo ao rabo. No que está pronto vai-se embora!

No dia seguinte fui ao mato, sozinho, para verificar o caso.

Descobri logo umas sete covas, portanto sete tatus; destorci sete rabos, pu-los no chão trepei a uma árvore topada e esperei vieram os tatus: vieram os tatus, fizeram os tais buracos, fincaram as caudas, sentaram-se em cima delas e começaram a rodar, a rodar, a rodar. Dentro em pouco um primeiro cessou o movimento e atirou-se para a frente, na sua posição natural, de quatro patas; e logo outro, enfim todos os sete, perfeitamente bons, enrabados, completos. Sem querer fiz um movimento, e os bichos fugiram rápidos como setas. Era a pino do meio-dia.

Para comer é que não são bons: têm a carne mui dura.