Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/O tio Sebastião

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O TIO SEBASTIÃO


I

Não havia cousa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhito que conheci em uma aldeia perto de Braga, do que fallarem-lhe no filho que estudava em Coimbra.

Sorriam-se-lhe os olhos, e um contentamento intraduzivel espelhava-se-lhe no rosto.

Quando lhe elogiavam o caracter, o talento, a bondade e a applicação do rapaz, elle fingia que não acreditava, dizia que não era tanto assim... e repetia:

— Favores, meu amigo, favores...

Mas lá no intimo agradecia aquillo tudo, e tinha vontade de apertar nos braços a pessoa que fallava com tamanho louvor do filho estremecido.

Quando elle descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz, outro estudante.

— Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas disse-me o prior, e olhe que o prior não é tôlo nenhum, pois disse-me o prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de Braga, que lh’o tinham dito os proprios mestres. Aquillo tem uma memoria! E então lêr! Ás vezes estava horas e horas a ouvil-o, fazia gôsto. O talho da lettra já foi melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos os doutores tinham má lettra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se... Quer você vêr uma d’essas cartas?...

Toda a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o lisongear, ao encontral-o, lhe não perguntasse pelo filho.

— Obrigado, vae bom! e com um sorriso doce, enternecido e caridoso envolvia o da pergunta.

O tempo das ferias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem filhós, e se conversa animadamente em volta da lareira, era anciosa e impacientemente esperado pelo velho; todas as noutes ia ao reportorio, que tinha á cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que findára, dizia jubiloso:

— É de menos um!

Na vespera da chegada do filho, era uma azafama, um revolver as velhas arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoezas, e um andar tudo n’uma poeira n’aquella casa.

— Esta cama não tem roupa bastante, Joanna, dizia para a creada; vá buscar mais um cobertor!

E alisava a colcha, endireitando a fronha da travesseirinha, e repetindo:

— O estudante é muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!

Ia á cosinha, era preciso comprar isto e mais aquillo. Examinava os armarios, passava revista aos frascos das compotas, e punha de banda as garrafas de vinho antigo.

— Não que elle gosta do que é bom!

Na rua não esperava que lhe perguntassem pelo filho:

— Chega ámanhã, chega ámanhã!

As ancias eram no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as mãos, rutilante de prazer. Todo o pobre que passava tinha uma esmola, todo o transeunte um cumprimento benevolo e affavel. Os visinhos exploravam aquelle grandissimo e sagrado affecto.

— Com que então é hoje, hein?

— É verdade, pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não succeda alguma no caminho. Isto de rapazes...

— Ha rapazes e rapazes. O seu é uma joia...

— Sim, sim, mas ha más companhias...

— Qual! E então o juizo e o talento para que servem? Eu tenho ido com elle algumas vezes a Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino se dá. É tudo gente da melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a sabedoria do seu estudante, todos...

— E eu que o diga, affirmava outro.

— Então porque não entram? Vejam se apanham um catharral! Está muito frio. Ó Joanna, traze duas malgas d’aquelle vinho que sabes, e não te esqueças de trazer uma talhada de presunto. Vão beber pinga de substancia! Este é do tal que faz peito, hê, hê, hê!

— Com que então — diziam os biltres — á saude do sr. doutor!

— Que Deus fará! Tornava o bom do lavrador, com as lagrimas nos olhos. Mas eu não tenho malga, traze-me tambem uma, que quero beber á saude aqui dos amigos.

E bebia de um trago, valentemente, com alma.

O estudante ás vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha amigos e condiscipulos antigos, e ficava mais um dia. De fórma que o velho esperava, e ia deitar-se cheio de cuidados; não pregava olho toda a noute.

A Joanna, que bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e suspirar, erguia-se, e perguntava-lhe:

— Tem alguma cousa, sô Sebastião?

— Que é? O estudante chegou? Já me levanto, traze-me a candeia!

E era preciso que a velha lhe explicasse tudo, e que o emballasse carinhosamente com aquellas doces palavras com que as mães adormecem os filhos rabugentos.

O tio Sebastião, quando casou, tinha cincoenta annos, uns cincoenta annos limpos e rijos como não ha ahi muitos trinta.

Emquanto a mãe foi viva, não lhe quiz dar nóra.

— Nada! dizia ás pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! Que lucro eu com isso? A velhinha podia não se dar com o genio da mulher que eu trouxesse para casa e isso era o inferno para mim. Quem manda n’aquella casa é minha mãe, e ha-de mandar em quanto fôr viva. Ella ralha, ella grita, ella dá por paus e por pedras, por dá cá aquella palha. Deixal-a! Quando rabuja de mais, saio de casa, e a Joanna que a ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de acudir por uma ou por outra... Nada! boi solto lambe-se todo...

E ainda solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.

Joanna ficou senhora de tudo. Era ella que olhava pela casa, que dava ordens, a verdadeira dona da casa emfim. Aquelle novo modo de vida, porém, começou a pesar-lhe, entrou a ter saudades do antigo jugo, queria receber ordens e não dal-as; a domesticidade era para ella um habito de que não havia desacostumal-a.

— Sabe o que mais, sô Sebastião? disse ella um dia ao patrão. O tempo das rapasiadas passou. Por que não toma estado? Moças é que não faltam. É verdade que o mundo vai perdido de todo, mas ainda ha raparigas perfeitas e tementes a Deus.

— Endoudeceste, Joanna! Eu caso me lá, n’esta edade! Só se fôr comtigo...

— Lá começa elle com as tolices do costume.

Agua molle em pedra dura...

O tio Sebastião entrou um dia em casa com noiva. Era orphã de pae e mãe, era pobre, não tinha parentes a não ser um irmão que fôra para o Brazil, e de quem não havia noticias ha muito tempo; contava trinta e tantos annos, mas era madrugadôra como um gallo, direita como um vime, e valia por dous homens no amanho da vida.

Quando o tio Sebastião lhe fallou em casamento, ella fez-se vermelha como uma papoula, hesitou um momento, e atirando com a fouce com que andava a cegar fêno, lançou-se-lhe nos braços, e n’um amplexo formidavel de leôa, rompeu com isto:

— Esperava esta felicidade ha dez annos. Abrace-me, sô Sebastião, que se não fosse comsigo, não me casava senão com a cóva.

Vinha de longe o affecto d’esta mulher pelo bondoso homem.

O pae de Carlota cahiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia á porta ouviu choros e lamentações; entrou e soube que havia alli necessidade e quasi fome; a filha unica do invalido, Carlota, tinha de ficar á cabeceira do catre; as ultimas economias haviam-se extinguido pouco a pouco.

O tio Sebastião soccorreu aquella gente, mandou chamar o medico a Villa Verde, pagou os remedios da botica e por fim o enterro do infeliz.

Entre as poucas pessoas que acompanharam á egreja o modesto ataúde, ia o tio Sebastião curvado, melancolico, com o seu rosto barbeado, e cheio de bondade e lhaneza.

Carlota, que chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas á cabeça despenteada, ao vêr entrar o bemfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com palavras ociosas — arrastou-se para elle de joelhos, e agarrando-lhe nas mãos beijou-as com devota soffreguidão.

Passados tempos o tio Sebastião esquecera-se d’aquelle episodio, e nem sequer reparou que a melhor cantadeira do logar, que inquestionavelmente era a Carlota, deixava de cantar todas as vezes que elle passava por uma certa azinhaga...

Se elle volvesse o rosto veria no meio das hervas altas e humidas, ou em cima dos castanheiros folhudos e entrelaçados de pampanos, um vulto de mulher voltado para elle, a devoral-o com a vista, a seguil-o, a banhal-o na luz cariciosa de um longo olhar enamorado.

Não deu por tal o tio Sebastião; Joanna, porém, que era amiga de Carlota, adivinhou o segredo, e o resultado sabe-o o leitor.

Tres annos depois do casamento o tio Sebastião enviuvára.

Ficou-lhe um filho, uma creancinha loura e adoravel, o vivo retrato da mãe.

O lavrador concentrava no pequeno todos os affectos, amava-o até á insania.

O rapaz cresceu rodeado de caricias, de mimos e de ternos cuidados.

Não havia vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despotico a cuja voz o pae e a velha Joanna se curvavam com cega obediencia.

Ao completar seis annos, por conselho do prior, começou o pequeno a estudar as primeiras lettras com o professor régio da freguezia.

— Temos homem, dizia o prior ao velho; o rapaz vae bem, estuda e aprende com facilidade.

— Quando me lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova, parece-me que estalo de pena.

— Ó senhor prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?

Era para padre que o velho destinava o filho, sonhava todas as noutes com a sua primeira missa, via-o com as vestimentas engommadas e duras do sacerdocio, deante do altar da egreja da freguezia, no meio de nuvens de incenso, emquanto os padres cantarolavam ao som plangente e arrastado do orgão, e os sinos tangiam alegres repiques, e subiam ao ar as girandolas de foguetes impregnando de um espesso cheiro de polvora o adro enramilhetado de murtas...

Prompto nas primeiras lettras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde se matriculou no lyceu.

N’este entrementes chegou do Brazil o irmão de Carlota. Foi á aldeia natal, procurou os parentes, e soube que todos tinham fallecido, restando-lhe tão sómente um sobrinho.

O brazileiro era solteiro, e doente; não vinha millionario, mas tinha mais do que o sufficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.

— Olhe, mano, disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me encarrego do menino. O bem que desejava fazer a meus paes, que infelizmente não encontrei, hei de revertel-o em favor de meu sobrinho.

Uma condicção exijo: não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se isso fôr da sua vontade, d’elle, não me opponho, mas deixemos o tempo ao tempo. Cá a minha opinião é que elle deve estudar medicina. Os medicos ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brazil sobretudo, onde o mais réles tem carruagem. Está por isto? O rapaz quando acabar os estudos em Braga vae para Coimbra?

O tio Sebastião custou a descer d’aquelle sonho em que andára tantos annos embevecido. Mas por fim cedeu.

O brazileiro demorou-se alguns annos ainda em Portugal. A quebra, porém, de uma casa importante do Rio chamou-o ao Brazil, para onde partiu deixando ao sobrinho, que até então se havia portado com singular e exemplarissimo discernimento, ordem franca para receber tudo que lhe fosse preciso n’uma das casas mais acreditadas do Porto.

Um dos estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aquelles tempos era Sebastião Alves, a quem a convivencia com os rapazes oriundos das mais nobres familias de Portugal empavonára e envaidecêra extremamente.

No seu quarto, que elle adornára com excessivo e inaudito luxo para um estudante, reuniam-se todos os que sobresahiam em Coimbra pela fidalguia, pela força, e pela estroinice.

Sebastião entrou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era restituido, vestiam-lhe o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe ceias abundantes e regadas de vinhos caros.

Com aquella vida era incompativel o estudo e a reflexão. Deixou de ir ás aulas. Enganava o tio e o pae, enviando-lhes certidões falsas dos actos que nunca fizera.

Havia dous annos já que não ia á aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se lhe figurava mesquinho e chato.

Quando os estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os abraços da familia, Sebastião Alves deixava tambem Coimbra, percorria as praias, ia ao Porto, a Cintra, ao Bussaco.

Aquella vida inutil e varia era de quando em quando remordida pelo remorso, todas as vezes que o vadio recebia as cartas do pae, que, apesar de não terem ortographia, e de serem escriptas com uma lettra grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado amor com que elle era querido por aquelle amantissimo coração de velho.

II

 

O brazileiro voltára a Portugal. Em Santa Apolonia comprou bilhete para Coimbra, mas adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um empregado gritar: Granja!

— É o mesmo, disse comsigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao Sebastião que venha ter commigo se quer ir vêr o filho a Coimbra.

Escreveu. Se o tio Sebastião queria ir a Coimbra! N’isso pensava elle havia semanas, porque já não podia com as saudades.

— Já cá estão dous carros e uns pósinhos, dizia elle, se não fosse isto, quem ia vêr o rapaz era o filho de minha mãe...

O convite do cunhado alvoroçára-o de alegria e de desusado contentamento. Ria alto, andava radiante, cantava:

Á uma hora nasci,
Ás duas fui baptisado,
Ás tres andava de amores,
Ás quatro estava casado.

— Queres tu vir d’ahi, Joanna? dizia elle para a creada que lhe arranjava a mala.

É verdade, ó Joanna, não te lembras assim de uma cousa que o estudante goste? Uma cousa bonita...

A creada que era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, pêras de calda...

— Upa! cousa melhor...

— Quer saber? disse a velha, com os olhos accesos de quem achou um thesouro, e a mim que me não lembrou logo! Eu cá se fosse o sô Sebastião comprava uma medalha de ouro como a que o sr. Morgado traz no cordão do relogio; mettia-lhe dentro o retrato da fallecida, e levava isso ao menino que ha de ficar no ceu ao vêr a mãesinha que Deus lhe levou.

O tio Sebastião approvou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha sido feito em Braga, logo nos primeiros tempos do casamento. Representava Carlota vestida com uma saia de seda preta, lustrosa, cheia de vincos, com grossas arrecadas, e uns enormes grilhões no peito largo e afflante, os pés nús n’umas chinellas bicudas de verniz. Na mão direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. A esquerda descançava nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos d’essa mão pendiam para a palhinha, lanzudos, reluzentes de anneis. Nos olhos de Carlota havia o espanto de quem vê bruxaria, uma especie de pavôr disfarçado.

O lavrador pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou, nem teve saudades, estava absorvido por um sentimento superior.

— Ó Joanna, mas o retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho alma de degolar o retrato...

A creada sorriu-se.

— Pois leve o retrato e a medalha ao menino, e elle lá que o mande arranjar...

Na manhã seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia n’essa mesma tarde para Coimbra, onde chegaram de noute. O brazileiro, cheio de cansaço, adoentado, propoz que se adiasse a visita ao estudante para o outro dia. Que eram horas d’elle estar a estudar; que não era bom distrahil-o das suas obrigações. O tio Sebastião, porém, não se convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar, que não dormiria bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.

Os viajantes bateram á porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de verem as janellas abertas e a casa completamente ás escuras. Ninguem lhes respondeu.

Bateram de novo.

Uma visinha com a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e explicou que o sr. Sebastião Alves tinha ido ceiar com uns amigos a uma hospedaria da baixa.

Perguntou o brazileiro onde era essa hospedaria, e para lá se encaminhou com o ancioso companheiro, que ao vel-o meditativo resmungava como que para attenuar a extravagancia:

— Rapazes! um dia não são dias.

As ruas da alta estavam solemnemente silenciosas, os transeuntes eram raros.

Ao passarem por uma casa, cujo primeiro andar tinha as janellas abertas, viram um estudante com a cabeça encostada ás mãos, absorvido e com os olhos n’uns livros...

— Aquelle tambem é rapaz, tornou o brazileiro com gesto sentencioso, mas faz a sua obrigação. Quem vem para aqui é para estudar...

Ao subirem as escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e hurrahs freneticos e enthusiasticos; os creados açodados, vermelhos, passavam com largas travessas fumegantes...

— Desejamos saber, disse o brazileiro a um dos creados, se o sr. Sebastião Alves está aqui.

— Está, sim senhor, se lhe querem fallar, vou dar-lhe parte...

O brazileiro tirou meia corôa da bolsa de prata, e dando-a ao creado continuou:

— Não queremos perturbar o sr. Sebastião, fallar-lhe-hemos depois. O que desejamos é um quarto onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça favor de lhe não revelar que estamos aqui, é uma surpreza que queremos fazer ao estudante; e sorriu contrafeito.

O creado conduziu-os a uma sala, separada d’aquella em que os estudantes ceiavam simplesmente por uma porta.

O tio Sebastião tinha o coração aos pulos dentro do peito.

— Eu vou lá; dizia baixo com a voz tremula, quero vel-o.

O cunhado conteve-o.

— Espreite pelo buraco d’essa fechadura que já o vê.

O velho curvou-se e olhou.

— Lá está elle! lá o vejo. Está mais magro... aquillo talvez seja do estudo. Coitado! Mas que chibante que elle anda! Os outros ao pé d’elle parecem uns pobretões! Um até tem a vestea toda rota e cheia de nodoas. Aquillo que elles trazem é assim a modo de batina de padre... pois não é? Espera, ó mano! lá vae o meu filho levantar-se. Ó meu rico filho da minha alma!

Sebastião levantára-se de facto para fazer um brinde.

Tinham bebido á saude das mulheres, do amor, da gloria, do talento...

Sebastião, um tanto inflammado de repetidas libações, fez uma saude a um velho que estava sentado á meza, um pouco distanciado do grupo dos estudantes.

O brinde foi estrepitosamente victoriado.

O velho agradeceu n’estes termos:

«Muito obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferencia com que me honram, consintam que beba á saude do pae do cavalheiro que me brindou.»

O brazileiro disse:

— Tome, mano! aquillo é comsigo!

— Mas eu vou lá, vou dar um abraço n’aquelle honrado homem que se lembrou de mim...

Os estudantes ergueram os copos.

— Á saude de teu pae, clamaram.

— Que infelizmente está longe, disse commovido pelo vinho Sebastião Alves.

— Longe! qual longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia para lançar-se pelo corredor fóra, quando o brazileiro de novo o reteve.

— Espere homem! o rapaz talvez fique envergonhado se lhe apparecermos assim de repente.

— É verdade, meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por orador e que gostava de fazer estylo.

«O pae de Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de Santa Cruz n’esse paiz uberrimo, monstruoso, gigante, que se chama o Brazil, e onde os nossos recebem uma hospitalidade tão franca e tão generosa. Brindando ao pae de Sebastião, brindo aos nossos irmãos de além-mar.»

— O que diz elle? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brazil? Não é má!... e atabafava o riso.

O brazileiro comprehendeu tudo e murmurou: canalha!...

Um dos rapazes que fôra condiscipulo de Sebastião em Braga, voltando-se para este, disse:

— É verdade, ó Sebastião, aquelle velhinho que uma vez te acompanhou á mala posta, e que eu vi a chorar como uma creança na rua da Conega quando se despediu de ti, era teu avô? Muito gostei eu do velhinho. Parece que o estou a vêr a acenar-te com o lenço, correndo com as suas pernas tropegas e cansadas atraz da carroagem, a dizer: O Senhor vá na tua companhia!

Sebastião avincou o rosto, um rubor subito incendiou-lhe as faces, e partindo uma noz, respondeu:

— Esse velho era caseiro de uma quinta que meu pae comprou quando esteve ultimamente em Portugal.

O tio Sebastião voltou-se para o brazileiro. Estava livido, tinha os labios apertadamente unidos, os olhos injectados de sangue. Esteve um segundo, com os olhos fitos nos do cunhado, sem poder articular uma palavra, bamboleando a cabeça, respirando offegantemente pelas narinas palpitantes e dilatadas; depois cahiu nos braços do cunhado e prorompeu n’um soluçar dilacerante e pungitivo:

— Ingrato! ingrato!

Quando o tio Sebastião chegou á sua aldeia, vinha pallido, desfeito, parecia desenterrado.

A velha Joanna assustada perguntou-lhe:

— Que foi? que foi? E o menino?

— Morreu!