Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A filha do diabo
Era uma vez um rei; tratava mal a rainha porque não tinha filhos, e como esta andava com uma grande afflicção, n’uma hora de desespero, clamou:
— Quem me dera um filho, ainda que fosse por obra do diabo.
Passado tempo, a rainha teve uma menina muito linda, e o rei andava tão contente que não cabia em si. A criança medrava a olhos vistos, mesmo sem comer nem beber. Em pouco tempo ficou uma senhora, com um tino que maravilhava; sabia ler, escrever, bordar, cantar, tinha todas as prendas do mundo sem ter aprendido nada.
O rei todo orgulhoso da sua filha mandou deitar um pregão: Que se houvesse alguem que fizesse uma pergunta a sua filha e ella não fosse capaz de responder, se fosse homem havia de casar com ella, e se fosse mulher dar-lhe-hia uma tença. Veiu muita gente de toda a banda, mas a tudo ella dava troco e deixava de bocca aberta.
Um camponez, quiz campar de esperto, e tambem se lembrou de ir ao chamado do pregão; metteu-se a caminho, andou, andou, e depois de muito cançado viu uma casa na encosta de um monte e foi ali descançar das calmas. O camponez encontrou ali um moço, e perguntou-lhe — se elle vivia ali sósinho?
— Não senhor; vivo com meu pae, que foi dar uma geira a quem não póde dar outra, e com dois irmãos, que foram vêr a ceara dos arrependidos.
O camponez não percebeu nada d’estas palavras e pediu-lhe a explicação.
— A explicação é clara; meu pae foi dar uma geira a quem não póde dar outra, quer dizer que foi acompanhar um morto á sepultura; os meus irmãos foram vêr a ceara dos arrependidos, porque se ella estiver boa, ficam arrependidos por a não terem semeado toda, e se estiver ruim tambem ficam arrependidos por terem semeado essa mesma.
O camponez seguiu o seu caminho muito satisfeito, até que chegou ao palacio. Pediu para o levarem á princeza, e contou-lhe o seu caso. A princeza deu-lhe logo a explicação de tudo. Depois virou-se de novo para o camponio, e disse-lhe:
— Já que és tão sabio, diz-me lá a razão, porque é que eu vivo sem comer, sem beber, nem dormir.
— Perdôe-me vossa alteza, mas eu não me fio n’isso.
— Pois então hasde ficar tres dias no meu quarto para vêres com os teus olhos.
O rapaz susteve-se o primeiro dia sem dormir para espreitar tudo o que se passava; custou-lhe muito a aguentar-se, e quando veiu o terceiro dia, disse:
Princeza, minha senhora,
Cá pr’a mim mulher que não come,
Nem bebe, nem dorme,
É filha do diabo, que não d’outro home.
Assim que a princeza ouviu isto foi ter com a mãe para que lhe explicasse o seu nascimento. A rainha contou-lhe tudo o que dissera quando o marido a tratava mal por não ter filhos; e assim que acabou de fallar sentiu-se no palacio um barulho como de um furacão que passasse. O palacio ficou livre d’aquelle encantamento, e todos ficaram obrigados ao camponio, a quem o rei deu a princeza em casamento em paga de a ter livrado d’aquella cousa ruim.
(Algarve.)
Notas
[editar]53. A filha do Diabo. — Liga-se á lenda medieval do Roberto do Diabo, que anda na litteratura de cordel em Portugal. Vide o nosso estudo sobre Os Livros populares portuguezes. (Era Nova, n.º 1 e 2.)