Cleopatra (Machado de Assis, 1864)
Filha pallida da noite,
Nume feroz de inclemencia,
Sem culto nem reverencia,
Nem crentes e nem altar,
5A cujos pés descarnados...
A teus negros pés, ó morte!
Só engeitados da sorte
Ousam frios implorar;
Toma a tua foice aguda,
10A arma dos teus furores;
Venho c'roado de flores
Da vida entregar-te a flor;
É um feliz que te implora
Na madrugada da vida,
Uma cabeça perdida
E perdida por amor.
Era rainha e formosa,
Sobre cem povos reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis;
Eu era apenas um servo,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos crueis.
Vivia distante della
Sem fallar-lhe nem ouvil-a;
Só me vingava em seguil-a
Para a poder contemplar;
Era uma sombra calada
Que occulta força levava,
E no caminho a aguardava
Para saudal-a e passar.
Um dia veio ella ás fontes
Ver os trabalhos... não pude,
Fraqueou minha virtude,
Cahi-lhe tremendo aos pés.
Todo o amor que me devora,
Ó Venus, o intimo peito,
Fallou naquelle respeito,
Fallou naquella mudez.
Só lhe conquistam amores
O heroe, o bravo, o triumphante;
E que corôa radiante
Tinha eu para offerecer?
Disse uma palavra apenas
Que um mundo inteiro continha:
— Sou um escravo, rainha,
Amo-te e quero morrer.
E a nova Isis que o Egypto
Adora curvo e humilhado
O pobre servo curvado
Olhou languida a sorrir;
Vi Cleópatra, a rainha,
Tremer pallida em meu seio;
Morte, foi-se-me o receio,
Aqui estou, podes ferir.
Vem! que as glorias insensatas
Das convulsões mais lascivas,
As phantasias mais vivas,
De mais febre e mais ardor,
Toda a ardente ebriedade
Dos seus reaes pensamentos,
Tudo gozei uns momentos
Na minha noite de amor.
Prompto estou para a jornada
Da estancia escura e escondida;
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te, ó morte, e vou morrer;
Uma graça única — peço
Como ultima esperança:
Não me apagues a lembrança
Do amor que me fez viver.
Belleza completa e rara
Deram-lhe os numes amigos;
Escolhe dos teus castigos
O que infundir mais terror,
Mas por ella, só por ella
Seja o meu padecimento,
E tenha o intenso tormento
Na intensidade do amor.
Deixa alimentar teus corvos
Em minhas carnes rasgadas,
Venham rochas despenhadas
Sobre meu corpo rolar,
Mas não me tires dos labios
Aquelle nome adorado,
E ao meu olhar encantado
Deixa essa imagem ficar
Posso soffrer os teus golpes
Sem murmurar da sentença;
A minha ventura é immensa
E foi em ti que eu a achei;
Mas não me apagues na fronte
Os sulcos quentes e vivos
Daquelles beijos lascivos
Que já me fizeram rei.