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Contos em verso/Contos brasileiros/A toalha de crivo

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A TOALHA DE CRIVO
 
I
 

Fica entre alegres collinas
E matizados verdores
A freguezia das Dores
No fim dos sertões de Minas.

Muitos annos são passados
Que essa obscura freguezia
Duzentos fogos teria,
Muito por alto contados.

Gente que mais se accommode
Nunca se viu n’outra villa:
Agital-a e desunil-a
Nem a politica póde.

Como se dar o contrario?
A população devota
N’um candidato não vota
Sem consultar o vigario.

Aos domingos (nenhum critico
Ha que isso ao parocho improve),
Depois da missa das nove
Ha sempre sermão politico.

Por isso, cada habitante
E’ do partido do padre,
E este, embora o mundo ladre,
E’ sempre do dominante!

E graças a tão profundo
Systema é que a freguezia
’Stá de perfeita harmonia
Com Deus e com todo o mundo.

Da policia o delegado,
Envelhecido co’a vara,
De vez em quando prepara
Lá um ou outro attestado,

E a essa formalidade,
Cavaco do honrado officio,
Reduz-se todo o exercicio
De uma longa autoridade.

Porém o que, sobretudo,
Dos outros povos distingue
Povo tão pouco belingue,
E’ crer em tudo e, por tudo.

Que diga o parocho velho
Embora diga tolice.
E’ como se a villa ouvisse
Falar o proprio Evangelho!

II
 

O interessante motivo
Ides saber, meus leitores,
Porque a Senhora das Dores
Teve uma toalha de crivo.

Ha seis mezes que era morto
Um moço da freguezia,
Deixando a pobre Maria
Viuva, prenhe e sem conforto.

Entre nuvens de alfazema
Teve Maria uma filha,
Melindrosa redondilha
Que promettia um poema.

Mas do mal de sete dias
Fica doente a pequerrucha...
Maternas tetas não chucha;
Descem-lhe as palpebras frias.

A indefectivel parteira
Incontinente chamaram:
— Quebranto que lhe botaram!
Diz a velha mezinheira.

A mãe, debulhada em pranto,
Roga a Deus que ao anjo accuda,

E a parteira pede arruda
Para tirar o quebranto.

Asneiras não eram ditas,
Entra na casa um sujeito,
Homem grave e de respeito,
Que tem maneiras bonitas.

E’ um medico da roça,
Esculapio de encommenda,
Que, de fazenda em fazenda,
Obituarios engrossa.

A’ vontade dos freguezes
O infatigavel charlata,
E’ alopatha, é homœpathia,
E é dozimetrico ás vezes.

Passei aqui por accaso...
Deixem-me ver a menina,
Diz elle. E’ tão pequenina!
Parece grave este caso.

De despeitada, a parteira
Os labios, sorrindo, ajusta,
Mal sabendo quanto é justa
Essa curva zombeteira.

Ausculta o doutor; discorre,
E, emfim, prepara a botica...
Mas a criança immovel fica;
Abre os olhindos... e morre.

A mãe, coitada! não sabe
Que está morta a pequenita...
Dizem-lh’ o; não acredita
Que o seu lindo sonho acabe,

E grita com voz sonora:
— Se me dás este anjo vivo,
Tens uma toalha de crivo,
O’ minha Nossa Senhora!

 

III

Enche-se a casa de gente.
Visitas e mais visitas.
Caras as mais esquisitas
Entram animadamente.

Fazem berreiro as mulheres.
Só não chora uma visinha
Velha, velha, bem velhinha
Dizendo á mãe: — Que mais queres?

E és bem feliz, minha rica!
E’ uma felicidade
Quando ellas vae nessa edade
E aqui no mundo não fica!

Oh, creatura serodia,
Que a Morte esqueceu no mundo,
Tens, do espirito no fundo,
Mais egoismo que prosodia!

Maria tambem não chora
E a todo o instante começa
A repetir a promessa
Que fez a Nossa Senhora.

Uma sinhá caridosa
O mimoso anjinho beija
E deita-o n’uma bandeja
Cheia de folhas de rosa.

A bandeja é collocada
Depois no centro da meza,
E vem uma véla accesa,
Pelo vigario mandada.

Hirto, branco, ensanguentado,
Com o seu resplendor de prata
Os corações arrebata
Um Christo crucificado.

E da viuva o olhar fixo
A todos estar parece
Acompanhando uma prece,
Cravado no crucifixo.

Mas de repente expectora:
— Se vejo este anjinho vivo,
Tem uma toalha de crivo
Tua Mãe, nossa Senhora!

IV
 

Eis que chega a hora do enterro,
Já está mettido o corpinho
Num pobre caixão de pinho
Com quatro argolas de ferro.

Com ar de muito criterio,
Todas de vestidos brancos,
Quatro meninas, aos trancos,
Conduzem-no ao cemiterio.

Na frente o nedio vigario
Os passarinhos espanta
Pelo vigor com que canta
O latim do seu breviario.

Quando o caixão, entretanto,
Os umbraes transpõe da porta,
Maria tudo supporta
Sem desperdicio de pranto,

E mais uma vez implora:
— Se me dás este anjo vívo,
Teus uma toalha de crivo,
O’ minha Nossa Senhora!

V
 

Lá vae um anno, leitores.
Na matriz branca, e modesta,
Realisa-se a grande festa
Da Santa Virgem das Dores.

De petalas recamada,
Por baixo da Eucharistia,
Vê-se a toalha de Maria,
Rija de tão engommada.

Não chega p’r’as encommendas
O parocho attencioso,
Que a todos mostra, garboso,
O trabalhado das rendas.

Bimbalha o sino festivo.
Com um olhar doce e magoado,
A Virgem, do altar doirado,
Envolve a toalha de crivo.

Entra na egreja a viuvinha,
E vem com ella a parteira,
Que traz, muito prazenteira,
Ao collo uma criancinha.

Ao seu encontro, apressado,
Vae o padre sorridente.

Enche-se a egreja de gente,
Celebra-se o baptisado.

Toma o caminho da porta
O povo, mas o vigario
O silencio do sanctuario
Com estas palavras corta:

— Meus filhos, Nossa Senhora
Olhou uma maravilha
Dando a Maria essa filha
Que baptisei ainda agora.

A criança resuscitada
E’ — mysterioso arcano! —
A mesma que, faz um anno,
Morreu e foi sepultada!

A Virgem disse-lhe um dia:
«Este milagre proclama
Por salvar a boa fama
Da boa e pura Maria.»

Fique, portanto, inteirado
O povo, que esta menina
Foi, por vontade divina,
Concebida sem peccado!

E porque de peçonhentos
Mais tarde não seja victima,
Vou como filha legitima
Pol-a nos assentamentos.

VI
 

Contra o caso extraordinario
Protestar ninguem lá ousa,
Pois a verdade da coisa
Só sabe a mão... e o vigario.

E ahi está contado o motivo,
Ahi está, meus caros leitores,
Porque a senhora das Dores,
Teve uma toalha de crivo.