Confissões de uma Viúva Moça/III
Decorreu um mez.
Não houve durante esse tempo mudança alguma em casa. Nenhuma carta appareceu mais, e a minha vigilancia, que era extrema, tornou-se de todo inutil.
Não me podia esquecer o incidente da carta. Se fosse só isto! As primeiras palavras voltavão-me incessantemente á memoria; depois, as outras, as outras, todas. Eu tinha a carta de cór!
Lembras-te? Uma das minhas vaidades era ter a memoria feliz. Até n’este dote era castigada. Aquellas palavras atordoavão-me, fazião-me arder a cabeça. Porque? Ah! Carlota! é que eu achava n’ellas um encanto indefinivel, encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas encanto de que eu me não podia libertar.
Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e perigosa para os espiritos fracos. Eu era fraca. O mysterio fascinava a minha fantasia.
Emfim os dias e as diversões puderão desviar o meu espirito d’aquelle pensamento unico. No fim de um mez, se eu não tinha esquecido inteiramente o mysterioso e a carta d’elle, estava, todavia, bastante calma para rir de mim e dos meus temores.
Na noite de uma quinta-feira, achavão-se algumas pessoas em minha casa, e muitas das minhas amigas, menos tu. Meu marido não tinha voltado, e a ausencia d’elle não era notada nem sentida, visto que, apezar de franco cavalleiro como era, não tinha o dom particular de um conviva para taes reuniões.
Tinha-se cantado, tocado, conversado; reinava em todos a mais franca e expansiva alegria; o tio da Amelia Azevedo fazia rir a todos com as suas excentricidades; a Amelia arrebatava bravos a todos com as notas da sua garganta celeste; estavamos em um intervalo, esperando a hora do chá.
Annunciou-se meu marido.
Não vinha só. Vinha ao lado d’elle um homem alto, magro, elegante. Não pude conhecêl-o. Meu marido adiantou-se, e no meio do silencio geral veio apresentar-m’o.
Ouvi de meu marido que onosso conviva chamava-se Emilio ***.
Fixei n’elle um olhar e retive um grito.
Era elle!
O meu grito foi substituido por um gesto de sorpresa. Ninguem percebeu. Elle pareceu perceber menos que ninguem. Tinha os olhos fixos em mim, e com um gesto gracioso dirigio-me algumas palavras de lisongeira cortezia.
Respondi como pude.
Seguírão-se as apresentações, e durante dez minutos houve um silencio de acanhamento em todos.
Os olhos voltavão-se todos para o recem-chegado. Eu tambem voltei os meus e pude reparar n’aquella figura em que tudo estava disposto para attrahir as attenções: cabeça formosa e altiva, olhar profundo e magnetico, maneiras elegantes e delicadas, certo ar distincto e proprio que fazia contraste com o ar affectado e prosaicamente medido dos outros rapazes.
Este exame de minha parte foi rapido. Eu não podia, nem me convinha encontrar o olhar de Emilio. Tornei a abaixar os olhos e esperei anciosa que a conversação voltasse de novo ao seu curso.
Meu marido encarregou-se de dar o tom. Infelizmente era ainda o novo conviva o motivo da conversa geral.
Soubemos então que Emilio era um provinciano filho de pais opulentos, que recebêra uma esmerada educação na Europa, onde não houve um só recanto que não visitasse.
Voltára ha pouco tempo ao Brasil, e antes de ir para a provincia tinha determinado passar algum tempo no Rio de Janeiro.
Foi tudo quanto soubemos. Vierão as mil perguntas sobre as viagens de Emilio, e este, com a mais amavel solicitude, satisfazia a curiosidade geral.
Só eu não era curiosa. É que não podia articular palavra. Pedia interiormente a explicação d’este romance mysterioso, começado em um corredor do theatro, continuado em uma carta anonyma e na apresentação em minha casa por intermedio de meu proprio marido.
De quando em quando levantava os olhos para Emilio e achava-o calmo e frio, respondendo polidamente ás interrogações dos outros e narrando elle proprio, com uma graça modesta e natural, alguma das suas aventuras de viagem.
Occorreu-me uma idéa. Seria realmente elle o mysterioso do theatro e da carta? Pareceu-me ao principio que sim, mas eu podia ter-me enganado; eu não tinha as feições do outro bem presentes à memoria; parecia-me que as duas creaturas erão uma e a mesma; mas não podia explicar-se o engano por uma semelhança miraculosa?
De reflexão em reflexão, foi-me correndo o tempo, e eu assistia á conversa de todos como se não estivesse presente. Veio a hora do chá. Depois cantou-se e tocou-se ainda. Emilio ouvia tudo com attenção religiosa e mostrava-se tão apreciador do gosto como era conversador discreto e pertinente.
No fim da noite tinha captivado a todos. Meu marido, sobretudo, estava radiante. Via-se que elle se considerava feliz por ter feito a descoberta de mais um amigo para si e um companheiro para as nossas reuniões de familia.
Emilio sahio promettendo voltar algumas vezes.
Quando eu me achei a sós com meu marido, perguntei-lhe:
— D’onde conheces este homem?
— É uma perola, não é? Foi-me apresentado no escriptorio ha dias; sympathisei logo; parece ser dotado de boa alma, é vivo de espirito e discreto como o bom senso. Não ha ninguem que não goste d’elle...
E como eu o ouvisse séria e calada, meu marido interrompeu-se e perguntou-me:
— Fiz mal em trazêl-o aqui?
— Mal, porque? perguntei eu.
— Por cousa nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distincto...
Puz termo ao novo louvor do rapaz, chamando um escravo para dar algumas ordens.
E retirei-me ao meu quarto.
O somno d’essa noite não foi o somno dos justos, pódes crer. O que me irritava era a preoccupação constante em que eu andava depois destes acontecimentos. Já eu não podia fugir inteiramente a essa preoccupação: era involuntaria, subjugava-me, arrastava-me. Era a curiosidade do coração, esse primeiro signal das tempestades em que succumbe a nossa vida e o nosso futuro.
Parece que aquelle homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no momento mais proprio à occupar-me a imaginação como uma figura poetica e imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circumstancias anteriores, não era para produzir esta impressão no espirito de uma mulher como eu!
Como eu, repito. Minhas cireumstancias erão especiaes, se não o soubeste nunca, suspeitaste-o ao menos.
Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse n’elle um marido, minha salvação era certa. Mas não era asim. Entrámos no nosso lar nupcial como dous viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quaes a calamidade do tempo e a hora avançada da noite obrigão a aceitar pousada sob o tecto do mesmo aposento.
Meu casamento foi resultado de um calculo e de uma conveniencia. Não inculpo meus pais. Elles cuidavão fazer-me feliz e morrêrão na convicção de que o era.
Eu podia, apezar de tudo, encontrar no marido que me davão um objecto de felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse em mim uma alma companheira da sua alma, um coração socio do seu coração. Não se dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da maior parte da gente; via n’elle a obediencia ás palavras do Senhor no Genesis.
Fóra d’isso, fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranquillo na convicção de que havia cumprido o dever.
O dever! esta era a minha taboa de salvação. Eu sabia que as paixões não erão soberanas e que a nossa vontade póde triumphar d’ellas. A este respeito eu tinha em mim forças bastantes para repellir idéas más. Mas não era o presente que me abafava e atemorisava; era o futuro. Até então aquelle romance influia no meu espirito pela circumstancia do mysterio em que vinha envolto; a realidade havia de abrir-me os olhos; consolava-me a esperança de que eu triumpharia de um amor culpado. Mas, poderia n’esse futuro, cuja proximidade eu não calculava, resistir convenientemente á paixão e salvar intactas a minha consideração e a minha consciencia? Esta era a questão.
Ora, no meio d’estas oscilações, eu não via a mão de meu marido estender-se para salvar-me. Pelo contrario, quando na occasião de queimar a carta, atirava-me a elle, lembras-te que elle me repellio com uma palavra de enfado.
Isto pensei, isto senti, na longa noite que se seguio á apresentação de Emilio.
No dia seguinte estava fatigada de espirito; mas, ou fosse calma ou fosse prostração, senti que os pensamentos dolorosos que me havião torturado durante a noite esvaecêrão-se á luz da manhã, como verdadeiras aves da noite e da solidão.
Então abrio-se ao meu espirito um raio de luz. Era a repetição do mesmo pensamento que me voltava no meio das preoccupações d’aquelles ultimos dias.
Porque temer? dizia eu comigo. Sou uma triste medrosa; e fatigo-me em crear montanhas para cahir extenuada no meio da planicie. Eia! nenhum obstaculo se oppõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada. Este homem, se é o mesmo, não passa de um máo leitor de romances realistas. O mysterio é que lhe dá algum valor; visto de mais perto ha de ser vulgar ou hediondo.