Conto de Natal
Ao Afonso, o meu filhinho mais velho
Naquele ano, em Santa Catarina, dezembro andara a lembrar julho, com semanas de dias sombrios, de aguaceiros seguidos e de ventos hibernais. Mas a véspera de Natal chegara. O sol, que ainda pela manhã se conservara oculto nos densos nevoeiros da costa, se mostrava plenamente à tarde, envolvendo todo o arraial das Aranhas na luz purpurina e de ouro de um dos seus mais lindos ocasos.
As redes que tinham andado a “cercar” nesse dia alastraram cedo os varais onde as cortiças e “chumbeiros”, como estranhas camândulas que as ondas desfiam em murmúrios de bonança ou em rugidos de tormenta, sob o jugo do pescador audaz, escorriam e secavam, para os grandes “lanços” futuros, em frente aos ranchos desertos, fechados agora à fresca aragem do mar. De sorte que pelas ave-marias cada um se acolhera ao seu lar, onde a ninhada dos filhos folgava já alacremente, nas primeiras expansões venturosas da noite entre todas notável.
Àquela hora vinham transpondo a porteira de um triste casebre que se aninhava entre os cômoros, dois rapazinhos maltrapilhos e descalços. Eram os filhos da Sabina viúva — o Manuelzinho e o Cosme — que iam ao engenho do velho Albino Pacheco buscar açúcar e farinha para o gasto da casa. Dos meninos do arraial eram eles sem dúvida os mais pobres, pois haviam orfanado de pai, tendo um quase três anos e outro apenas seis meses. A mãe, coitada, vivia a bater e a fiar algodão e gravatá desde manhã até a noite, enquanto eles, tão pequenos — o mais velhinho teria agora nove anos e o mais moço não completava ainda os sete — repartiam o tempo entre a lavoura e a pesca.
Mas, apesar da sua grande atividade, na penúria geral do lugar, o que ganhavam não lhes dava quase para a subsistência, pelo que, frequentemente, passavam dias e dias só a café, e esse mesmo, muitas vezes, amargo.
Deixada para trás a porteira e passado o atalho, os dois pequenos entraram a caminhar apressadamente pela larga e solitária estrada real que a lua, surgindo da barra escura e rendilhada das colinas de leste, banhava aqui e além docemente com a sua luz fria e láctea. Como tinham o espírito saturado das velhas lendas roceiras de lobisomens e bruxas, de aparições e fantasmas, coisas muitíssimo comuns nas aldeias, e como ambos sentiam já o medo crescer-lhes dentro da alma, à maneira que as desoladas e tristes horas da noite cresciam — para se acompanharem, largaram a cantar numa toada estridente cujo diapasão aumentavam ainda, sempre que enfrentavam os grandes espinheiros, cafezais e laranjais, cheios de sombras, margeando seguidamente a estrada.
Apesar da noite clara, pouca gente cursava os caminhos, e nem mesmo os noctívagos mais famosos do sítio eram encontrados agora nas suas longas marchas costumadas feitas a pé, lentamente, ou em ligeiros cavalos árdegos. As porteiras, nos outros dias rumorosas e cheias de pequenos grupos de gente, alvejavam agora abandonadas, ermas e silentes, sob o clarão do luar. A melancolia e placidez que pesavam dir-se-iam de horas mortas se não fora, de um lado, uma ou outra venda distante onde alguns compradores retardados parolavam ainda, num tumulto de pressa, com o próprio dono da casa; do outro, uns sons vagos de viola e cantigas vibrando jubilosamente, de envolta com as risadas sonoras da meninada em folia, pelos terreiros das casas, que se aninhavam entre árvores frutíferas, assinaladas, aqui e ali, na lombada das encostas ou no cimo dos outeiros, pelas saudosas chamas das lareiras, ou pela alvura fulgurante de uma parede caiada.
E os dois rapazinhos apertavam o passo, despejando caminho a valer e dissipando os temores ingênuos com seus alegres cantares.
Na volta das Capivaras, ao subirem a Ladeira Grande, as planícies de Canavieiras abriram-se diante deles, num imenso empastamento de sombra nebulosa, onde nada se distinguia quase, a não ser o espelhante clarão dos banhados e na infinita faixa de prata polida do rio do Brás, coleando delongadamente para uma negrura mais densa e remota, que se ia perder longe, no horizonte polvilhado, e que devia ser o mar.
Aí um alvoroço colheu-os, dando-lhes uma grande coragem. Era a casa do Rufino Valente que, logo adiante, na estrada das Areias, como nos outros anos passados, refulgia, toda acesa, nos festejos de Natal. E, estacando de súbito, ficaram ambos a olhar por instantes o largo pendor de colina onde a vivenda assentava. Entreviam vagamente, pelas janelas abertas, o alto armário do presépio, resplandecendo alegremente, picado de luzes de ouro como um recanto de céu, em noite límpida, estrelada. Uma multidão de pessoas, velhos, moços e mulheres, abarrotavam a sala. No amplo terreiro murado, uma grossa fogueira de toros abria fulgurantemente, na treva enluarada, a sua gigantesca corola de púrpura, erguendo um inextricável novelo de chamas dançantes que o vento do norte inquietava às rajadas, e cujas línguas alterosas e loucas, jorrando faíscas ao ar, envolviam por vezes a frontaria da casa num grande chuveiro de fogo. Em torno folgavam crianças, desprendendo risadas festivas que ecoavam ao longe.
Atraídos por aquela alegria e curiosos de ver o presepe, que jamais haviam visto, combinaram os dois em dar, quando já de volta do engenho, uma chegadinha até lá. E, já de todo esquecidos de aparições e fantasmas, entraram a descer a ladeira, a passo forte e estugado, enfiando pelo atalho que levava ao Bom Jesus, onde ficava o engenho do velho Albino Pacheco. Na andada veloz em que iam, dentro em pouco o avistaram, ao fundo de vasta pastagem, entre frondes murmurosas de cafeeiros, de laranjeiras e bananeiras altas, cujas folhas tesouradas em franja pelo vento baloiçavam agora, docemente, com reflexos cor de prata…
Apenas encheram de farinha e açúcar os saquinhos que levavam, os dois pequenos meteram-se de novo a caminho, na sua marcha apressada. E parolavam satisfeitos pela estrada das Areias, em direção ao lar do Rufino, a gozar ao menos um pouco os folguedos de Natal. Já alcançavam a porteira quando um cavaleiro que passava, reconhecendo-os, gritou-lhes: —Ó rapazes, vocês ainda estão por aqui! A Sabina já lá anda apensionada…
Era o filho do Zé Basta, que ia para a freguesia assistir à missa do galo.
Os dois rapazinhos, diante daquelas palavras que os chamavam ao dever, lembrando-lhes a pobre mãe já aflita no seu casebre da praia, hesitaram por momentos, parados, e a entreolharem-se com ânsia, junto aos moirões da porteira. Mas a habitação do Rufino, com a sua grande e álacre fogueira de ouro, o presépio cheio de luzes e flores como um recanto paradisíaco, e as risadas deliciosas da criançada feliz, estava lá em cima a tentá-los. Decidiram então que seria só por um instante, voltariam logo. E resolutamente enfiaram para o alto do terreiro, onde os meninos da casa os receberam carinhosamente, dando-lhes roletes de cana, pipocas e broas torradas.
Mas a grande atração dos dois petizes recém-vindos era o belíssimo presépio, que pediam para ver com instância. Seguidos dos filhos de Rufino, romperam então por entre a multidão que inundava a sala e foram postar-se, boquiabertos, diante do grande armário estrelado de velas em chamas, em cujo interior espaçoso delicadas mãos femininas, artísticas e devotas, num esforço imitativo de microscópica criação geológica ou de microscópica criação bíblica, haviam improvisado uma Palestina verdejante e risonha, com pastores e rebanhos, banhada de rios e lagos, cheia de alegria e frescor, bem diferente decerto dessa outra Palestina da Ásia Menor, onde tudo é abandono e tristeza, secura e desolação.
O Manuelzinho e o Cosme, encantados com aquela miniatura da Natureza que lhes parecia um doce canto do Céu, entraram a perguntar aos camaradas o nome de cada um dos objetos que viam esparsos pelos recessos microscópicos desse simulacro de paisagem, que era um verdadeiro mimo. E logo um dos meninos do Rufino, que já sabia tudo aquilo por ter visto inúmeras vezes armar-se e desarmar-se o presepe, lhos foi enumerando um a um. Falou de Jerusalém, que se avistava, em panorama geral, desdobrando-se sobre as tábuas do fundo do armário, em pinceladas ingênuas, de um rude colorido primitivo; das pequeninas estradas coleantes que sulcavam planura e colinas; das cisternas de vidro de espelho, reluzindo à sombra de palmeirinhas; das cabanas que se aninhavam entre oliveiras, entre pequenos cedros e vinhas; dos camelos carregados de mirra, de joias de ouro e de incenso; dos Reis Magos da Caldeia e da Grande Estrela radiante e caudata que corria pelo céu numa esteira de luz viva, guiando-os para o Estábulo bendito, onde o Menino Jesus, ainda há pouco nascido, repousava sobre as palhas, tendo em volta a adorá-lo S. José e a Virgem Santa, os pastores de Belém, a vaca e a jumentinha…
No entanto os dois orfãozinhos namoravam, num doce enlevo infantil, aquelas coisas divinas, que pela primeira vez contemplavam e de que sua mãe lhes falava, às vezes, nas suas rezas humildes. E o que mais os arrebatava era o Menino Jesus, tão nuzinho e pequenino, com os seus olhinhos azuis muito límpidos e a sorrir inefavelmente para eles do seu berço de palhinhas.
Naquele êxtase feliz, esqueciam-se de tudo, das pessoas que os cercavam, ajoelhadas e orando, como da pobre mãe que lá ficara na choça e que justamente àquela hora, desesperada e aflita com a demora deles, no pressentimento alucinante de que lhes houvesse sucedido alguma desgraça, saíra ansiosamente a buscá-los pelos desertos caminhos.
A Sabina deixara o seu casebre já as vendas estavam fechadas, e por isso fazia parar os caminhantes que por acaso encontrava, para lhes perguntar, quase em pranto, se não tinham visto os seus dois pequenos, o Cosme e o Manuelzinho. Depois de percorrer vários atalhos e trilhas, tomou a estrada real e, numa andada ansiosa e precipite, sob o ermo silêncio do Espaço que a lua largamente cobria com o seu imenso velário de cetim branco luminoso — chegou à Ladeira Grande onde, ao avistar de repente a casa de Rufino, toda iluminada e ruidosa, o seu coração torturado de mãe teve uma súbita alegria, pois pensou imediatamente que ali os encontraria. — Sim! eles deviam estar lá! murmurou intimamente, respirando a longos haustos e moderando agora, um pouco, a violência da marcha.
Tencionava ir até ao engenho do velho Albino Pacheco a saber dos pequenos, mas conhecendo o que eram crianças e seguindo os impulsos do seu leal coração de mãe — coração que sempre tudo adivinha! — abandonou aquela primeira ideia e dirigiu-se firmemente para a casa do Rufino. Galgou à pressa o terreiro e, rompendo por entre os rapazes e homens que se aglomeravam à porta, aí esbarrou com o velho lavrador a quem inquiriu ofegante:
— Ô só Rufino, os meus pequenos não estão por aqui? Estes demônios dão-me cabo da vida! Mandei-os às ave-marias ao engenho do velho Pacheco e até agora nada de voltarem! Estou que nem posso de cansada e aflita! Com certeza os demônios descobriram lá do morro o presepe e vieram para cá direitinhos. Não sei onde estou que lhes não dê um ensino… E apenas o Rufino lhe disse que os meninos estavam ali, com efeito, ela entrou impetuosamente na sala, onde as moças e matronas que lhe tinham ouvido as últimas palavras ameaçadoras correram a cercá-la pedindo:
— Ô Sabina, detém-te! Não os castigues… Olha que hoje é um dia sagrado!…
A Sabina dissera aquilo por dizer. O que ela sentia agora vivamente era um profundo júbilo que lhe inundava os olhos de lágrimas, como ainda há pouco o fizera a aflição quando percorria, despenhada, os caminhos. E apenas saudou a todos, correu para onde estavam os filhos, quedando-se em êxtase, com eles, ante o presepe festivo…
Nesse instante, lá fora, sob a abóbada enluarada do céu, os galos madrugadores, com os seus cantos triunfais de clarim, entravam a saudar alacremente a grandiosa alvorada aniversária do nascimento de Cristo.
A sala agitou-se então num alvoroço indizível. E todos, seguindo o capelão que ajoelhara já junto ao presepe rutilante, entoaram sonoramente, com ele, um hino soberbo, de alta devoção e louvor, ao glorioso Deus Menino…
E foi esse, sem dúvida, o dia de maior alegria para a Sabina, depois que ficara viúva, e para os filhos depois que perderam o pai.
Rio, 24 de Dezembro de 1898.