Contos paraenses/No baile do commendador
No baile do commendador
Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!
E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de madreperola.
— E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente olhar vibrado atravez o crystal do monóculo petulante.
— Porque — ?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa mestra, doutor, e eu tenho recebido d’ella bem duros, bem crueis exemplos!
— Apezar de ser tão nova assim?
— A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, preferencia, como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.
— Mas — é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não sentisse por sua pessôa — e pelo seu espirito — este indomavel affecto de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora — e bem profundamente! — depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados conceitos.
— Devéras?
— Por certo.
— Oh! é muito amavel....
— Digo a verdade.
— E, todavia, continuo a descrêr...
— Faz muito mal!
— Porquê?— Ah! já faz perguntas? — Porque quem confessa descrença em similhante assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...
— O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições bem rispidas tenho recebido n’elle, para agora, sem discrepancia das suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illusões phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao sério as banalidades da confissão que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estará o sr., effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razão, doutor!
— Como é cruel, minha senhora!
— Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o sentimento. — Permitte-me a liberdade d’uma franqueza?
— Ora essa! Porque não?...
— Muito bem: pretendo matar-lhe n’alma o seu illimitado.... pedantismo.
— Como diz?
— Ouça bem: o — seu — illimitado — pedantismo.— E.... mas....
— Olhe, sente-se aqui, a meu lado — Assim. Conversaremos com tranquillidade, emquanto essa quadrilha d’Offenback absorve todas as attenções da sala. Escute-me.
—
Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante. Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra; uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz. Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no Brazil.
Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as escravas.
De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão que empunhava a agulha, ou descançavam cautelosas os bilros sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.
A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da cabanagem, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica, de que pretendia occupar a attenção dos ouvintes.
Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d’uma fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de que ella ia tratar.
Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas, — a bôa preta começou a referir a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade, succintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.
—
Da outra banda do rio, á margem esquerda d’este mesmo Guajará que róla suas turbidas aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n’aquelle tempo, — em 1835, — que era o abrigo d’uma simples familia de modestos caboclos agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d’uns 20 annos sadíos e bem desenvolvidos.
Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam negocios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente na cidade.
O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da margem opposta do rio, moradora n’um sitio quasi fronteiro á roça. Pelo São João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um padre a mais persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas transcendentes.
Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas singellas e apaixonadas.Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em acastellar illusões, n’umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis.
Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.
Mas houve um dia em que a sorte, — sempre inclemente e cynica, doutor! — pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d’aquella invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.
A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada barbaridade.
Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á visita dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se póde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da infamia, — após assistirem á perpetração selvática do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima, dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira!
Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só momento o rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a d’aquella paixão, doutor, dias antes apresentada em labiosas florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande coração, o d’aquelle homem!
Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua noiva, — sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames, ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos sicarios!
Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas materialisações soezes e gordurosas.
Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho!Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d’antes, convertera-se em mattagal e a infeliz Thomazia, — apatetada e envelhecida, coberta de andrajos e chorosa, — tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraça, uma creança inconsciente, um filho que dentro d’ella semeára a hedionda selvageria dos revoltosos.
Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:
— E crê, depois d’isto, que eu acredite na existencia d’um só homem sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p’ra ’hi?