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Condenado a morte

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Soyez victorieux de la terre,

BALZAC, Seraphita

Desde que ele, o doloroso Estético, penetrou naquele Noviciado divino, que se sentiu para sempre condenado à Morte!...

Bem o pressentiu logo, bem o compreendeu, assim que em torno à sua cabeça melancólica e triunfante um clangor de guerra ecoou, vitoriando-o, e cem mil estandartes gloriosos dos falangiários do Ideal se desfraldaram e abateram ante seus pés, numa solene homenagem de conquista.

A Vida terrena do Tangível que flamejasse lá fora, nos turbilhões cruentos dos dias, no dilaceramento das horas; os homens que se atropelassem e gemessem e rojassem sob a mole formidanda das paixões; o gozo, a ebriedade do gozo, o prazer picante e álacre, fútil, leve, fácil, que cantasse sobre a terra, que agitasse todos os seus guizos jogralescos, rufasse todos os seus tambores festivos, fizesse ressoar todos os seus clarins ovantes...

Ele, o Estético doloroso, não! Dentro desse Noviciado divino estaria perpetuamente condenado à Morte — visão, fantasma, sombra do Imponderável, arrebatado não sei por que estranho Mistério, não sei por que esquisita impressão abstrata, não sei por que fluido maravilhoso, para a Morte, antes mesmo da consumação da matéria, por condenar as vãs alegrias que arrastam tantas almas, as venturas banais que fascinam e embriagam tão loucamente os homens.

Outros que se alassem às correrias preciosas da Mocidade, às opulências, ao fausto, ao esplendor das pompas exteriores, ao estridente rumor das festas, perdidos pelas estradas intermináveis, longínquas, ermas, dos Destinos desencontrados.

Ele, o Estético doloroso, não! Naquela intuição tocante de Iluminado, ficaria no Desconhecido, para a consagração do Espírito, olhando, numa indizível tristeza de mar noturno, as gerações que se aglomeram e mutuamente devoram nos pórticos desolados do Universo, pela batalha bárbara do Existir...

Ele estivera já em contactos com o Mundo, sentindo-o, respirando o mesmo ar, chocando-se com os sentimentos mais abstrusos e soturnos, com as paixões mais vorazes, com os corações mais gelados, roídos pelo cancro alastrante de um tédio doentio, de um nirvanísmo agudo, de um nihil eslavo...

Sentira todas essas psicoses sangrentas, todas essas manifestações exóticas de unia espécie de absurda teratologia mental; todas essas complexidades d'alma de uni fundo caótico, esmagador, aniquilante, de onde a Fé fugiu desolando e enrijecendo tudo, ficando apenas o granito de umas naturezas hirtas, impassíveis, estratificadas no egoísmo e na indiferença das cousas, vendo a perfeição, a beleza serena das abstrações ideais, das formas onipotentes e singulares, com os vesgos olhos da lascívia, da impotência ou da inveja reptilosa e lesmenta.

Ele viu atritarem-se convulsamente os leprosos, os aleijados, os epilépticos, os morféticos, os tísicos, os cegos, enroscados todos na sua negra mortalha de suicidas, cambaleantes, ébrios de dor, de desespero, na agonia da carne que se dilacera, que se rasga, que se despedaça — enquanto o soberbo sol, dos Altos, como um pagão, bizarro, cantava sobre todas essas chagas abertas, sarcasticamente, diabolicamente, indiferentemente, a música offenbachiana, do seu clarão comunicativo e cortante...

Ele viu, como um largo mediterrâneo, todo o assombro das lágrimas recalcadas, toda a epopéia sinistra, toda a majestade dolorosa da alma humana, torcida num espasmo de angústia lancinada, amargamente lancinada numa aflitiva treva de dilaceramentos.

Ele observara tudo, descera a esses subterrâneos fatais, a essas criptas letíficas de nevroses e spleenéticas doenças, onde parece errarem duendes infernais e onde corno que uma lua lívida, espectral, d'álem túmulo, trêmula e triste, derrama sonolenta e esverdeada claridade de augúrios medonhos e indefiníveis...

Vira tudo isso, mas vira igualmente todas as graças e aromas da terra na fascinação satânica da mulher, no encanto virginal da sua carne, na tantálica tentação dos seus braços tentaculosos.

Mas, tendo desde logo entrado na posse secreta de si mesmo, o doloroso Estético só sentira mais a mulher nas linhas e aspectos da visão, desprezara a carne, idealizara, espiritualizara a mulher.

Ele vira os fatigantes prazeres, as bizarras e galhardas alacridades do Vinho — quando a mocidade ruidosa, num alvoroço, arrebatada nos fantasiosos corcéis alados da alegria, por ser futilmente, mas intensamente amada, abre os braços nervosos à loucura, com todo aquele sangue exuberante, claro, vigoroso, de leão dominador, que mais tarde a boca visguenta da cova há de beber, sugar então fartamente para sempre.

Tudo, absolutamente tudo, ele vira; tudo o que é ventura breve, mas tangível, mas real, tudo o que se goza pelo olfato, pelos olhos, pelo paladar e pelo tato; tudo o que constitui o epicurismo grego e o que constitui o júbilo mundano, a felicidade clássica, oficial, convencionada, das sociedades cansadas, decadentes, esgotadas pela degenerescência do sangue, pela intensidade da Análise, torporizadas e entorpecidas no amolecimento e no postiço das fórmulas, sem ter enfibratura para a Grande Vida, em regiões estreladas, ao de leve, sutil e delicadamente, noutra chama, noutra esfera mais fina, mais pura...

Completamente tudo, afinal, ele vira e sentira com profundidade, enclausurado naquele Noviciado divino, pelo qual, como de dentro da terrível, solene e hieroglífica porta do INFERNO, deixara lá fora no Mundo toda a esperança de gozos efêmeros, de ambições medíocres, de aclamações decretadas, de acolhimentos e apoteoses mundanas, de séquitos reverentes e cortesãos arrastando a pompa impura, enxovalhada, rota, ridícula, da larga púrpura de ovações cediças e seculares.

Se ainda lhe fosse permitido ouvir o eco adormecido, distante, vago, das Ilusões, das Alegrias livres, dos Sonhos de há vinte anos, das Esperanças imensas, das Saudades intraduzíveis da sua adolescência, para lá destas eras rudes e austeras do Pensamento e do Sentimento, outra cousa não repetiriam, não clamariam todas essas sacrossantas Imagens, todas essas inefáveis Visões, senão que o doloroso Estético é agora um perfeito condenado à Morte — sereno e grande condenado que ufanamente esqueceu e desprezou, para trás, para os tempos de outrora, tanta luz de tranqüilidade, de paz ingênua, para vir então espontaneamente entregar-se aos martirizantes cilícios das Idéias.

As sensações que poderia experimentar com simplicidade, como natureza elementar, sem febre, sem delírio de impressões, sem agudezas de nervosismos; essas sensações comuns de sentir, físicas, flagrantes como ferro em brasa chiando em cheio nas carnes, o doloroso Estético deixou intensamente de experimentar, para mais intensas sentir as outras sensações que tocam por toda a escala dos nervos, por todo o enraizamento das fibras, por toda a delicadeza etérea, aeriforme, da ductilidade e da vibração.

Impassível diante de tudo que não seja a expressão de uma Estética, a afirmação de uma estesia rara, a latente, profunda originalidade sensacional e vivendo por entre o ruído, a confusão, a vertigem da multidão que ri, que goza com distinções boçais, com a sua celulazinha empírica, — Ele não vive a vida externa dos homens, não participa, de fato, do meio ambiente — antes o seu estado vital é a morte, por uma condenação perpétua e lógica de todos os vários elementos da Matéria contra ele conclamados...

Isolado do Mundo, no exílio da Concentração, solitário, na tristeza majestosa de um belo deus esquecido, as outras forças múltiplas que agem na Terra, na luta desenfreada de cada dia, que equilibram as sociedades, que regem a massa vã dos princípios, que dão ritmo à onda eterna do movimento e entram na vasta elaboração da cultura das raças, sentiram-se hostilizados diante da sua intuitiva percuciência de vidente, da sua ironia gelada de asceta, do seu desdém soberano de apóstolo, da sua Fé indestrutível, serena de missionário, de extraordinário levita sombrio de um culto estranho, que leva aos lábios, em extremo, o Cálix místico da comunhão suprema da Espiritualidade e da Forma.

E então, o doloroso Estético, soberbo e sublime na sua solidão e no seu silêncio, vagueou — afastado do foco real, positivo da Vida — sem existir de fato, como um simples condenado à Morte, errante fantasma na sombra de sepulcros, misteriosamente vibrado por grande Sonho doloroso ritmado nas longas, monótonas e amargurantes melancolias do Mar, para sempre gemendo e sonhando, noturnamente, velhas lendas bárbaras.

É que o Estético viera da caudal misteriosa dos que acharam clarividentemente o inédito das suas almas, que se sentiram seres, que se salvaram do Caos universal com a evidência simples e clara de uma natureza afirmativa.

Mas, afinal, assim mesmo condenado à Morte, sob os filtros negros da Morte, ele, purificado do Espírito, perfectibilizado da Alma, remido e libertado da Matéria, ficou simbolizando, no entanto, o único ser verdadeiramente livre e legitimamente ser, o mais belo, o maior, o mais alto ser, ainda que desolado e sombrio, vitorioso da Terra!