Contos em verso/Contos cariocas/Desejo de ser mãe
A minha escura e rancorosa estrella
Levou-me um dia, para meu tormento,
A certo baile do Cassino. Vel-a
E adoral-a foi obra de um momento.
Achei, depois, um optimo pretexto
Para o paterno humbral transpôr um dia;
Mas o pae da pequena — um velho honesto —
Manifestou-me pouca sympathia.
Pois á terceira vez em que, apressado,
Lhe galguei as escadas infinitas,
Mandou dizer que estava incommodado
E não podia receber visitas.
Vendo que assim me era negada a porta,
Surgiu a minha bella n’um postigo,
E docemente murmurou: — Que importa?
Amo-te muito, e hei de casar comtigo! —
D’ahi por diante o nosso amor vingou-se
Em numerosos e arriscados lances,
E a fantasia prodiga nos trouxe
Materia para innumeros romances.
Ouvindo-lhe as promessas mais ardentes,
Eu viajava por ignotos mundos
Durante as entrevistas innocentes
Que ella me dava no portão dos fundos.
Os passarinhos, nessas entrevistas,
Bregeiros, saltitantes, indiscretos,
Repetiam, sonisonos coristas,
O estribilho gentil dos nossos duetos.
Porém um dia um molecote, astuto
Mensageiro das nossas garatujas,
Os passarinhos transformou — que bruto! —
N’uma alcateia de horridas corujas!
Deixou que o velho e honrado pae, sentindo
De occulta carta accusador perfume,
Interceptasse este bilhete lindo:
«Hoje, no sitio e ás horas do costume.»
Houve-pudéra! — enorme barafunda!
A moça teve uns oito faniquitos,
O moleque apanhou tremenda tunda,
E ambos soltaram pavorosos gritos.
Vieram visinhos, medicos, urbanos...!
Encheu a casa estranho borborinho!
O moleque infeliz foi posto em panmos
De agua e sal por benevolo visinho.
A minha namorada, semi-nua,
Rolava aos uivos pelo chão da sala;
A entremettida commissão da rua
Não tinha forças para segural-a!
O velho, irado, pallido, fremente,
Expectorava a maldição paterna,
Emquanto a filha, inconscientemente,
Mostrava a todos uma e outra perna!
Quando soube de caso tão nefasto,
Tive um abalo que exprimir não posso!
O meu affecto era um affecto casto...
Notem que digo «o meu», não digo «o nosso».
Ella, os meus sonhos, ella, o meu fadario,
Para o resgate da paterna bençam
Outro noivo aceitou. Do commentario
Dispensam-me os leitores, — não dispensam?
Demais a mais a coisa é corriqueira,
Pois muitas vezes apparece ao anno
O typo da donzella brasileira
Que ama Fulano e casa com Beltrano...
O noivo era hediondo... Eu sou suspeito,
E receio, confesso, que os leitores
Imagine que falo por despeito
Do odioso ladrão dos meus amores.
Embora! — o noivo era hediondo e tolo;
Gastronomo, pansudo e já grisalho,
Não valia (e foi esse o meu consolo)
Quanto eu valia e mesmo quanto valho.
Tinha dinheiro, muito bom dinheiro;
Casas no campo, casas na cidade;
Mas o rifão lá diz — e é verdadeiro —
Que o dinheiro não faz a f’licidade.
Eu não trocára por um palacete
A leda estancia aberta á luz do dia,
O risonho e garrido gabinete
Onde os meus versos lyricos fazia!
Não dava pela rutila commenda,
Que o indigno rival trazia ao peito,
A flôr que um dia — melindrosa prenda! —
No frak ella me poz com tanto geito!
O casamento fez-se quatro mezes
Depois da horrenda scena já descripta.
Festas assim succedem poucas vezes!
Nunca vi uma boda tão bonita!
Ricos tecidos, preciosas rendas,
Custosas sedas e fardões bordados,
E joias, e arrebiques, e commendas!...
Não cabiam na egreja os convidados!
Para a mim proprio dar um grande exemplo,
Contive n’alma a exaltação do pranto,
Furtivamente penetrei no templo,
E ás cerimonias assisti, de um canto,
A noiva tinha a pallidez da cêra;
Brilhavam pouco os olhos seus profundos;
Mas tão formosa não me parecera
Nas entrevistas do portão dos fundos.
Quando as-vozes ouvi do orgam, plangentes,
Que coragem, meu Deus! me foi precisa!
Lagrimas puras, lagrimas ardentes
Rolavam-me no peito da camisa!
Ella tambem chorava. Uma cascata
Lhe borbotava sobre a face bella...
Ai! com toda a certeza aquella ingrata
Pensava em mim como eu pensava nella.
Sahiram todos. Fiquei só na egreja,
E de joelhos me puz, cobrindo o rosto,
Cheio de ciumes, livido de inveja,
E embrutecido pelo meu desgosto.
Não resava: sonhava, e em sonhos via
A minha pobre namorada morta...
Só dei por mim quando da sacristia
Gritaram: — Saia! vae fechar-se a porta! —
Passado um anno, vi-a em Botafogo,
N’um baile, em casa do barão *** seus olhos
Negros, brilhantes, dardejavam fogo,
E promessas faziam sem refolhos.
Tinha nos labios um sorriso franco,
Tão diverso daquelle de menina,
E o collo, arfando, entumecido, branco,
Estremecia como gelatina.
Sorriu ao ver-me; eu não sorri; curvado,
Tive apenas um gesto de cabeça;
Ella, porém, correu para o meu lado,
Inconsequente, gárrula, travessa.
— O seu braço? me disse. Dei-lhe o braço,
E começámos a passear nas salas.
Eu dizia commigo a cada passo:
— Não ha que ver: estou mettido em talas!
Ali mesmo jurou que ainda me amava
Como sempre me amára: ardentemente;
Que en tinha nella uma senhora escrava,
Terna, submissa, amante e reverente!
Tentei ser forte... Um santo que resista
Aquelles olhos negros e profundos!...
E... não faltei á calida entrevista
Que ella me deu... não no portão dos fundos.
Duas vezes, tres vezes por semana,
Eu, venturoso, achava-me ao seu lado!
Oh! se eu tivesse a musa ovidiana,
Cantára o nosso indomito peccado!
Mas tudo acaba! — percebi que o tedio
Seu pervertido espírito invadira...
Saudoso, vi perdido, e sem remedio,
O seu amor, estupida mentira.
Alguem o meu logar tomou; depressa
Outro, e mais outro... E tarda o derradeiro!
Do vicío a velha machina não cessa...
Já lá se vae o decimo primeiro!
E cada vez mais bella entre as mais bellas
A minha pobre namorada estava!
Era um anjo... sem azas, mas, sem ellas,
De coração em coração voava!
Tres mezes antes de morrer-lhe o esposo,
Poís que ella enviuvou, a desgraçada
Foi mãe. Tanto bastou — caso curioso! —
Para que o mundo a visse transformada:
Nunca mais teve amantes! Entretanto,
Mais bella estava do que nunca o fôra!
A toda a gente o facto fez espanto...
Se era viuva, rica e tentadora!
Mas não! vivia apenas para o filho,
Filho suspeito de um papá incerto.
Da virtude afinal entrou no trilho,
E agora presumia-se a coberto
De qualquer tentação. Mais de um sujeito
A mão de esposo lhe off’receu, a ella,
Co’um sorriso magoado e contrafeito,
Respondia que não, formosa e bella.
No filho a sua vida se cifrava...
Ella mesma o banhava, ella o vestia,
E só chorava se o bêbê chorava,
E só sorria se o bêbê sorria!
Um dia encontro-a só e lhe pergunto
Como se explica tal metamorphose.
Se é o respeito á memória de defunto
Que faz com que o gozado ja não goze.
Respondeu-me que não; que fez loucuras
Pelo desejo de ser mãe! Jurava
Que nas suas galantes aventuras
Buscava um filho, nada mais buscava!
E nos seus labios humidos diviso,
Como uma sombra de abysmados mundos,
Aquelle mesmo angelico sorriso
Das entrevistas do portão dos fundos.
Esta historia, leitor, é puro invento.
Eu não quero, por Deus! ficar mal visto!
N’um dia em que me achei mais pachorrento,
Não tendo nada que fazer, fiz isto.
Essa mulher nunca viveu, nem vive;
Nunca viajei por ignorados mundos;
Nunca tive aventuras: nunca tive
Taes entrevistas no portão dos fundos.