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Correspondência ativa de Euclides da Cunha em 1905

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Manaus, 13 de janeiro de 1905

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José Veríssimo
Meu bom amigo,

escrevo-lhe dissentindo abertamente da sua opinião sobre este singularíssimo clima da Amazônia ― e embora ela, já de si mesmo valiosa, tenha o reforço de Wallace Walleis, Maury e quantos cuidaram deste assunto, não posso forrar-me à experiência dolorosa neste instante ― menos pela sujeição da coluna mercurial desde ontem firme em 30°, que por um completo aniquilamento orgânico ― me revela as exigências excepcionalíssimas de uma aclimação difícil. Em carta neste momento escrita ao Arinos disse que quem resiste a tal clima tem nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuriúbas. E, sem o querer, achei o traço essencial deste portentoso habitat. É uma terra que ainda se está preparando para o homem ― para o homem que a invadiu fora de tempo, impertinentemente, em plena armação de um cenário maravilhoso. Hei de tentar demonstrar isto. Mostrarei, talvez, esteiando-me nos mais secos números meteorológicos, que a natureza, aqui, soberanamente brutal ainda na expansão de suas energias, é uma perigosa adversária do homem. Pelo menos em nenhum outro ponto lhe impõe mais duramente o regime animal. Neste perpétuo banho de vapor todos nós compreendemos que se possa vegetar com relativa vantagem, mas o que é inconcebível, o que é até perigoso pela soma de esforços exigidos, é a delicada vibração do espírito e a tensão superior da vontade a cavaleiro dos estimulantes egoísticos. É possível que uma maior acomodação me faça pensar de outro modo, mais tarde. Neste momento, porém ― em que a pena me escorrega dos dedos inundados ― não sei como traduzir o glorious clime de Bates. Não há exemplo de um adjetivo desmoralizado (felizmente em inglês!).

Falta-me o tempo para continuar neste desabafo, o único que me permite o ambiente irrespirável. Preciso dar-lhe breve conta de mim.

Entreguei a sua carta ao dr. Goeldi e não preciso dizer-lhe como me recebeu ele, e que duas horas inolvidáveis passei a seu lado pelos repartimentos e entre as maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo. Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral.

Escrevo-lhe às carreiras, sem tempo e sem saber como… não dizer, como evitar o tumulto de coisas que desejava contar-lhe. Se o fizesse, deixaria de escrever não sei quantas outras cartas e não sei quantos ofícios.

Levo ― nesta Meca tumultuária dos seringueiros ― vida perturbada e fatigante. Ao mesmo tempo que atendo a sem número de exigências do cargo, sofro o assalto de impressões de todo desconhecidas. Foi um mal esta parada obrigatória, que não sei até quando se prolongará: perdi uma boa parte de movimento adquirido, para avançar no deserto. Mas resignei-me, bem certo de que a minha velha boa vontade não afrouxará com tão pouco e confiante na minha abstinência espartana no reagir ao clima. Alguns graus de febre que tive, ao chegar, passaram ― e espero que não tenham sido um lugubremente gentil cartão de vista do impaludismo, pressuroso em atender ao hóspede recém-chegado.

Em outra carta serei bem mais extenso. Agora, é impossível. Escrevo apenas para dizer-lhe que estou bom, animado e seguro de cumprir a missão. Quero que abrace por mim ao nosso grande e querido mestre Machado de Assis, Araripe Júnior, Graça Aranha e João Ribeiro.

Recomende-me muito à Exma. senhora e filhos ― e creia que é com as maiores saudades que lhe mando um abraço
Euclides da Cunha

Manaus, 14 de janeiro de 1905

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Ao barão do Rio Branco

Saúdo a V. Exa. ― e confirmo a minha carta de 8 em que dei breve notícia do que temos feito. Pouco há que aditar nesta. Apenas quanto ao traçado real do Chandless, a que me referi ― nossos informantes insistentemente se referem a um outro afluente, a montante do Araçá, e que por muito tempo teve o nome do notável explorador. Vê-se bem como variam os pareceres sobre assuntos tão simples ― impondo a todas as informações o corretivo de uma observação ulterior, direta.

Colhi sem número de outros dados sobre a estrutura e importância mineralógica de alguns terrenos que atravessaremos ― e entre eles os que se referem a grandes bacias de carvão de pedra nas cercanias do Riscala.

Tais esclarecimentos, nem sempre uniformes, aceito-os apenas como indicação para o exame local, mais tarde.

Num ponto, porém, os mais práticos conhecedores daqueles lugares se uniformizam: não devemos demorar muito a nossa partida. Perdida a quadra favoráveldo começo da enchente, teremos de desempenhá-la através dos mais imprevistos obstáculos. Assim a nossa estada nesta cidade deve dilatar-se no máximo até princípios de fevereiro.

Quando disse aí a V. Exa. que em 5 ou 6 meses poderíamos realizar todos os trabalhos contava com o aproveitamento completo daquela quadra, que dia a dia vamos perdendo, a braços com muitas dificuldades no adquirirmos meio de transporte. O sr. coronel Belarmino já deve ter prestado a V. Exa. amplas informações sobre este ponto. Mas ainda que sigamos em meados de fevereiro tenho ainda a certeza de efetuar os trabalhos, com relativa presteza, permitindo a nossa volta em agosto, e sem prejuízo ao rigor das operações.

Ontem, aproveitando o primeiro céu propício que nos apareceu desde a nossa chegada, determinamos, em circunstâncias favoráveis, o ângulo horário do sol, ou, em tempo, a hora média de Manaus ― da qual deduzimos um primeiro estado absoluto dos nossos cronômetros sobre o tempo local.

Continuamos insistentemente nestes trabalhos ― e em diários exercícios de levantamento expedito que nos afeiçoem o mais possível aos levantamentos rápidos. Todos os meus companheiros continuam admiravelmente dispostos à nobre tarefa que V. Excia. lhes confiou.

Sempre com verdadeira veneração, subscrevo-me

Euclides da Cunha

Manaus, 5 de fevereiro de 1905

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Cartão-postal
A Machado de Assis

[Anverso]: Casebre com coqueiros [Reverso]:

Nesta choupana de roça,
De aparência tão tristonha,
Mora, às vezes, uma moça
Gentilíssima e risonha.
E o incauto viajante
Quase sempre não descobre
A moradora galante
De uma choupana tão pobre
E passa na sua lida,
Para a remota cidade,
Deixando, às vezes, perdida
Num ermo, a Felicidade…

Manaus ― 14 de fevereiro de 1905

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[cartão]

Ao amo dr. Firmo Dutra

Euclides da Cunha saúda e agradece.

Manaus, 20 de fevereiro de 1905

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[telegrama]

Ao visconde de Cabo Frio

Ante extraordinária demora peruanos consultei se posso seguir na frente conforme exemplo outras comissões mistas. Urge vinda instruções nossa partida urgentíssima.

Manaus, 10 de março de 1905

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Coelho Neto

Quando fui hoje ao correio para assistir à abertura da mala do “Gonçalves Dias” levava a preocupação absorvente de encontrar cartas de casa porque vai para dois meses que não as recebo. Nem uma! Mas (temperamento singular o meu, feito para todas as dores e para todas as alegrias) recebi toda garrida, embora vestida de preto, a tua carta gentilíssima. E foi como uma janela que se abrisse de repente no quarto de um doente… Obrigado, meu esplêndido companheiro de armas! Jamais avaliarás os resultados da tua verve tumultuada neste meu tédio lúgubre de Manaus. Manaus ― ha uma onomatopeia complicada e sinistra nesta palavra ― feita do soar melancólico dos cabarés e da tristeza invencível do Bárbaro. Não te direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador onde pretendo entrar com os arremessos britânicos de Livingstone e a desesperança italiana de um Lara, em busca de um capítulo novo no romance mal-arranjado desta minha vida. E eu devia estar dominando as cabeceiras do rio suntuoso, exausto nos primeiros boleios dos Andes ondulados. Mas, que queres? Manietaram-nos aqui as malhas da nossa administração indecifrável e só a 19 ou 20 deste receberemos as instruções que nos facultarão a partida. Imagina, se puderes, as minhas impaciências. Esta Manaus rasgada em avenidas, largas e longas, pelas audácias do Pensador, faz-me o efeito de um quartinho estreito. Vivo sem luz, meio apagado e num estonteamento. Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hibearavilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-me apenas umas longas barbas brancas, emaranhadas e trágicas. Vamos a outro assunto. Chegou tarde o teu pedido sobre a próxima eleição da Academia. Já o Veríssimo me comunicara a renúncia do Vicente, indicando-me o Sousa Bandeira. Mandei-lhe o meu voto pelo vapor passado. Entretanto da tua carta à dele medearam apenas 30 e poucas horas que foram do avançamento do “S. Salvador” sobre o “Gonçalves Dias”. Caprichos da fortuna.

Não te esqueças de ir com tua Senhora visitar as minhas quatro enormes saudades na minha fazendinha de Laranjeiras. Escreve-me sempre e sempre. As tuas cartas serão recebidas mesmo no Alto Purus.

12º filho! Não sei se devo dar-te parabéns por esse transbordamento de vida. Neste tempo e nesta terra as criancinhas deviam nascer de cabelos brancos e um coração murcho, meu velho Coelho Neto. De mim penso que uns restos de mocidade nacional estão nas almas de meia dúzia de sexagenários dos bons tempos de outrora. Entre esses desfibrados e jovens imbecis tenho às vezes, vontade de perguntar a um Andrade Figueira, a um Lafayette e a um Ouro Preto se já fizeram vinte anos. Ma façamos ponto, alto! neste rolar pelo declive do meu pessimismo abominável.

Adeus. Até a volta, porque, ― infalivelmente ― ainda te apertará em um abraço o teu
Euclides da Cunha

Manaus, 14 de março de 1905

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[cartão de visita]

Ao distintíssimo mestre e bom amigo Machado de Assis
Euclides da Cunha

Muito afetuosamente e com as maiores saudades, saúda-o; promete escrever-lhe mais longamente e envia-lhe o seu voto para a próxima eleição da Academia.

Manaus, 15 de março de 1905

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Argolo

Não desço para não agravar o calo. Comunique-me o que houver digno de nota. Até logo.

Recado do amº e comp.
Euclides

P.S. ― Diga ao Lima que me mande o ofício do dr. Catunda sobre os remédios de que ontem ele me falou, e o teu sobre as canoas.

Manaus, 15 de março de 1905

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À Academia Brasileira de Letras

Para a vaga de José do Patrocínio

voto no Ilmo. dr. Vicente de Carvalho

Euclides da Cunha

Manaus, 17 de março de 1905

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À Academia Brasileira de Letras

Para a vaga de

José do Patrocínio

voto no Ilmo. dr. Heráclito Graça

Euclides da Cunha

Manaus, 20 de março de 1905

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Rangel (10 1/2 da noite)

Só — inteiramente só — na saleta estreita da tua bucólica tebaida… Ou melhor, eu e algumas sombras: frei João de São José, o estrênuo Ricardo Franco, o meticuloso Lacerda e Almeida e não sei quantos outros mais… Calcula, se puderes, a nossa grande orgia silenciosa e formidável — de velhos sucessos acabados e estupendos lances para todo o sempre extintos. O velho frade, castamente voltaireano, com o seu belo dizer castíssimo conta-me os casos antigos da Amazônia velha; o impávido tenente-coronel de engenheiros; as suas quatro ou cinco odisséias sertanejas; e o maior explorador de todos os tempos e de todos os países, o molde secular de todos os Livingstones e de todos os Stanleys, a sua peregrinação maravilhosa do “equador visível” aos últimos rebentos meridionais da Mantiqueira!

E vão-se lentamente escoando as horas nesta palestra esquiliana e sem palavras… O Firmo saiu: está neste momento prosaicamente decaído sob o olhar adoravelmente fulminante de uma noiva. Lá dentro o Manuel, cotovelos fincados na mesa, cabeceia deploravelmente sobre uma cartilha de ABC, amarrotada — e um grande, um misterioso silêncio rendilhado de fugitivos rumores de folhagens agitadas de leve — torna mais solene esta esmagadora quietude. Certo, se de momento em momento, um angustiado espirro da bronquite crônica do teu galinho, o “louquinho” no diagnóstico do Firmo, não me chamasse à realidade chatamente térrea, eu veria abrir-se misteriosamente a tua estante da esquerda e dela irromper o torturado Rollinat, de braço dado com

…l’éternelle dame en blanc qui voit sans yeux et rit sans lèvres,

tal augusta placidez que nesta hora morta avassala inteiramente a tua encantadora vila…

Então lembro-me de ti —, imagino-te ao lado do melhor entre os melhores corações que te idolatram — e toda a minha saudade se extingue numa grande e nobilizadora inveja — tão grande que só este pecado de invejar a tua felicidade de filho bastaria para que se me abrissem todos os céus (se os céus existissem) — com toda a minha incorrigível impiedade.

A nossa partida está próxima. Chegaram ontem as instruções — e desde que se realize a reunião dos comissários — iremos rumo feito para o desconhecido.

A minha frota: duas lanchas (uma ainda problemática), um batelão e seis canoas — flutua triunfalmente ao extremo do igarapé de São Raimundo — e teve ontem o batismo de uma tempestade.

Nunca imaginei que este rio morto escondesse, traiçoeiramente, ondas tão desabridas. Uma rajada viva de sudoeste imprime-lhe as crispações ensofregadas de um mar — e que mar! Um mar entre barrancas em que as vagas desencadeadas se desatam em corredeiras impetuosas de torrentes…

Felizmente resistiram galhardamente os meus navios. É que dentro deles está a “fortuna de César”. Realmente. Creio tanto no meu destino de bandeirante, que levo esta carta de prego para o desconhecido com o coração ligeiro. Tenho a crença largamente metafísica de que a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior a realizar-se. E eu tenho tanto que escrever ainda…

Li na Província do Pará as tuas generosas palavras a meu respeito. És um coração! Não exultou, lendo-te, a minha vaidade — uma infeliz sacrilegamente apedrejada em toda a parte e que nem sei como ainda vive! — mas o orgulho, o grande orgulho de possuir a tua simpatia.

Um favor, mas favor sacratíssimo, de irmão. Na rua do Cosme Velho 91 (atual Rua de Francisco Octaviano), Laranjeiras — moram as minhas 4 enormes Saudades — a minha mulher e os meus três pequenos. Peço-te que os procures e lhes dês notícias minhas.

Antes de seguir, hei de escrever-te outra vez. Responda-me.

Receberei a carta mesmo em caminho, por intermédio do Firmo, que a enviará.

Adeus, Rangel. Apresenta os meus respeitos à tua boa mãe; peço-te que me recomendes aos amigos (não terás grande trabalho nisto) — e que te não esqueças nunca do

Euclides da Cunha

P.S — O Firmo é o que desde o primeiro dia imaginei: um companheiro adorável.

Mas sob outros pontos de vista — um paradoxo, o mais estranho paradoxo vivo que tenho encontrado: atravessa os dias a esbravejar, à maneira de Schopenhauer, contra o sexo frágil — e invariavelmente, das 7 às 10, todas as noites entoa o mea culpa do noivado, contrito, sob o olhar carinhoso e vigilante da futura sogra… Magnífico!

Manaus, 11 de maio de 1905

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[telegrama]

Domício da Gama

Peço encarecidamente notícias minha família Saudações Saudades

Euclides da Cunha

[Manaus], 9 de novembro de 1905

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[cartão de visita]

Firmo

peço-te um punhado de favores:

1° ― manda-me o retrato e as […]

2° ― venha logo ― às 2 horas até aqui trazendo o desenhista. Recado do teu

Euclides

Manaus, 10 de novembro de 1905

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Firmo

O dr. Teixeira não me deixou sair, ontem.

Não apareceu o desenhista; e como não sei onde ele mora peço-te que o procures fazendo que ele venha aqui, no escritório, até as 11 horas sem falta. Desculpa-me este abusar da tua bondade, e até logo

Recado do

Euclides

Manaus, 2 de dezembro de 1905

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Rodrigo Otávio

Felicidades!

Pedi ao meu colega dr. Adolfo Lutz, para te entregar a triste figura que aí vai. Até breve. Dentro em breve te abraçará

Euclides da Cunha

[Manaus, 10 de dezembro de 1905]

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Firmo

Saudações.

Não estranhe a minha ausência.

Estou muito sobrecarregado de trabalhos.

Recado do

Euclides