Contos em verso/Contos cariocas/Sem botas

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SEM BOTAS
 

Em tudo acreditava
O Lopes, bom rapaz, rapaz simplorio,
Que dos seus companheiros de escriptorio,
No velho Banco onde os pirões ganhava,
Era o divertimento, era o «pratinho»;
Não lhe pregavam peta, coitadinho!
Que lhe não parecesse uma verdade.

Mas, apezar de tanta ingenuidade,
Pezava-lhe a amargura
De não ter tido nunca uma aventura
Amorosa; lembrava-se com pena
De que não fôra nunca heróe de um drama
Nem mesmo de uma scena,
Em que entrasse uma dama
Por elle apaixonada,
Ou solteira, ou casada.

Mas uma noite o acaso, emfim, num bonde
Que elle tomára a esmo,
Por fugir ao calor, sem saber onde
Iria ter, nem mesmo
Que tempo no passeio gastaria,
Deparou-lhe a aventura cobiçada:

Linda mulher, ao lado seu sentada,
Olhares tão sensuaes lhe dirigia,
E com tanta insistencia,
Que elle, apezar da sua inexperiencia,
Pois que jámais se vira em taes assados,
Foi dos mais atirados,
E fez, com o cotovello e com o joelho,
Trabalho digno de um «bolina» velho.

A passageira bella
Saltou do bonde, e o Lopes, promptamente,
Tambem saltou (pudéra!) e foi traz della,
Sem saber em que bairro se encontrava,
Nem que rua era aquella,
Onde além delles, nem um cão passava,
— Rua deserta, silenciosa, escura,
Propicia a uma aventura.

Antes que o Lopes qualquer coisa diga,
Ella volta-se, e fala: — Por piedade
Os passos meus não siga.
Si não deseja a minha inf’licidade!
Hoje, só hoje, desacompanhada
Fui a sahir forçada
Por um negocio urgente.
Meu marido é doente,
E ha tres dias estamos sem criada.
Fez-me o senhor uma impressão profunda,
Por parecer-se com alguem que o somno
Eterno dorme n’uma cova funda:

Foi o primeiro dono
Do meu amor de virgem... Acredite:
Não posso crer que um morto resuscite,
Mas, ao ver essa cara,
Suppuz que o meu Gabriel resuscitára!
Adeus, senhor! não tente
Tornar a ver-me! Esqueça-me! E’ prudente!
— Mas eu... — De conta faça
Que uma visão eu sou... visão que passa...

E esgueirava-se a dama. O namorado
Que se havia deixado
Ficar mudo, enlevado
No som daquella voz, notas estranhas,
Mysteriosa musica divina
Que lhe invadia o amago e as estranhas,
Tomou-lhe a mão papuda e pequenina,
Dizendo-lhe: — Senhora,
Não se afaste de mim, não vá se embora,
Sem me deixar ao menos a esperança
De que algum dia tornarei a vel-a!
Não queira que num céo todo bonança
Brilhe, e logo se apague a minha estrella!
— Não! deixe-me partir! — Oh, não! não parta!
— Pois sim... pois bem... escrevo-lhe uma carta...
Dê-me o seu nome e a sua adresse — Prompto!
Meu cartão aqui tem.

E o Lopes, tonto,
Qual si bebera capitoso vinho,

Ficou ali parado,
Emquanto ella seguia o seu caminho
E entrava num sobrado.
A carta não tardou. Dizia a bella
Que jámais faltaria
Ao seu dever por uma phantasia;
Que o pobre Lopes se esquecesse della;
Si, entretanto, quizesse
Mandar-lhe uma resposta, que o fizesse
Para a posta-restante.

Foi a correspondencia por diante,
E, á terceira missiva,
Já se mostrava a dama compassiva,
Promettendo que, logo que pudesse,
Uma entrevista ao Lopes marcaria.
E cumpriu a promessa um bello dia:
«Não posso mais! Si és homem que se afoite,
Pódes vir sexta-feira, á meia-noite.
Fica á porta da rua
Uma criada á tua
Espera. Meu marido
Aqui estará, porém... adormecido.
Vê a quanto me exponho
Para tornar verdade um bello sonho!»

Achou o Lopes no posto a medianeira,
Uma velha mulata. Esta lhe disse,
Guardando, agradecida, algumas notas,
Que a escada não subisse

Sem descalçar primeiramente as botas,
Que tinham «ringideira».
Elle subiu ridiculo, em palmilhas,
E co’um dedo enfiado nas presilhas
Das duas botas penduradas. Ella,
Que o vira da janella,
Foi no topo da escada recebel-o,
Suggestivo o peignoir, solto o cabello,
Elle quiz abraçal-a;
Ella, porém, fez — Pscio! — e, cautelosa,
Tomando-o pela mão fria e nervosa,
Pé ante pé levou-o para a sala,
Dizendo-lhe baixinho;
— Muito devagarinho...
Elle póde acordar... — Na sala escura
Teve ignobil desfecho essa aventura...

— Mas teu marido? Tu não tens receio...
— Ai! se soubesses... Eu narcotisei-o!...
Olha... Não o ouves resonar? — O moço
Nada ouvia, mas respondeu... Sim... ouço...

Succederam-se novas entrevistas,

Sempre co’as mesmas precanções já vistas.
Logo á segunda, o Lopes foi sangrado
Em quinhentos mil réis, não para ella,
Que nada lhe faltava, Deus louvado,
Mas para a tal mulata, sentinella,
Que tinha precisão dessa quantia.

Oito dias depois, nova sangria;
Outra, mais outra, e muitas, — finalmente
Nunca se viu mulher mais exigente!

Elle mandava ao diabo a sua estrella!
Amante cara! E não podia vel-a
Senão á meia luz, e receioso,
De despertar o esposo!
Que edade ella teria
Elle ignorava, e desprezal-a qu’ria;
Porém era dos taes que não reagem
Por falta de coragem.

Os collegas do Banco
Perceberam que o Lopes occultava
Alguma coisa que o mortificava.
Perguntaram-lhe o que era, e elle foi franco:
— Imaginem, rapazes,
Que n’uma noite em que eu esparecia
N’um bonde da Alegria,
Uns olhos vi, capazes
De um morto erguer da sepultura fria!
Noite de amor nefasta!
Ella saltou na rua***. — Basta! basta!
(Um dos rapazes disse)
Que grande patetice!
Já sei de quem se trata:
E’ da celebre typa da mulata,
Uma velha cocotte aposentada,
Que finge ser casada,

E acha que toda a gente é parecida
Co’um tal defunto de quem foi querida!
Aos amantes faz crer que narcotisa
Um marido phantastico! Arthemisa
Diz que se chama e chama-se Thereza! —
Pasmado estava o Lopes. — Com certeza
(Accrescentou o amigo, entre chacotas),
Para subir a escada,
Foste obrigado a descalçar as botas...
— Sabes de tudo! não ignoras nada!
— Si eu faço parte dos tres mil idiotas
Que entraram lá sem botas!

Cara foi a lição, completa a cura,
Pois o Lopes não teve outra aventura.