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Contos em verso/Contos brasileiros/O Sá

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O SA
 
I

Fôra um bohemio outr’ora,
E, para attenuar o seu passado
Vadio e dissoluto,
Costumava a dizer: — O meu tributo
Paguei — Era outro agora:
Tranquillo e socegado,
Muito bem comportado,
Tal qual Pero Botelho
Que se faz ermitão depois de velho,
Ou como certas cortezans que, ao cabo
De uma vida de gozos e loucuras,
Julgando assim ficar menos impuras,
Votam a Deus o que não quiz o diabo.

Elle, entretanto, ainda não era edoso;
Da Montanha da vida não chegára
Ao cume pavoroso:
Cincoenta annos não tinha, e — coisa rara! —
Não obstante a existencia que levára,

Estava já grizalho, mas não tinha
Esses pés de gallinha
A que no mundo pouca gente escapa,
E que o aspecto dão a nossa cara
De castanha ou de mappa.
E’ que a pelle, que estica,
Livre de sulcos mais ou menos fica,
E o Sá (era esse o nome
Do heróe dessa novella)
Si havia sido em moço um magricela
E padecido fome,
Teve, afinal, socego
Quando, volvidos os quarenta annos,
Num succulento emprego.
Fez boas digestões, dormiu bons somnos,
E entrou, como entra um passaro, na muda.
Tanto corpo deitou, engordou tanto,
Que era um Deus-nos-acuda,
E até causava a toda a gente espanto.
Os amigos de outr’ora
Não n’o reconheciam,
Quando sereno por acaso o viam
Medindo os passos pela rua afóra,
Respirando virtude
E vendendo saude.

No emtanto, que passado!
Que existencia infeliz de aventureiro!
Actor, continuo, sacristão, soldado,
Negociante, jogador, fixeiro,

Grande «planista» de primeira classe,
Tudo o Sá tinha sido;
Não houve profissão que não tentasse,
Sem haver em nenhuma se mantido.
Afinal — tudo cança! — encontrou rumo,
E assentou no logar, que lhe foi dado,
De fiscal do consummo,
Graças a um deputado,
Seu companheiro antigo,
Que por milagre inda era seu amigo.

N’uma província aonde o levára a sorte,
Já não sei si do sul ou si do norte,
O Sá gostára de uma pequerrucha
Que, apezar de gorducha,
Não deixava de ter seus attractivos.
Olhos travessos, petulantes, vivos,
E magnificos dentes.
— Não são precisos mais ingredientes
Para alimento de uma paixãosinha,
E esses a nossa provinciana os tinha.

Ella perdera ambos os paes; morava
Em casa da madrinha
Que com olhos de mãe a vigiava,
— Tanto que Sá tentou, como um demonio,
Possuir a pequena
Sem a preliminar do matrimonio
Que, a dar-lhe ouvidos, não valia a pena;
Mas a madrinha, vigilante hyena,

Pondo a cidade inteira em alvoroço,
Cortou-lhe o máo intento,
E, como estava apaixonado, o moço
Teve que sujeitar-se ao casamento.

Mas na manhã seguinte,
Por negregado accinte
O Sá (que a tudo um barbaro se afoita)
Da cidade abalou sem dizer nada,
Abandonando a esposa de uma noite,
Casada e não casada!
Nunca se soube ao certo
Si elle achou descoberto
Aquillo que suppunha inexplorado,
Ou si foi simplesmente
Um injusto, um malvado.

Que n’uma forca não padeceria
Castigo sufficiente.
O caso é que daquelle
Dia em diante — angustioso dia,
Cuja lembrança os nervos arrepela! —
Ella não teve mais noticias delle,
Nem elle as teve della.

II

Da janella do quarto em que morava
Entre nuvens de fumo
Que n’um cachimbo sordido aspirava,

O fiscal do consummo
Namoriscava uma mulher magrinha,
Que nas lides caseiras avistava
No interior da cosinha
De um sobrado do qual só via os fundos.
Não sei porque, a visinha,
Entre panellas, caldeirões immundos,
Tachos e caçarolas,
Impressionou-o a ponto
De o fazer dar ás solas,
Tonto, ainda mais tonto
Que quando requestava a moça imbele
Que se casou com elle.

A visinha sorria
Aos gatimanhos que lhe o Sá fazia,
E não tardou que uma correspondencia
Epistolar houvesse...
Desimpedida a misera não era:
«Deus a livrasse que o doutor soubesse...
Tinha ciume de fera!
Entretanto, a explorava,
Tornando-a, coitadinha,
N’uma especie de escrava
Mettida na cosinha.»
O Sá pensou, com certo fundamento,
Que, na impossibilidade
De recorrer a novo casamento
Pois não sabia, na realidade,
Qual era o seu estado,

Se viuvo ou casado,
Precisava arranjar, da sua edade,
Uma mulher solteira
Que quizesse ser sua companheira;
Escreveu á visinha cosinheira
E na carta lhe disse
Que de casa sahisse
E fosse procural-o,
Pois lhe daria muito mais regalo.
Ella, que estava farta
Do tal doutor, mal recebeu a carta,
Por aqui é o caminho:
Logo trocou de ninho!

O Sá ficou pasmado e boquiaberto,
Vendo agora, de perto,
Que era a boa visinha
Sua mulher que emagrecido tinha,
— E ao mesmo tempo ella reconhecia
Naquelle novo amante
O esposo magro que engordado havia!
Que scena interessante!
Ella contou a sua historia triste,
E elle, o cynico, achou-lhe certo chiste!

Repellida dos seus, da sua terra,
Onde esteve na berra,
De mão em mão andára,
Até que a sorte avara
Deu com ella no Rio de Janeiro.

E aqui, depois de ser do mundo inteiro,
Cahiu nas mãos do tal doutor mesquinho,
E agora, loucamente,
A’s seducções cedendo de um visinho,
Vinha neste encontrar — fado inclemente! —
O marido que outr’ora
De maniera tão vil se fôra embora!

III

Individuos na terra os ha capazes
Das mais feias e estranhas aventuras;
As duas creaturas
Celebraram as pazes,
E o Sá, que no impudor não tem segundo,
Deu este exemplo ao mundo
De um cidadão casado,
Co’a legitima esposa amasiado.