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Contos em verso/Contos brasileiros/O doutor Caneja

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O DOUTOR CANEJA
 

Sabido é que esta heroica e leal cidade,
Em se tratando de literatura,
Concede fóros com facilidade.

Em qualquer outra profissão, é dura
A conquista de um nome; o literato,
Esse as muralhas n’um momento fura.

Nas letras, o mais reles candidato,
Que alguma tinta e algum papel consumma,
Fazer consegue sempre espalhafato,

E alcança a gloria muita vez, e, em summa,
A uma estatua faz jús, sem que lhe seja
Preciso produzir coisa nenhuma!

A prova temos no doutor Caneja,
Que uma reputação tomou de assalto,
Sem dar combate, sem ferir peleja.

Tu, si o visses passar, longo e pernalto,
Cheiroso Murias entre os dedos preso,
Monoculo, bengala e chapéo alto;


Magro, elegante, impertigado e teso,
Acariciando a flacida soiça,
E olhando para o mundo com desprezo;

Não commetteras, não, grande injustiça
Pondo-o no rol da frivola canalha
Que a vadiar o tempo desperdiça.

Vinha, porém, um desmentido á balha:
— Elle, um vadio? Pois nem vae á cama!
Toda a noite, a escrever e a ler, trabalha! —

E ora ahi tens, bom leitor, a erronea fama
Que voava por toda esta cidade,
Cujo vulgacho vil nescios acclama.

A metade de um seculo de edade
Contava, ou mais; formára-se em direito,
Nunca se soube por que faculdade,

E, por falta de intelligencia ou geito,
Jámais se utilisou, que não convinha,
De um diploma platoníco e suspeito;

Como no cofre alguma coisa tinha,
Vivendo foi sem se occupar de nada,
Mas com muita decencia se mantinha.

Trajava roupa á moda e bem talhada,
Frequentava jornaes e jornalistas,
Trazia sempre a bolsa escancarada.


Arvorando-se em protector de artistas,
Creou reputação de ter, em arte,
Uma largueza singular de vistas.

A miudo apparecia em toda a parte
Onde se achassem jovens escriptores,
Desfraldando das letras o estandarte.

Era muito feliz nos seus amores;
Uma senhora joven, rica e bella,
Dispensou-lhe reconditos favores.

Diziam todos que a gentil donzella
Fôra rendida só pelo talento
Do sabio, que afinal casou com ella.

Transformaram a casa n’um momento
Em cenaculo artistico e pedante,
Onde a literatura achava alento.

Mas o nosso doutor, de então em deante,
Se tornou mudo, nada mais dizia;
Limitava-se a ouvir, e, se, um instante,

Os seus discretos labios entreabria,
O seu bello sorriso, esquivo e raro,
Um artigo de critica valia.

Isso de se mostrar da lingua avaro,
Para logo lhe deu credito fundo
De ser sisudo e de ter muito faro.


— Mas por que esse philosopho profundo
Não publica o que escreve? — requeriam
Na roda illustre do meditabundo.

E sobre tal assumpto quando o arguiam,
— Não vale a pena —, murmuravam labios
Que lentamente e a custo se moviam.

— Eis o orgulho, dizia-se, dos sabios!
Por ignorante e nescio quer que o tomem,
E deixa-se ficar nos alfarrabios!

Mas, quando fallecer este grande homem,
Publicadas serão todas as obras
Que na sua modestia hoje se sommem... —

Elle fazia crer — com que manobras! —
Que guardava uma producção immensa
Da magra pasta entre as vazias dobras.

De vez em quando annunciava a imprensa
Ter Caneja entre mãos Minhas leituras,
Livro de erudição profunda e densa;

Mas das suas publicações... futuras,
A mais falada era um brilhante — Estudo
Comparativo das Literaturas.

Romances, versos, theatro, historia, — tudo
O inedito famoso produzia,
Continuando cada vez mais mudo...


A esposa, a esposa só, não se illudia;
Nunca vira o marido escrever nada
Desde que entrou na sua companhia;

Era, porém, discreta e delicada,
E não falava, nem por indirectas,
De um facto que a trazia envergonhada.

Entre os seus prosadores e poetas,
Envelhecendo foi o grão Caneja,
Impune sempre de tamanhas petas.

Agora já falava, mas a inveja
Contra quem qualquer coisa ao prélo dava,
Irritava-lhe a bilis malfazeja.

Nem uma phrase de louvor soltava,
Mas o doesto, a facecia repugnante
Que o caracter, o espirito deprava.

N’um tom de voz bradava altisonante
Que José de Alencar era incorrecto,
Que Machado de Assis era massante.

Emfim, quando esse quasi analphabeto,
Morto, mettido foi na cova fria,
Inda a viuva lhe deu provas de affecto:

A toda aquella gente que pedia
Noticia dos papeis do fallecido,
Entre sentidas lagrimas dizia:


— Era um sabio modesto meu marido:
Tudo quanto escreveu queimou, e juro
Que disso não morreu arrependido... —

— Embora! responderam-lhe. O futuro
Honral-o deve, e o povo fluminense
Talvez que ainda o ponha em bronze duro! —

Caneja, o grande, aos posteros pertence!
Em cada peito um pedestal encontra!
E o povinho, afinal, não se convence
De que elle era uma besta e era um bilontra.