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Como e porque sou romancista/V

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V

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns quadernos escriptos em lettra miuda e conchegada. Eram o meu thesouro litterario.

Alli estavam fragmentos de romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem principio.

De charadas e versos nem lembrança. Estas flores ephemeras das primeiras aguas tinham passado com ellas. Rasgara as paginas dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas seccas das mangueiras, á cuja sombra folgara aquelle anno feliz de minha infancia.

Nessa epocha tinha eu dois moldes para o romance.

Um merencorio, cheio de mysterios e pavores; esse, o recebera das novellas que tinha lido. Nelle a scena começava nas minas de um castello, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou n'alguma capella gothica frouxamente esclarecida pela lampada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.

O outro molde, que me fôra inspirado pela narrativa pittoresca do meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Ahi a scena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos.

Tudo isto porem era esfumilho que mais tarde devia apagar-se.

A pagina academica é para mim, como para os que a viveram, riquissima de reminiscencias, e nem podia ser de outra fórma, pois abrange a melhor monção da existencia.

Não tomarei della porem sinão o que tem relação com esta carta.

Ao chegar a S. Paulo era eu uma criança de treze annos, commettida aos cuidados de um parente, então estudante do terceiro anno, e que actualmente figura com lustre na politica e na magistratura. Algum tempo depois de chegado, installou-se a nossa republica ou communhão academica á rua de S. Bento, esquina da rua da Quitanda, em um sobradinho acachapado, cujas lojas do fundo eram occupadas por quitandeiras.

Nossos companheiros foram dois estudantes do quinto anno; um delles já não é deste mundo; o outro pertence á alta magistratura, de que é ornamento. Naquelles bons tempos da mocidade, deleitava-o a litteratura, e era enthusiasta do Dr. Joaquim Manoel de Macedo que pouco havia publicara o seu primeiro e gentil romance — A Moreninha.

Ainda me recordo das palestras em que o meu companheiro de casa fallava com abundancias de coração em seu amigo e nas festas campestres do romantico Itaborahy, das quaes o jovem escriptor era o idolo querido.

Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com tamanha avidez como eu, para quem eram elles completamente novos. Com a timidez e o acanhamento de meus treze annos, não me animava á intervir na palestra; escutava á parte; e por isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscencias, á estas scenas do viver escholastico.

Que extranho sentir não despertava em meu coração adolescente a noticia dessas homenagens de admiração e respeito tributados ao joven author da Moreninha! Qual regio diadema valia essa aureola de enthusiasmo á cingir o nome de um escriptor?

Não sabia eu então que em meu paiz essa luz, que dizem gloria, e de longe se nos affigura radiante e esplendida, não é sinão o baço lampejo de um fogo de palha.

Naquelle tempo o commercio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras litterarias tinham menor circulação. Provinha isso da escassez das communicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Cada estudante porem, levava comsigo a modesta provisão que juntara durante as ferias, e cujo uso entrava logo para a communhão escolastica. Assim correspondia S. Paulo ás honras de sede de uma academia, tornando-se o centro do movimento litterario.

Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia á nossa commum bibliotheca, era de Francisco Octaviano, que herdou do pai uma escolhida collecção das obras dos melhores escriptores da litteratura moderna, a qual o jovem poeta não se descuidava de enriquecer com as ultimas publicações.

Meu companheiro de casa era dos amigos de Octaviano, e estava no direito de usufruir sua opulencia litteraria. Foi assim que um dia vi pela primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edicção em folha que os typographos da Belgica vulgarisam por preço modico.

As horas que meu companheiro permanecia fóra, passava-as eu com o volume na mão, á reler os titulos de cada romance da collecção; hesitando na escolha daquelle por onde havia de começar. Afinal decidia-me por um dos mais pequenos; porem, mal começada a leitura, desistia ante a difficuldade.

Tinha eu feito exame de francez á minha chegada em S. Paulo e obtivera approvação plena, traduzindo uns trechos do Telemaco e da Henriqueida; mas, ou soubesse eu de outiva a versão que repeti, ou o francez de Balzac não se parecesse em nada com o de Fenelon e Voltaire; o caso é que não conseguia comprehender um periodo de qualquer dos romances da collecção.

Todavia achava eu um prazer singular em percorrer aquellas paginas, e por um ou outro fragmento de idea que podia colher nas phrases indecifraveis, imaginava os thesouros, que alli estavam defezos á minha ignorancia.

Conto-lhe este pormenor para que veja quão descurado foi o meu ensino de francez, falta que se deu em geral com toda a minha instrucção secundaria, a qual eu tive de refazer na maxima parte, depois de concluido o meu curso de direito, quando senti a necessidade de crear uma individualidade litteraria.

Tendo meu companheiro concluido a leitura de Balzac, á instancias minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela opposição de meu parente que receiava dessa diversão.

Encerrei-me com o livro, e preparei-me para a lucta. Escolhido o mais breve dos romances, armei-me do diccionario, e tropeçando á cada instante, buscando significados de palavra em palavra, tornando atraz para reatar o fio da oração; arquei sem esmorecer com a improba tarefa. Gastei oito dias com a Grenadière; porém um mez depois acabei o volume de Balzac; e no resto do anno li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo de Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo.

A eschola franceza, que eu então estudava nesses mestres da moderna litteratura, achava-me preparado para ella. O molde do romance, qual m'o havia revelado por mera casualidade aquelle arrojo de criança á tecer uma novella com os fios de uma ventura real; fui encontral-o fundido com a elegancia e belleza que jamais lhe poderia dar.

E ahi está, porque justamente quando a sorte me deparava o modelo á imitar, meu espirito desquitava-se dessa, a primeira e a mais cara de suas aspirações, para devaneiar por outras devesas litterarias, onde brotam flores mais singelas e modestas.

O romance, como eu agora o admirava, poema da vida real, me apparecia na altura dessas criações sublimes, que a Providencia só concede aos semi-deuses do pensamento; e que os simples mortaes não podem ousar, pois arriscam-se á derreter-lhes o sol, como á Icaro, as pennas de cysne grudadas com cêra.

Os arremedos de novellas, que eu escondia no fundo do meu bahú, desprezei-os ao vento. Peza-me ter destruido as provas desses primeiros tentamens que seriam agora reliquias para meus filhos, e estimulos para fazerem melhor. Só por isso; que de valor litterario não tinham nem ceitil.

Os dois primeiros annos que passei em S. Paulo, foram para mim de contemplação e recolhimento de espirito. Assistia arredio ao bulicio academico; e familiarisava-me de parte com esse viver original, inteiramente desconhecido para mim, que nunca fôra pensionista de collegio, nem havia até então deixado o regaço da familia.

As palestras á meza do chá; as noites de cinismo conversadas até o romper d'alva entre a fumaça dos cigarros; as anedoctas e aventuras da vida academica, sempre repetidas; as poesias classicas da litteratura paulistana e as cantigas tradiccionaes do povo estudante; tudo isto sugava o meu espirito adolescente, como a tenra planta que absorve a limpha, para mais tarde desabrochar a talvez pallida florinha.

Depois vinham os discursos recitados nas solemnidades escolares, alguma nova poesia de Octaviano; os brindes nos banquetes de estudantes; o apparecimento de alguma obra recentemente publicada na Europa; e outras novidades litterarias, que agitavam a rotina do nosso viver habitual e commoviam um instante a colonia academica.

Não me recordo de qualquer tentamen litterario de minha parte até fins de 1844.

Os estudos de philosophia e historia preenchiam o melhor de meu tempo, e de todo me attrahiam.

O unico tributo que paguei então á moda academica, foi o das citações. Era nesse anno de bom tom ter de memoria phrases e trechos escolhidos dos melhores authores, para repetil-os á proposito.

Vistos de longe, e atravez da razão, esses arremedos de erudicção, arranjados com seus remendos alheios, nos parecem ridiculos; e todavia é esse jogo de imitação que primeiro imprime ao espirito a flexibilidade, como ao corpo o da gymnastica.

Em 1845 voltou-me o prurido de escriptor; mas esse anno foi consagrado á mania que então grassava de baironisar. Todo estudante de alguma imaginação queria ser um Byron; e tinha por destino inexoravel copiar ou traduzir o bardo inglez.

Confesso que não me sentia o menor geito para essa transfusão; talvez pelo meu genio taciturno e concentrado, que já tinha em si melancolia de sobejo, para não carecer desse emprestimo. Assim é que nunca passei de algumas peças ligeiras, das quaes não me figurava heróe e nem mesmo author; pois divertia-me em escrevel-as com o nome de Byron, Hugo, ou Lamartine nas paredes de meu aposento á rua de S. Thereza, onde alguns camaradas d'aquelle tempo, ainda hoje meus bons amigos, os Drs. Costa Pinto e José Brusque, talvez se recordem de as terem lido.

Era um desacato aos illustres poetas attribuir-lhes versos de confecção minha; mas a brocha do caiador, incumbido de limpar a casa pouco tempo depois de minha partida, vingou-os desse innocente estratagema, com que nesse tempo eu libava a delicia mais suave para o escriptor: ouvir ignoto o louvor de seu trabalho.

Que satisfação intima não tive eu, quando um estudante, que era então o inseparavel amigo de Octaviano e seu irmão em lettras, mas hoje chama-se o Barão de Ourem, releu com enthusiasmo uma dessas poesias, seduzido sem duvida, pelo nome do pseudo-author! É natural que hoje nem se lembre desse pormenor; e mal saiba que de todos os cumprimentos que depois recebi de sua cortezia, nenhum valia aquelle expontaneo movimento.

Os dois annos seguintes pertencem á imprensa periodica. Em outra occasião escreverei esta, uma das paginas mais agitadas da minha adolescencia. Dahi datam as primeiras raizes de jornalista; como todas as manifestações de minha individulidade, essa tambem iniciou-se no periodo organico.

O unico homem novo e quasi extranho que nasceu em mim com a virilidade, foi o politico. Ou não tinha vocação para essa carreira, ou considerava o governo do estado coisa tão importante e grave, que não me animei nunca a ingerir-me nesses negocios. Entretanto eu sahia de uma familia para quem a politica era uma religião, e onde se haviam elaborado grandes acontecimentos de nossa historia.

Fundamos, os primeirannistas de 1846, uma revista semanal sob o titulo — Ensaios Litterarios.

Dos primitivos collaboradores desse periodico, saudado no seu apparecimento por Octaviano e Olimpio Machado, já então redactores da Gazeta Official, falleceu ao terminar o curso o Dr. Araujo, inspirado poeta. Os outros ahi andam dispersos pelo mundo. O Dr. José Machado Coelho de Castro é presidente do Banco do Brazil; o Dr. João Guilherme Whitaker é juiz de direito em S. João do Rio Claro; e o conselheiro João de Almeida Pereira, depois de ter luzido no ministerio e no parlamento, repousa das lides politicas no remanso da vida privada.