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Contos em verso/Contos brasileiros/Dona Engracia

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DONA ENGRACIA
 

Dona Engracia fizera cincoenta annos,
Mas a todos dizia
(Como si algo valessem taes enganos)
Que trinta e seis não mais completaria
A vinte e seis de abril. Toda a cidade,
Que estes casos malevola commenta,
Dizia á puridade
Que nem a páo a misera senhora
Queria entrar na casa dos quarenta.

Era viuva. Outr’ora
Junta ao esposo brilhára,
Mas nesse tempo tinha melhor cara,
Não pintava o cabello,
A sua dentadura era um modelo,
E o seu rosto não tinha
Tantos pés de gallinha.

Fôra o marido um homem de juizo,
Mas deixou-lhe, ao baixar á terra fria,
Apenas o preciso
Para viver com muita economia.

Dona Engracia era só! Nem um parente
No mundo conhecia.
Tinha tido um irmão, antigamente,
Praticando não sei que falcatruas,
Fugira para a America do Norte,
E nunca mais dera noticias suas,
Nem soube a irmã qual fôra a sua sorte.

O isolamento a certas almas serve:
Edifica, avigora, fortalece;
Faz com que o coração a flôr conserve
Da mocidade que desapparece;
A outras almas não serve: um’alma fraca
Co’a triste solidão não se conforma;
Soffre uma agitação que nada applaca
Nem suavisa, e logo se transforma.

Dona Engracia queria
Outro marido achar, e esta mania,
A mais perniciosa
Que póde entrar n’uma cabeça edosa,
Cobriu-a de ridiculo, coitada!

A principio mostrou-se apaixonada
Pelo primeiro poeta da cidade,
Que dos seus annos tinha só metade;
Mas o mancebo, frio e desdenhoso,
Riu-se daquelle amor de velha tonta,
E um soneto lhe fez tremendo e iroso,
Que andou de mão em mão, de ponta a ponta.

Vendo que o poeta não correspondia
A’quelle fogo, áquella pertinancia,
Apaixonou-se a pobre dona Engracia
Por um tenente de cavallaria.
Foi uma troça no quartel! Tamanha,
Que o tenente, irritado,
Quiz ser do batalhão desaggregado,
E outra terra buscar, embora estranha.

Mas dona Engracia não desanimava;
Por feril-a, Cupido,
Todas as settas empregou da aljava...
Ella, entretanto, não achou marido.

Desenganada, emfim, pelos rapazes,
Atirou-se aos velhotes
Que seriam, pensava, mais capazes
De apreciar os seus dotes.

Um conselheiro austero,
Juiz aposentado,
Foi até obrigado
A tratal-a de um modo bem severo.

Afinal, dona Engracia,
Dos seus esforços vendo a inefficacia,
Resolveu entregar-se ao isolamento,
E nunca mais pensou em casamento.

Alguns mezes, porém, depois, retumba
Como uma bomba, — bumba!
A noticia da morte

Do irmão da velha que esquecido estava
Na America do Norte
E dois milhões de dollars lhe deixava!

Ninguem calcula da noticia o effeito!
Que scenas de theatro!
Não tinha dona Engracia um só defeito!
Ella até augmentava a edade: tinha
Trinta e dois annos; augmentava quatro
Não havia no mundo outra viuvinha
Que os seus encantos naturaes tivesse!

Ah! si o poeta pudesse
Negar haver o escripto
O soneto maldito!
Como se arrependia
O tal tenente de cavallaria!
O proprio conselheiro,
Vendo tanto dinheiro,
As orelhas torceu! — E a millionaria,
Examinado os offerecimentos,
Poderia, co’a calma necessaria,
Um marido escolher entre duzentos.

Não escolheu nenhum. Lição tão crua
Aproveitou-lhe. Percorreu a Europa.
Voltando á patria, fez-se philantropa.
E os pobres, felizmente,
Tambem gozaram da riqueza sua,
Que as lagrimas seccou a muita gente.