Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O matador dos bichos

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44. O MATADOR DOS BICHOS

Houve em certo tempo um rei, que era sósinho mais a rainha, e não tinha filho nenhum para bem de herdar a corôa. Desejaram muito um filho, e nasceu-lhe uma menina. O rei tratou logo de ir vêr ao livro do signo qual seria a sorte da menina, e viu o seguinte:

— Que ao cabo de doze annos ella seria mettida n’uma torre sem porta, senão uma gateira por onde ella acceitasse o comer, e em roda de sete annos a carne que lhe déssem para comer não havia de levar osso nenhum.

Ao cabo de sete annos o rei seu pae foi convidado para ir a um jantar fóra, e deixou recommendado ás suas aias que quando mandassem o comer á princeza, que lhe não levassem carne com osso. Aconteceu por desgraça o contrario. Andava por ali um duque, vestido em trajo de mulher fallando com ella pela gateira. N’aquelle dia em que lhe foi o jantar com o osso ella tratou logo de fazer com elle um martello, e esborralhou um lado da gateira por onde podesse caber, e quando veiu o duque conversar, disse por estas palavras:

— Minha sorte está acabada antes do tempo por via do osso do jantar, e o meu intento é sahir já d’aqui.

Ahi vão elles fugidos; o duque passou um rio que mais ninguem sabia passar, e estiveram por espaço de dois annos em uma brenha de pedra muito seguros. Ali teve a princeza um menino, e como já tivesse trez annos, e como estivesse por baptisar, foi preciso tornar a passar o rio, para irem a uma ermida longe. Passou o duque o menino para a outra margem, e quando vinha para buscar a mãe, prendeu-se n’um passo e desappareceu, ficando a mãe de um lado e o filho do outro.

A princeza ficou chorando muito a sua desgraça, porque não sabia o caminho.

Respondeu-lhe o menino:

— Não tome a mãe molestia, que sou eu quem a vou passar.

— Filho, vaes pelo rio abaixo!

E dobrou ainda mais o choro. Mas o menino passou o rio bem, e guiou a mãe, e lá foi a uma egreja onde pediu para ser baptisado, e quiz o nome de José, Matador dos Bichos. Depois foram andando pela freguezia abaixo, e chegando a uma casa com um postigo meio aberto, elle metteu o braço, abriu a porta como se fosse sua, e entrou com a mãe. Não acharam ninguem; como não achassem que comer, elle foi pedir, e aconteceu ser ao palacio do rei, onde lhe deram muito. A mãe ficou admirada, e temendo que lá o conhecessem, pediu-lhe para não tornar ali mais. Elle das esmolas arranjou com que comprar uma espingarda, e começou a apanhar caça real que ia levar de presente ao palacio. Indo um dia para a caça lá para uns mattos feios, avistou umas fortes casas e essas medonhas. Com o muito animo que tinha entrou e viu sete homens deitados a dormir. Não teve elle mais que fazer senão pegar n’uma machadinha que ali viu, e com ella foi picando os pescoços dos sete homens, cada um por sua vez. Agora, cuidando que estava sósinho, corre todos os quartos, mas chegou a um em que estava o quadrilheiro-mór, que era um gigante, que lhe perguntou:

— Que fazes por aqui, franguinho de vintem?

— Com eu ser franguinho de vintem talvez me não tema de ti.

O gigante atira-lhe um pescoção, e o menino agarrou-se-lhe ás gadelhas e traçou-lhe o pescoço. Viu então muitas riquezas, e correu a dar parte á mãe, para irem para lá viver; a mãe disse-lhe que fosse dar parte ao rei. Ora o rei, pasmado da valentia do pequeno, perguntou:

— De quem és tu?

— Eu, senhor, sou filho de uma princeza, que fugiu com um duque, de uma torre em que estava fechada.

E como ia contando o acontecido, o rei interrompeu-o, dizendo:

— Pelo que percebo, então és meu neto. Onde está tua mãe?

— Senhor, está n’uma pobre cabana de palha.

E mandou-a buscar, para ella vir para o palacio, onde houve muitas festas. Ora o menino pediu ao avô para ir com uma força ás taes casas dos ladrões buscar aquelles grandes maçames que lá vira. Assim foi; e correndo todos os quartos ajuntou todos os empregos que ali havia de ouro e prata tudo n’um monte, pegaram a carregar quanto poderam, e mandou escangalhar as casas para não servirem mais de covil dos ladrões.

Por morte do avô foi o menino rei, e lá está vivendo muito bem.

(Ilha de S. Miguel — Açores.)


Notas[editar]

44. O matador de bichos. — É uma das lendas mais queridas da Edade media, do pae ou avô que conhece o filho ou neto abandonado, pela sua valentia extraordinaria. As Gestas desenvolveram este thema epico. Trogo Pompeu cita um fragmento de um poema dos Turdetanos, que é o conto do rei Abidis, neto do rei Gargoris, nascido de uma fragilidade de sua filha; tendo-o exposto a todos os perigos para que a criança morresse, sobrevive a tudo e é nomeado pelo avô successor do seu reino.