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Contos em verso/Contos cariocas/Fabricio

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FABRICIO
 

O defunto Fabricio
Era a personificação do vicio.
Apezar de casado
Tom Severa, uma santa, o desalmado,
Cratando-se de pandegas e orgias,
Não era typo que perdesse vasa.
Durante muitos dias
E muitas noites não entrava em casa,
Ou só entrava fóra de horas, tonto.
Tinha uns amores que sahiam caro;
Tudo quanto ganhava
N’uma repartição onde era raro
Chegar a tempo de assignar o ponto,
Longe do lar domestico esbanjava.
Alèm disso, jogava.
Da sordida espelunca
Sempre elle sahiu «prompto»,
Mas corrigido, nunca.

Severa, a esposa, a victima, coitada,
Começou por verter acerbo pranto;
Cahiu enferma, e tanto,

Que esteve quasi á morte;
Mas arribou, e, aos poucos, resignada
Co’ a sua triste sorte,
Disse comsigo um dia: — Paciencia;
Farei de conta que não sou casada,
E meu marido é um hospede: — A existencia,
Que d’ali por diante
Passou, foi toda de trabalho. A pobre,
Para que em casa não faltasse o cobre,
Fez-se negociante.
O commercio ambulante
De doces, que ella mesma fabricava,
Sobejamente dava
Para toda a despeza
De casa, roupa e mesa.
Que mais ella queria?
Naquella casa luxo não havia;
Ella não tinha filhos, pois — pudéra! —
Essa ventura o esposo não lhe déra.
A principio sorrira-lhe a esperança
De ter uma criança
Que suavisasse o triste isolamento
Causado por aquelle casamento;
Porém, levado pela sorte avara,
O seu desejo de ser mãe passara
Como passa uma louca fantasia.

II

Fabricio, um bello dia,
Mudar de vida resolveu. — Que diabo!

Pensou, — este viver de mim dá cabo!
Vou tornar-me caseiro,
E despender com regra o meu dinheiro!

Julgas, leitor, que o malandrão sem brios
Aos pés da esposa martyr se arrojasse,
Lhe pedisse perdão dos seus desvios,
E, finalmente, se regenerasse?
Mais possivel seria
Miar um dia o cão, ladrar o gato,
Do que entrar contricção na alma sombria
Daquelle pulha ingrato.
Pezar de não ser joven, nem prendado,
Fabricio conseguiu, e sem fadiga,
Seduzir uma linda rapariga,
Que só vivia do trabalho honrado.
Elle poz casa e foi morar com ella.
Olga Menezes se chamava a bella.

Mudou de vida, isso mudou. Agora
Sempre á repartição chegava á hora,
E até já não bebia nem jogava,
Coisa que assombro universal causava.
Tornara-se caseiro,
Passando o tempo inteiro,
Que lhe sobrava do serviço, ao lado
Da mulher com que estava amasiado,
E de uma vez por todas olvidando
O domicilio conjugal. E quando
Teve a esposa noticia

De tanta impudicicia,
Apenas murmurou — pobre senhora! —:
— Estamos livres um do outro agora —,
E continuou fazendo os seus docinhos,
Gabados por innumeros freguezes.

III

Ai! os fados mesquinhos
Não quizeram durasse muitos mezes
A regeneração do meu Fabricio.
Farto de Olga Menezes,
N’um momento propicio
Fingiu ciumes e a poz no andar da rua,
Coitada! quasi nua!
Comquanto ella dissesse que no ventre
Sentia palpitar dos seus amores
Embryonario fructo.
— Saia depressa e nunca mais cá entre!
Vociferava o bruto,
Simulando furores.
— Mas o meu filho? — Tem um filho? Embora!
Si tem um filho, não é meu! Lá fóra!... —
Elle, de então por diante,
Tornou a ser o typo repugnante
Que sempre fôra, cheio de mazelas,
Arruador de beccos e vielas;
Jogador e devasso,

Bebedo, sujo, pedinchão, madraço;
E não voltou, submisso e reverente,
Para junto da esposa desdenhada.

IV

Esta, uma tarde, ouviu, sobresaltada,
O choro de uma criança pequenina,
No corredor. Immediatamente
Abriu a porta e, muito sorprehendida,
Viu n’uma cesta, em pannos envolvida
Uma criança... um menino... ou uma menina,
Que poucos dias tinha de nascida.
— Esta creaturinha foi mandada
A minha casa por alguem, já vejo,
Que sabe o meu desejo
De ter um filho! Oh, mãe desnaturada,
Mil vezes obrigada! —
Ao dizer isto, a boa creatura
Viu na cesta um papel, e fez cem vezes
Destas sete palavras a leitura:
«Fabricio. — Ahi tens teu filho. — Olga Menezes.»
— Olga... Fabricio... Um filho delle e della!
Oh, não! ficar não deve
Commigo esta criança! O diabo a leve!...
Mas, entre os seus panninhos de flanela,
O pequenito (era um menino), como
Se percebido houvera

Esse raivoso assomo,
Teve um quasi sorriso,
E olhou para Severa
Com o olhar que não vê, vago, indeciso
De quem começa a entrar no velho mundo;
E desse olhar no fundo,
Sem nenhuma expressão, sem luz, sem brilho,
Ella viu uma supplica fervente,
Muda, mas eloquente,
E, arrependida, murmurou: — Descansa,
O’ misera criança:
Eu serei tua mãe, serás meu filho!
E’ o teu fado o meu fado;
Deves amar-me e é natural que eu te ame,
Pois, si foste engeitado,
Tambem o fui, e pelo mesmo infame! —

O tenro engeitadinho
Mereceu á doceira tal carinho,
Que nesse dia as nitidas cocadas,
E as flacidas fatias
De pandeló não foram preparadas
Com a mesma perfeição dos outros dias.

V

Fabricio, que não quiz chegar-se ao rego,
Alguns mezes depois perdia o emprego.
Desempregado, desceu mais ainda:
Conheceu a miseria. A lista infinda

Dos amigos de outr’ora,
Reduzida foi vendo de hora em hora...
Por fim sumiu-se ao longe o derradeiro,
E o miseravel, de ulceras coberto,
Sem vigor, sem saude, sem dinheiro,
Andrajoso, faminto noite e dia,
Nem mesmo tinha domicilio certo,
E muitas vezes no xadrez dormia.
Severa teve dó do desgraçado:
Uma noite, encontrando-o embriagado,
De roupa immunda e de sapatos rotos,
Servindo de joguete a alguns garotos,
Trouxe-o comsigo para o lar. (Que queres,
Leitor amigo? — tu, por mais que estudes,
Não saberás, talvez, de que virtudes
São susceptiveis todas as mulheres,
E esta era uma excepção, esta era um anjo!)
Quando o indigno marmanjo,
Acordou de manhã, ficou sorpreso
Por ver que no xadrez não estava preso.
Quando Severa viu na sua frente
E tudo adivinhou, teve uma crise
De lagrimas, e foi, provavelmente,
A vez primeira que chorou. — Tu... dize...
Tu perdoas-me? — Sim, mas prevenido
Fica de que não és o meu marido.
E’s um pobre diabo, que eu acolho
Sob o meu tecto, como acolheria
Outro qualquer; só por philantropia
Metto em casa um trambolho!

Cuidadinho! vê lá! se não te emendas,
Si continúas a beber nas vendas,
Ponho-te a andar, fecho-te a minha porta!
Morre p’ra ahi na rua!
A mim que bem me importa?
Mas, se queres entrar no bom caminho,
Nesta casa que foi, que não é tua,
Tudo terás, menos mulher e vinho.
Perdera ha muito o attonito Fabricio
Da dignidade o ultimo resquicio.
Tremulo, humilde, de cabeça baixa,
Tal qual o criminoso quando se acha
Do juiz na presença, ficou mudo,
Conformado com tudo.

VI

Quando viu a criança,
Naturalmente perguntou quem era...
Uma idéa terrivel de vingança
Passou pela cabeça de Severa.
Então, leitor, que queres?
Embora vivas a caçar verdades,
Não saberás de que perversidades
São susceptiveis todas as mulheres
Mesmo quando são anjos. O menino
Que estás vendo, é meu filho! exclamou ella,
Vê como é vivo, nedio, purpurino!
Uma criança quem já viu mais bella? —

Abriu Fabricio palpebras tamanhas,
Que saltarem-lhe os olhos parecia.
— Um filho de outra, que a senhora cria...
Filho destas entranhas!
— Pois a senhora teve um filho? — Tive!
— E o pae?... Oh! Que te importa? Já não vive.
— Estranho que a senhora... — Por que estranhas?
Por que me olhas assim? De que te espantas?
Não me fizeste tantas
E não me abandonaste?
De que querias que eu vivesse, traste?
Precisava de alguem que me valesse...
Do teu desdem o resultado é esse! —
E apontou para a linda criancinha. —

Fabricio nada respondeu; não tinha
Que responder; apenas
Derramou novas lagrimas serenas.

VII

Viveu tres annos mais. Foi um modelo
De bom comportamento.
Para pagar o bello tratamento
Que lhe dava a mulher, fez-se doceiro.
Fazia gosto vel-o
Andar acima e abaixo
Batendo os ovos, vigiando o tacho

Diante do fogareiro.
Tornára-se dos mestres o primeiro
Na manipulação das queijadinhas.

Ainda quatro linhas:
Afinal o mofino
Foi para a sepultura onde repousa,
Sem saber que o menino
Era seu filho e não de sua esposa.