Como e porque sou romancista/VI
VI
Foi somente em 1848 que resurgiu em mim a veia do romance.
Acabava de passar dois mezes em minha terra natal. Tinha-me repassado das primeiras e tão fagueiras recordações da infancia, alli nos mesmos sitios queridos onde nascera.
Em Olinda onde estudava meu terceiro anno e na velha bibliotheca do convento de S. Bento á ler os chronistas da era colonial; desenhavam-se á cada instante na tela das reminiscencias, as paysagens do meu patrio Ceará.
Eram agora os seus taboleiros gentis; logo apoz as varzeas amenas e graciosas; e por fim as matas seculares que vestiam as serras como a ararroia verde do guerreiro tabajara.
E atravez destas tambem esfumavam-se outros paineis, que me representavam o sertão em todas as suas galas de inverno, as selvas gigantes que se prolongam até os Andes, os rios caudalosos que avassalam o deserto, e o magestoso S. Francisco transformado em um oceano, sobre o qual eu navegara um dia.
Scenas estas que eu havia contemplado com olhos de menino dez annos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará á Bahia; e que agora se debuxavam na memoria do adolescente, e coloriam-se ao vivo com as tintas frescas da palheta cearense.
Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto do Guarany ou de Iracema, fluctuava-me na fantasia. Devorando as paginas dos alfarrabios de noticias coloniaes, buscava com soffreguidão um thema para o meu romance; ou pelo menos um protogonista, uma scena e uma epocha.
Recordo-me de que para o martyrio do Padre Francisco Pinto, morto pelos Indios do Jaguaribe, se volvia meu espirito com predilecção. Intentava eu figural-o na mesma situação em que se achou o Padre Anchieta, na praia de Iperoig; mas succumbindo afinal á tentação. A lucta entre o apostolo e o homem, tal seria o drama, para o qual de certo me falleciam as forças.
Actualmente que, embora em scena diversa, já tratei o assumpto em um livro proximo á vir á lume; posso avaliar da difficuldade da empreza.
Subito todas aquellas locubrações litterarias apagaram-se em meu espirito. A molestia tocara-me com sua mão descarnada; e deixou-me uma especie de terror da solidão em que tanto se deleitava o meu espirito, e onde se embalavam as scismas e devaneios de fantasia. Foi quando desertei de Olinda, onde só tinha casa de estado, e acceitei a boa hospitalidade de meu velho amigo Dr. Canarim, então collega de anno e um dos seis da colonia paulistana, á que tambem pertenciam o conselheiro Jesuino Marcondes e o Dr. Luiz Alvares.
Dormiram as lettras, e creio que tambem a sciencia, um somno folgado. De pouco se carecia para fazer então em Olinda um exame soffrivel e obter a approvação plena. Em Novembro regressei á Côrte com a certidão precisa para a matricula do 4º anno. Tinha pois cumprido o meu dever.
Nessas ferias, emquanto se desenrolava a rebellião de que eu vira o assomo e cuja catastrophe chorei com os meus, refugiei-me da tristeza que envolvia nossa casa, na litteratura amena.
Com as minhas bem parcas sobras, tomei uma assignatura em um gabinete de leitura que então havia á Rua da Alfandega, e que possuia copiosa collecção das melhores novellas e romances até então sahidos dos prelos francezes e belgas.
Nesse tempo, como ainda hoje, gostava do mar; mas naquella idade as predilecções têm mais vigor e são paixões. Não sómente a vista do oceano, suas magestosas perspectivas, a magnitude de sua criação, como tambem a vida maritima, essa temeridade do homem em lucta com o abysmo, me enchiam de enthusiasmo e admiração.
Tinha em um anno atravessado o oceano quatro vezes, e uma dellas no brigue-escuna Laura que me transportou do Ceará ao Recife com uma viagem de onze dias, á vela. Essas impressões recentes alimentavam a minha fantasia.
Devorei os romances maritimos de Walter Scott e Cooper, um apoz outro; passei aos do Capitão Marryat e depois á quantos se tinham escripto desse genero, pesquiza em que me ajudava o dono do gabinete, um francez, de nome Cremieux, se bem me recordo, o qual tinha na cabeça toda a sua livraria.
Li nesse decurso muita cousa mais: o que me faltava de Alexandre Dumas e Balzac, o que encontrei de Arlincourt, Frederico Soulié, Eugénio Sue e outros. Mas nada valia para mim as grandiosas marinhas de Scott e Cooper e os combates heroicos de Marryat.
Foi então, fazem agora vinte e seis annos, que formei o primeiro esboço regular de um romance, e metti hombros á empreza com infatigavel porfia. Enchi rimas de papel que tiveram a má sorte de servir de mecha para accender o cachimbo.
Eis o caso. Já formado e praticante no escriptorio do Dr. Caetano Alberto, passava eu o dia, ausente de nossa chacara á rua do Maruhy n. 7 A.
Meus queridos manuscriptos, o mais precioso thesouro para mim, eu os trancara na commoda; como, porém, tomassem o lugar da roupa, os tinham, sem que eu soubesse, arrumado na estante.
D'ahi, um desalmado hospede, todas as noites quando queria pitar, arrancava uma folha, que torcia á modo de pavio e accendia na vela. Apenas escaparam ao incendiario alguns capitulos em dois canhenhos, cuja lettra miuda á custo se distingue no borrão de que a tinta, oxydando-se com o tempo, saturou o papel.
Tinha esse romance por titulo — Os Contrabandistas. Sua feitura havia de ser consoante á inexperiencia de um moço de 18 annos, que nem possuia o genio precoce de Victor Hugo, nem tinha outra educação litteraria, senão essa superficial e imperfeita, bebida em leituras á esmo. Minha ignorancia dos estudos classicos era tal, que eu só conhecia Virgilio e Horacio, como pontos difficeis do exame de latim, e de Homero apenas sabia o nome e a reputação.
Mas o traço dos Contrabandistas, como o gizei aos 18 annos, ainda hoje o tenho por um dos melhores e mais felizes de quantos me sugeriu a imaginação. Houvesse edictor para as obras de longo folego, que já essa andaria á correr mundo, de preferencia á muitas outras que dei á estampa nestes ultimos annos.
A variedade dos generos que abrangia este romance, desde o idylio até a epopéa, era o que sobretudo me prendia e agradava. Trabalhava, não pela ordem dos capitulos, mas destacadamente esta ou aquella das partes em que se dividia a obra. Conforme a disposição do espirito e a veia da imaginação, buscava entre todos o episodio que mais se moldava ás idéas do momento. Tinha para não perder-me nesse dedalo o fio da acção que não cessava de percorrer.
Á estas circumstancias attribuo ter o meu pensamento, que eu sempre conheci avido de novidade, se demorado nesse esboço por tanto tempo; pois, quatro annos depois, já então formado, ainda era aquelle o thema unico de meus tentamens no romance; e si alguma outra idéa despontou, foi ella tão pallida e ephemera que não deixou vestigios.