Contos em verso/Contos brasileiros/As festas

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AS FESTAS
 

Era o Alfredo casado
Com formosa mulher, nova e sadia,
Mas não a merecia:
Andava enamorado,
Como um velho babão lascivo e tolo,
De uma reles corista
Com pretenções a artista,
Que trabalhava no theatro Apollo.

Fazia versos máos o pobre diabo,
E era empregado n’um pequeno banco:
Não podia dar-se ares de nababo,
Não podia mostrar-se muito franco,
Pois o que ali ganhava
Para os gastos da casa mal chegava;
Mas o parvo suppunha
Que do Apollo a corista lhe quizesse
Não por vil interesse,
E o seu carnal desejo em versos punha,
Convencido de que ella
Com tal moeda se satisfizesse.

Escusado é dizer que elle da bella
Nada mais conseguira,
Tangendo a sua lyra,
Senão coisas vulgares,
Sorrisos ternos, languidos olhares,
Porque já não ha musa
Que ás coristas seduza...
Já lá se vae o tempo em que um soneto,
Embora não tivesse chave de ouro
No ultimo verso do ultimo quarteto,
Tinha a chave que abria,
Depois de longo e pertinaz namoro,
O duro peito da mulher mais fria.
A mísera poesia,
Por tantos explorada,
Hoje é moeda desvalorisada.

O visionario Alfredo
Vae uma noite ao theatro muito cedo
E faz chegar ás mãos da semi-artista,
Dentro de um ramilhete,
Perfumado bilhete,
Pedindo uma entrevista.
E no dia seguinte, á hora do ensaio,
Vae ter com ella e diz: — Daqui não saio,
Emquanto uma resposta não me deres,
O’ tu que és a mais linda das mulheres,
Flôr das musas do Apollo!

Abre a typa uma bolsa de velludo
Que traz a tiracolo,
Dessas em que as madamas guardam tudo:
Lencinhos, luvas, pó de arroz, bilhetes,
Pentinhos, alfinetes,
E dinheiro miudo;
Dois retalhos de seda
Tira de dentro, sorridente e prompta,
E do Alfredo aos attonitos ouvidos
Estas palavras múrmura segreda:
— Qual mais te agrada destes dois vestidos? —

Elle o melhor aponta,
— Pois vae compral-o e traze-m’o. A resposta
Terás então daquelle bilhetinho
A’ calida proposta...

Encontras a fazenda no Godinho.
Quatorze metros bastam. Adeusinho! —
E a corista fugiu que nem um raio,
Porque a estavam chamando para o ensaio.

Após ligeiro pasmo,
Perdeu o Alfredo todo o enthusiasmo,
Por ver, naquelle instante,
Que, para a amada se tornar amante,
O metro dos seus versos
Não era ainda bastante:
Ella exigia metros bem diversos:

Metros de seda cara,
Que custar deveriam...
Quanto? — os olhos da cara!
E os labios seus tremiam!
Para a ingrata o Parnazo era o armarinho,
E o Apollo era o Godinho!

Metteu, desilludido, na algibeira
Os retalhos. Sahiu. Foi para o banco,
E, inspirado, nervoso, num arranco,
Passou a mais feroz delcalçadeira
Na exigente corista em verso manco.
A’ noite, em vez de lhe mandar fazenda,
Na fórma da encommenda,
Mandou-lhe a versalhada.
Leu-a a corista e deu muita risada.
Andou de mão em mão a poesia,
E foi lida por toda a companhia.
Alfredo, esse dormiu tranquillamente,
Aliviado e contente,
Durante a noite inteira.

Foi a esposa a primeira
Que da cama se ergueu. Eu cá duvido
Haja no mundo uma mulher casada,
Embora muito honrada,
Que não reviste os bolsos ao marido,
Quando este ainda se acha recolhido...
Tinha do Alfredo a esposa taes trabalhos,
E por isso encontrou os dois retalhos.

Quando elle despertou, ella, sorrindo,
Rosto sereno, olhar sereno e lindo,
Lhe disse: — Finalmente,
Alfredo, minha vida,
Vaes dar-me de presente
Um vestido de seda! Agradecida!
Que bellas festas de principio de anno!
Não imaginas como estou contente!
Ter um vestido assim era o meu plano!
Duas amostras vêm — naturalmente
Para escolher: pois bem... esta prefiro...

Depois daquelle triste desengano,
O Alfredo enveredou no bom caminho,
E a senhora, modelo das honestas,
Teve esse anno de festas
Um vestido de seda... Mal sabia
Que a uma corista réles o devia!