Contos em verso/Contos cariocas/Phantasma branco

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O PHANTASMA BRANCO
 
I
 

Não havia no mundo senhorita
Mais romanesca do que Philomena.
Das tres filhas do Arruda a mais bonita.

O honrado pae dizia-lhe: — Pequena,
Se este systema de viver não mudas,
Tu para tia has de ficar, e é pena!

Graças a Deus, porém, são mais sisudas
Tuas irmas; não leem livros francezes;
Perpetuarão a raça dos Arrudas!

E, de facto, passados poucos mezes,
O velho pae casou as outras duas,
E em dois annos avô foi quatro vezes!

— Que intenções, Philomena, são as tuas?
Julgas tu, minha filha, que os maridos
Andam a tres por dois por essas ruas? —

Assim falava o velho entre gemidos,
Vendo que a moça, fria e desdenhosa,
Recusava magnificos partidos.


Em todo o pretendente achava prosa,
Prosa vil, prosa chata; nenhum era
O noivo ideal que ella sonhava anciosa.

E, assim, correndo atraz de uma chimera,
A formosa romantica da vida
Passava a fugitiva primavera.

Sempre de uma alva tunica vestida,
Solto o cabello que lhe aos pés chegava,
E em longa scisma hysterica perdida,

Si, ao luar, no jardim, noctivagava,
Si se sentava extatica num banco,
Uma visão phantastica lembrava.

Certo gaiato irreverente e franco,
Que em toda a gente honrada nomes punha,
Um dia lhe chamou Phantasma branco,
E pegou essa alcunha.

 

II

Desesperava Arruda, a toda a hora,
De ver um dia a moça enfim casada,
Principalmente agora
Que era a um phantasma branco equiparada,
Quando em noite de luar foi despertado
Pela voz de um tenor desoccupado,


Que, por baixo do quarto da donzella,
Cantava, accompanhado
Por um choroso violão. Arruda,
De face carrancuda,
Espreitou com cautela:
Philomena, á janella,
No peitoril fincado o cotovelo,
A cabeça apoiada
Na mão, solto o cabello,
E do clarão da lua illuminada,
Escutava este canto,
Que lhe causava singular encanto:

«Dos bellos olhos afasta
Do somno agora o torpor,
E vem ver, donzella casta,
O teu Messias de amor!

Si, reservado, até hoje
Teu coração não falou,
Vê se um suspiro lhe foge...
Aqui me tens, aqui estou!

O trovador do teu sonho,
O noivo do sonho teu,
Soltando um canto tristonho,
Eil-o, meu anjo, sou eu!

Tu dir-me-ás: — Não te conheço!
Vae-te embora, trovador! —
Mas ha muito que padeço,
Que morro por ti de amor!

Sou pobre, sou muito pobre;
Não tenho nada, meu bem;
Mas o manto que me cobre
Ha de cobrir-te tambem.

E’ o meu sonho mais sonhado,
Donzella casta e louçã,
Ser hoje teu namorado,
Ser teu esposo amanhã.»

Calou-se o trovador. Silenciosa
Estava a noite amena;
Só se ouvia, amorosa,
Soluçar Philomena.
O namorado perguntou-lhe... em prosa:
— Tu não me respondes?... que silencio é esse?...
Porém, antes que a moça respondesse,
Gritou o Arruda velho: — Vae-te embora,
Grandissimo patife,
Si não queres que eu saia lá p’ra fóra,
E co’um cacete os ossos te espatife! —

Como que por magia,
Do trovador sumiu-se a sombra esguia,
De chapéo desabado,
Capa traçada, violão ao lado.
Como que por magia, Philomena
A janella fechou. — Aquella scena
Continuou no quarto da donzella,
Onde o zangado pae ralhou com ella.

Mas a moça fez frente
A’ colera paterna, e, formalmente,
Lhe declarou que aquelle suspiroso
Menestrel medievo,
Que parecia de Amadis coevo,
Era o seu ideal mysterioso,
E daquella guitarra apaixonada
O meigo som lhe parecera um hymno.
— Qual guitarra qual nada!
Era um reles violão! Mas eu ensino
A’quelle capadocio, si se atreve
Outra vez... — Mas, meu pae... — Que o diabo o leve!
Aquillo é sujeitinho sem officio!
’Stás aqui, ’stás no Hospicio! —

 

III

Tinha Arruda uma loja de calçado.
Foi no dia seguinte procurado,
Logo depois do almoço,
Na loja, por um moço
Que lhe falou assim: — Brito me chamo;
Sou muito rico. Eu sua filha amo;
Ser seu esposo é meu desejo ardente.
Sei que ella é romanesca, e certamente
Não quererá marido
Como eu, com toda a gente parecido.
De um ardil lancéi mão, e agora espero
Que o senhor me perdoe, sou sincero.

O homem do violão, o namorado,
Num capote embuçado,
Que esta noite cantou pifias quadrinhas
Que aliás não são minhas,
Era eu! — O senhor? — Eu, em pessoa!
— Então aquillo era fingido? E’ boa!
— Outro meio não ha de conquistal-a...
— Pois, meu caro, arriscou-se a uma bengala!
— E’ por isso que venho prevenil-o,
Pois pretendo tranquillo
Levar por deante o plano astucioso.
O trovador ha de voltar; furioso,
O senhor fica... — Ficarei, descanse.
— Haverá tudo como num romance:
Prisão... correspondencia interceptada...
Paterna maldição... lagrimas... pranto...
Sua filha por mim será raptada,
E em casa honesta ficará, emquanto
Não se fizer o nosso casamento.
Mal se realize este acontecimento,
Iremos, eu e ella,
Morar numa casinha muito pobre,
Das de porta e janella,
Onde tudo nos falte e nada sóbre,
A não serem miserias e arrelias.
Affianço-lhe que ao cabo de alguns dias
Ella estará curada
De tanto romantismo. — Isso me agrada,
O velho respondeu, porque duvido
Que de outra fórma encontre um bom marido.


IV

Tudo se fez conforme o plano. A bella,
Depois de presa e de maldiçoada,
Sahiu de casa e foi depositada,
Até que o Brito se casou com ella.
Vieram, logo depois, dias de fome,
E o menestrel dizia
Que quem ama não come:
Vive de amor e vive de poesia.
Philomena já estava resolvida
A procurar de novo o lar paterno,
Quando o marido, carinhoso e terno,
Lhe disse: — Meu amor, foste illudida...
Agora, que o romance te abandona,
Saberás que sou rico e tu és dona
De um palacete onde não falta nada! —
E revelou-lhe toda a farçalhada,
Co’a participação do pae furioso.
— Que tolice! por que não foste franco?
— Oh! si o fosse, o marido venturoso
Jámais seria do Phantasma branco!