Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/A Cigana

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A CIGANA


Quando o gageiro gritou do alto das vergas — terra! — toda a gente que vinha a bordo da galera Terrivel sentiu uma grande e indefinida alegria.

Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convez, e os passageiros da prôa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com uma anciedade febril para a facha escura que a pouco e pouco avultava no horizonte.

A viagem tinha sido longa; a galera levára cincoenta dias a chegar do Rio de Janeiro.

Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e dias não vê mais que o céo e o mar, desapparecem como que por encanto ante essa palavra magica, solta pelo gageiro — terra!

Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas: tinham sido no Brazil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros.

Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundancia de saudades; tinham soffrido, padecido longe da patria, mas como ella os ia compensar de todas essas amarguras!

A alegria bailava em todos os olhos.

Ah! o capitão Navarro, apezar de ter feito aquella viagem cincoenta vezes, tambem vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um jubilo desmedido.

Quando o piloto se correspondia com o castello da barra, o capitão impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benevolo, perguntava:

— Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?

— Estão-me agora a perguntar se morreu alguem a bordo.

— Ora essa! Morto estou eu por me vêr em Massarellos. Querem vêr que ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!

Mas não aconteceu o que o capitão receiava: do castello fizeram signal que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de enthusiasmo e de um prazer intenso que o capitão commandou a manobra.

A galera como um cavallo que obedece facilmente á pericia de um optimo cavalleiro, proejou a barra em meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.

A galera fundeou defronte de Massarellos.

No dia seguinte, já não havia alli senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro que não tinha familia e que olhava para o cáes com repugnancia e com desdem.

As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as azas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias, retezadas, levavam o ar á camara e ao porão.

Um bello dia de agosto!

O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló olhava mais lentamente para o Douro como quem procura enxergar uma cousa desejada e cubiçada.

— Ainda nada? perguntou o capitão.

— Admira, capitão! Das outras veses pouco se deixa esperar essa visita.

E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e das catraias.

De repente, a Cigana, uma cadella de fila que era o idolo de toda a tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...

Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausencia.

— Espera! disse o contra-mestre, a Cigana tem faro. Ahi vem a sua gente, capitão!

Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, á força de remos, se dirigia para a galera.

— Até que emfim! disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló...

A cadella, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que elle para o interior do barco.

O contra-mestre olhava de cima aquelle quadro e murmurava entre alegre e melancolico:

— Parece que é bom ter familia e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...

— Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida de côres alegres; quando ella nos vem dizer com a voz abafada em lagrimas e soluços — a mamã morreu! — não me parece que seja muito para invejar, meu rude celibatario, que não tens outro affecto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!

De sorte que aquelle momento tão appetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela noticia da morte da mulher que elle extremecia devéras.

Eram quatro os affectos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa galera.

O primeiro affecto desapparecêra, restavam-lhe ainda os tres; não tinha muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adoravel meiguice, e aos pés de ambos, rojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo humedecido de uma ternura doce e humana.

A filha de Navarro, depois de haver chorado no seio do pae, abaixou-se e passou a mão pela cabeça da cadella.

— Quando partir de novo, papá, deixe-me a Cigana, sim? A mamã era tão amiga d’ella!

A Cigana, parecendo comprehender aquellas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no collo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos...

Quando Navarro chegava do Brazil e ia passar algum tempo a Lessa com a familia, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria amimado, festejado e cheio de affagos quando souberam que uma vez no alto mar...

Não sei quantas milhas devorava n’esse momento a galera.

Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros á prôa comiam o rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme.

O piloto fôra buscar ao seu beliche um mappa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais que o tempo necessario. Navarro ergueu-se do banco de vime e encostou se ás grades da ré.

Como foi aquillo? Vertigem? Congestão cerebral?

Foi elle encostar-se á grade, estar alli cousa de dous ou tres minutos, e de subito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...

O homem do leme viu aquillo, e afflictivamente exclamou:

— Jesus! acudam!

E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veiu saber o que succedera, o piloto, pallido e assustado, mandou colher todo o pano; podia vêr-se ao longe em meio das aguas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia affastar-se, affastar-se...

Os dous escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro d’elles os mais robustos dos tripulantes.

— A modo que elle não estava bom! disse o homem do leme. Que eu só reparei n’elle quando o vi no ar...

— Deitem-lhe a boia! gritou o contra-mestre.

N’aquelle momento de anciedade, procurou-se a boia e não se encontrou.

O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas sahiam-lhe em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do cachimbo.

O navio afrouxára a sua marcha, comtudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.

— Lá bom nadador é elle, dizia o contra-mestre, mas se ha tubarões assim! e reunia os dedos em pinha.

Estendia os braços, dependurava-se da grade da pôpa, e com gestos anciosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.

— Força, rapazes!

No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda.

Era impossivel escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e cançado, depois os tubarões...

Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que figuravam esses assanhados tigres do mar.

— Valha-nos o senhor de Mattosinhos! conclamavam n’um grito lancinante aquelles homens, que tantas vezes tinham luctado heroicamente contra as colericas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.

O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: ás vezes afundava-se, outras vezes immergia-se; e emquanto os escaleres voavam, o contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.

Quando o vulto vinha a distancia de uma milha o contra-mestre exclamou, affirmando a vista:

— Ou eu me engano, ou o capitão não vem sósinho... esperem! é a Cigana que traz a reboque o patrão!...

Era a Cigana effectivamente. Quando o velho cahira ao mar, o animal atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largára.

Quando os escaleres se aproximaram dos dous, a pobre Cigana estava quasi exhausta e sem forças.

Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ella continuou a nadar frouxamente sem poder resistir ás ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.

Quiz subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na agua, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a empolgasse com força, arrebatando-a assim á morte inevitavel.

Da galera, applaudiram a acção da Cigana, e quando ella e o capitão chegaram, não sei bem qual dos dous foi mais abraçado.

— Bravo, Cigana! exclamou o contra-mestre, não ha homem que te valha. Dá cá um abraço!

O capitão foi levado por dous marinheiros para a sua camara, emquanto a Cigana, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo agua e todo tremulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.

Ora, aqui está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amavel meiguice que deixasse ficar a Cigana quando para a outra vez tivesse de fazer viagem.

Quando a galera Terrivel partiu, não levava a seu bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?

Se o leitor é pae diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo e deixar sósinha uma filha de quinze annos, graciosa e encantadora.

Não tinha forças para tal, acreditamos.

Ao capitão succedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela primeira vez a Terrivel fazer-se de vela sem elle, mas ficou em terra.

Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão magestosa das aguas, da melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando, o visitavam, mas fitava os olhos azues da filha e bebia n’elles consolações que lhe amorteciam essas maguas.

Ás vezes, sahia de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se á beira do mar, observando os navios que passavam a distancia, absorvendo a plenos pulmões o saudavel ar maritimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os embarcadiços, e n’essas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e rejuvenescido.

Outras vezes, ia n’um bote pelo amenissimo rio Lessa acima, e n’essas excursões levava quasi sempre a sua querida Luiza, e quasi sempre n’esses passeios em que elle contava á filha as peripecias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço de vinte annos, elegante e galhardo que o comprimentava respeitosamente.

Á terceira vez que aquelle encontro se deu, o velho disse á filha:

— Não sei se conheço aquelle moço? É o filho unico de um meu antigo companheiro. O pae está rico, está. Eu tambem por aquelle preço podia estar como elle ou melhor. Que se elle tem muito de seu, a mim m’o deve. Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pae d’esse rapaz, que afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes á Africa, deixa a vida do mar e foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazens de Vallongo... Ser rico á custa de tantas lagrimas não era para o filho de meu pae...

E aqui entrava o capitão a contar a Luiza cousas da sua mocidade, e absorvido n’essas recordações não reparava que a filha seguia com a vista anciosa o barco em que ia o herdeiro do millionario Gouvêa.

Luiza amava, e amava com o primeiro e grande affecto de quinze annos.

Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantissimos segredos: embriagada por aquelle amor, deixava-se ir deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abysmo em que se lhe afundasse a honra e a vida.

Nunca tinha fallado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavallo pela rua em que morava, ora no rio quando o pae a levava aos costumados passeios.

Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas ellas respondêra, menos á ultima cujo conteudo a trazia surpreza, enlevada, vibrante...

O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que n’ella se fazia.

O velho capitão n’essa noite pedira á filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosissima, e dando com a voz um relevo maravilhoso á narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena beatitude de um goso indefinido. De vez em quando, accordava d’aquella deliciosa somnolencia e emendava as incoherencias e os enganos do escriptor.

— Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-m’o a mim, que passei por esse ponto mais de trinta vezes...

Ás dez horas serviu-se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luiza acompanhou o pae até ao limiar do quarto.

— Deus te abençôe, minha filha, disse o velho ao despedir-se, e beijou Luiza na testa.

— Hoje tenho pouco somno, papá, fico ainda a lêr um bocadito na sala, se o papá quizer alguma cousa chame-me, sim? Vou acabar de lêr este livro, acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!

— Filho de peixe sabe nadar, volveu o capitão sorrindo com o divino sorriso dos paes, que se crêem unicos senhores dos affectos dos filhos.

Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar continuo, frenetico e raivoso da Cigana.

O capitão gritou da cama:

— O que é aquillo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai socegal-a, se não tens somno, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me á fructa. É o que é. Deixal-os lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana fazer alguma das suas... Ora vae, anda, tem paciencia... Eu não vou porque me sinto fatigado e exquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, socega...

Luiza desceu ao pateo.

Abriu com mão tremula a cancella e encostou-se vacillante, agitada e convulsa ao muro. O ladrar da cadella cessára. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a latada, um vulto cosia-se com a parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para socegar a douda violencia do coração que parecia suffocal-a; quiz fallar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, molle, sem forças...

De repente sahiu das sombras das arvores a Cigana, que se arrastou para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com difficuldade a cauda, com a parte posterior do corpo quasi paralytica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...

N’aquelle olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma supplica.

Cigana! exclamou Luiza.

Ouvindo aquella voz, a cadella, que se sustentava difficilmente nas patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ancia afflictiva, convulsionando-se-lhe o corpo n’um estremecimento instantaneo, soltou um gemido rouco, escabujou violentamente, e cahiu morta aos pés da filha do capitão.

— A sua Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa, disse o vulto que se escondia sob a latada.

— Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? perguntou reprehensivamente Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.

— Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava asseiado a estas horas! O demonio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe soube como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça piégas...

Luiza interrompeu bruscamente aquellas palavras tolissimas, e endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lagrimas:

— Saia, saia depressa; se não quer que meu pae o venha aqui matar sem ser tão cobardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.

E emquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa creatura abraçava a Cigana, e chorava como sómente uma vez em vida chorára, quando lhe levaram para fóra de casa o corpo de sua mãe.

Cigana, minha pobre Cigana! repetia Luiza, fui eu que te matei!

Ao outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:

— Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a ninguem, e pagaram-me d’esta fórma!...

E o velho, para não chorar tambem, fingia que não reparava nas lagrimas que rolavam como perolas pelo rosto descolorido e pallido da filha.