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Contos em verso/Contos maranhenses/O chapéo

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O CHAPEO
 

O Ponciano, rapagão bonito,
Guarda livros de muita habilidade,
Possuindo o invejavel requesito
De uma calligraphia
A mais bella, talvez, que na cidade
E no commercio havia,
Empregou se na casa importadora
De Praxedes, Couceiro & Companhia,
Casa de todo Maranhão credora,
Que, além de importadora, era importante,
E, si quebrasse um dia,
Muitas outras comsigo arrastaria.

Do commercio figura dominante,
Praxedes, socio principal da casa,
Tinha uma filha muito interessante.
O guarda livros arrastava-lhe a asa.

Começára o romance, o romancete
N’um dia em que fez annos
E os festejou Praxedes co’um banquete,
N’um bello sitio do Caminho Grande,
Sob os frondosos galhos veteranos
Que secular mangueira inda hoje expande.

A mesa circular, sem cabeceíra,
Rodeando o grosso tronco da mangueira,
Um bellissimo aspecto apresentava:
Reluzindo lá estava
O leitão infallivel,
Com o seu sorriso ironico,
Expressivo, sardonico.
Sabeis de alguma coisa mais terrivel
Do que o sorriso do leitão assado?
E nos olhos, coitado!
Lhe havia o cosinheiro collocado
Duas rodellas de limão, pilheria
Que sempre faz sorrir a gente séria.
Dois soberbos perús de forno; tortas
De camarão, e um grande e magestoso
Camorim branco, peixe delicioso,
Que abre ao glutão do paraizo as portas;
Tainhas ourichocas recheadas,
Magnificas pescadas,
E um presunto, um collosso,
Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,
Tiras estreitas de papel dourado.
Compoteiras de doce, encommendado
A Calafate e a Papo Roto; fructas;
Vinho em garrafas brutas.
Amendoas, nozes, queijos, o diabo.
Que se me metto a descrever aquillo,
Tão cedo não acabo!

O Ponciano fôra convidado:

Quiz o velho Praxedes distinguil-o.
Fazia gosto vel-o
Convenientemente engravatado,
De calças brancas e chapéo de pello,
E uma sobrecasaca
Que estivera fechada um anno inteiro
E espalhava em redor um vago cheiro
De camphora e alfavaca.

Mal que o viu, Gabriella
(Gabriella a menina se chamava)
Lançou-lhe uma olhadela
Que a mais larga promessa lhe levava...

Como que os olhos delle e os olhos della
Apenas esperavam
Encontrar-se; uma vez que se encontravam,
De modo tal os quatro se entendiam
Que, com tanto que ver, nada mais viam!

Apezar dos perigos,
Por ninguem o namoro foi notado.
Pois que o demonio as coisas sempre arranja.
Praxedes, occupado,
Fazia sala aos ávidos amigos;
A mulher de Praxedes, nas cosinhas,
Inspeccionava monstruosa canja
Onde fluctuavam cinco ou seis gallinhas
E um paio, um senhor paio —,
E os convivas, olhando de soslaio
Para a mesa abundante e os seus thesouros
  Não tinham attenção para namoros.

Quando todos á mesa se assentaram,
Elle e ella ficaram
Ao lado um do outro... por casualidade,
E durante tres horas, pois tres horas
Levou comendo toda aquella gente,
Entre as phrases mais ternas e sonoras
Juraram pertencer-se mutuamente.

Quando na mesa havia só destroços,
Cascas, espinhas, ossos e caroços,
E o café fumegante
Circulou, — nesse instante,
Eram noivos Ponciano e Gabriella.

— Como, perguntou ella,
Nos poderemos escrever? Não vejo
Que o possamos fazer, e o meu desejo
E’ ter noticias tuas diariamente.
Respondeu elle: — Muito facilmente:
Quando á casa teu pae volta á noitinha
Traz comsigo o Diario, por fortuna;
Escreverei com lettra miudinha,
Na ultima columna,
Alguma coisa que ninguem ler possa
Quando não esteja prevenido. — Bravo!
Que bella idéa e que ventura a nossa!
Porém si esse conchavo
Serve para me dar noticias tuas,
Não te dará, meu bem, noticias minhas. —
Mas não esteve com uma nem com duas
O namorado, e disse:

— Temos um meio. — Qual? Não adivinhas?
Teu pae usa chapéo... — Sim... que tolice! —
— Ouve o resto e verás que a idéa é boa:
Um pedacinho de papel á toa
Tu metterás por baixo da carneira
Do chapéo de teu pae; dessa maneira
Me escreverás todos os dias... uteis.

Oh, precauções inuteis!
Durante um anno inteiro
O pae ludibriado
Serviu de inconsciente mensageiro
Aos amores da filha e do empregado
— Até que um dia (tudo é transitorio,
Até mesmo os chapéos) o negociante
Entrou de chapéo novo no escriptorio.

Ponciano ficou febricitante!
Como saber qual era o chapeleiro
Em cujas mãos ficára o chapéo velho?
Muito inquieto, o bregeiro
Ao espirito em vão pediu conselho;
Dispunha-se, matreiro,
A sahir pelas ruas, indagando
De chapeleiro em chapeleiro, quando
O chapeleiro appareceu!... Trazia
O papelinho que encontrado havia!
Atinára com tudo o impertinente
E indignado dizia:
— Sou pae de filhas!... venho promptamente

Denunciar uma patifaria!
O hypocrita queria
Mas era, bem se vê, cahir em graça
A um medalhão da praça.

O pae ficou furioso, e, francamente,
Não era o caso para menos; houve
Ralhos, ataques, maldições, etcœtra
Mas, emfim, felizmente
Ao céo bondoso approuve
(O rapaz tinha tão bonita letra!)
Que não fosse a menina p’r’o convento,
E a comedia acabasse em casamento.

Ponciano hoje é socio
Do sogro, e faz negocio.
Deu-lhe uma filha o céo
Que é muito sua amiga
E está casa não casa;
Mas o ditoso pae não sae de casa
(Aquillo é balda antiga)
Sem revistar o forro do chapéo.