Curiosidade/I
Carlota leu curiosa o anúncio do espetáculo. O título da peça era uma pergunta: O que é o casamento? A peça era de Alencar e ia à cena pela primeira vez.
— O que é o casamento? repetiu a moça consigo; título singular... Quando é a representação? É amanhã; vou pedir a papai para irmos vê-la.
Carlota ficou ainda a pensar no título da comédia, não só porque era mulher, mas também porque era noiva; leu os nomes dos personagens, e os dos atores, a hora em que começava o espetáculo, e, finalmente, entrou a ler as tábuas do teto e os fios de seda de uma das borlas da poltrona em que estava sentada. Foi nessa leitura que a veio achar a mãe.
A mãe tinha notícia de que eram as semanas anteriores ao casamento; sabia que em tais períodos contam-se todas as tábuas, todas as borlas do mundo. Fingiu que pensava em outra coisa, e quis sair, mas a filha deteve-a.
— O que é o casamento, mamãe?
D. Fausta estremeceu, levantou os ombros e não lhe respondeu nada. Como a filha insistisse, retorquiu que o casamento era uma loteria, mas que havia um meio certo de tirar prêmio grande: ser boa esposa.
— Compreendo; mas não é disso que se trata agora, trata-se de irmos ao teatro amanhã.
— Ao teatro?
Carlota mostrou-lhe o anúncio.
— Vamos? disse ela. Vou pedir ao papai.
D. Fausta viu o título, que também lhe pareceu curioso, abanou a cabeça, e disse à filha que era arriscado ir buscar ao teatro a explicação de coisas que só a vida real podia dar cabalmente. Em todo o caso, a resposta, se resposta havia no drama, seria à feição do entendimento do autor e cada autor poderia dar diferente solução ao mesmo problema. Vão trabalho! Carlota determinara ir ao teatro, não havia persuadi-la de outra coisa.
— Tens razão, disse D. Fausta; é uma noite de espetáculo, e nada mais.
D. Fausta era assim organizada; exagerava a defesa da sua opinião para ceder dela ao primeiro embate. Era uma senhora afetuosa, boa, de espírito acanhado, medrosa das trovoadas e tumultos, tendo perdido um casamento rico pelo único motivo de que era preciso acompanhar o marido à Europa. D. Fausta embarcou uma única vez para a nossa clássica Praia Grande, antes de 1840, quando alguns dos nossos poetas ainda rimavam Oceano com Netuno, e quando as navegações se faziam por meio de simples cascas de nozes. Tal medo colheu da viagem que preferia ver o diabo a ver o mar, posto que o diabo fosse a coisa que mais temesse abaixo do marido, que, aliás, era um anjo.
Davam quatro horas da tarde quando a mãe cedeu ao desejo da filha que lhe retribuiu a complacência com um beijo estouvado e terno.
— Doidinha! exclamou D. Fausta.
Desta vez foi a mãe quem afagou a filha, depois saiu Carlota ficou novamente a pensar na peça e no título. Já então não contava as tábuas do teto nem as borlas da poltrona, cerrou as pálpebras e abriu a porta ao canário que tinha no cérebro. Cerrando as pálpebras, tapou dois belos olhos castanhos, expressivos, talvez um pouco menores do que comportavam as dimensões do rosto. Era a única feição que destoava das outras, as restantes eram regulares e belas mormente a boca que era fina e casta. Mediana, nem magra, nem cheia, Carlota representava assim nas dimensões do corpo as proporções da beleza física e das qualidades morais. Efetivamente, não eram extraordinárias as graças dela; sua elegância, que a tinha, agradava aos olhos sem os arrastar após si. Era a mesma coisa o espírito. Não era águia nem galinha, mas um passarinho médio que trepa ao alto dos coqueiros e faz o ninho nos telhados. Tinha a virtude da curiosidade e o defeito da inconstância; e tal foi a raiz do caso que vou narrar.
Levantou-se Carlota, quando ouviu chegar o pai e foi direita a ele com intenção de lhe pedir para ir ao teatro no dia seguinte; mas recuou o pedido até à sobremesa. Nisso mostrava observação, porque o dr. Cordeiro era homem de negar dois mil-réis antes da sopa, e dar as minas de Golconda depois do café.
— Estás hoje muito risonha, disse Cordeiro quando a filha se sentou à mesa.
D. Fausta ia falar, a filha impôs-lhe silêncio.
— Percebo, temos algum mistério, concluiu filosoficamente o pai, e o jantar foi comido no meio da alegria dos três.
O dr. Cordeiro, médico de longa prática, tinha mais prática do que saber, e gozava de reputação de ser feliz nas curas; reputação que lhe dava extensa clínica. Sabia dedicar-se aos seus doentes; e apesar de político, jamais sacrificou uma hepatite a uma reunião eleitoral. A única cobiça de sua vida fora acumular um pecúlio com que pudesse amparar a velhice e dotar Carlota, o que conseguiu à força de muita economia e muito trabalho. No tempo em que este caso se passa era ele proprietário de boas casas além daquela em que morava, na praia da Gamboa, que era excelente. Tinha também apólices e escravos. Sobre tudo isto uns cinqüenta anos verdes, rijos e capazes de outros cinqüenta, e uma grande confiança em dobrar o cabo deste século.
— Vamos lá, disse ele comendo uma colherada de doce de coco; qual é então o motivo do teu ar risonho?
— Quero pedir-lhe uma coisa, respondeu Carlota.
— Não era motivo para estar alegre, mas para estar ansiosa.
— Mas se eu tenho certeza de que papai não me nega o que lhe vou pedir?...
— Atrevida! trata-se então?...
— De ir ao teatro.
— Quando?
— Amanhã.
— Que teatro?
— De S. Januário.
O dr. Cordeiro deixou-se ficar com um pedaço de queijo entre os dentes a olhar espantado para a filha, que pôde afrontar quietamente o espanto do pai.
— O Teatro de S. Januário! é o fim do mundo! exclamou o médico.
— Não chega lá; fica um pouco antes.
— E por que não iremos a outro?
— Porque é lá que se representa uma peça nova do Alencar.
— Ah!
— Vamos? está dito, vamos.
— Tu!...
O dr. Cordeiro leu o anúncio do espetáculo, e franziu o sobrolho; compreendeu então que a curiosidade da filha tinha pouco de literária, e que só a interrogação do título é o que a seduzia. Compreendeu isso, mas consentiu e recebeu um beijo em paga. Depois, com um ar que aparentava indiferença, murmurou esta frase:
— Pena é que o Conceição não possa ir conosco.
Conceição era o noivo.
— Por quê? perguntaram a mãe e a filha.
— Está doente; deixei-o hoje com uma forte constipação.
O dr. Cordeiro proferiu isto lançando um olhar furtivo para a filha, que devia empalidecer, e efetivamente empalideceu. Verdade é que também mordeu o lábio, donde se pode inferir que a moléstia do noivo tanto a compungia como a irritava. Esteve assim calada alguns minutos.
— Nesse caso não vamos, disse D. Fausta.
— Por quê? interrogou Carlota. Uma constipação não é coisa de cuidado; depois, é possível que amanhã ele esteja bom.
O dr. Cordeiro abanou a cabeça.
— Não creio, disse ele, não creio que esteja bom, deixei-o muito prostrado.
Carlota estremeceu; impedimento com o acréscimo de moléstia. Sempre era noiva; e o pai contava com essa qualidade quando se lembrou de exagerar a doença do futuro genro, que era um simples defluxo; e tanto era um simples defluxo que o Conceição, ditas aquelas palavras, entrou tranqüilamente na sala.
— Desastrado! disse consigo o dr. Cordeiro.
— Não está doente? perguntou Carlota.
— Coisa de nada; apanhei um ar na cabeça, endefluxei-me. Por quê?
— Porque desejava que nos acompanhasse amanhã ao teatro.
— Ao teatro? Pois sim. A que teatro?
— S. Januário, disse o dr. Cordeiro com uma lentidão expressiva, como um homem que estivesse a golpear outro.
— Perfeitamente, concordou o Conceição.
— Tolo! pensou o pai de Carlota.
Vencera a moça, e a vitória foi dura de suportar porquanto toda aquela noite e o dia seguinte gastou ela em cogitar o que seria o casamento. Chegou a sonhar com uma comédia; era diferente da que devia apresentar-se no teatro. Na comédia imaginária, o casamento aparecia-lhe como uma charada de muitas sílabas e nenhum sentido. Era essa a primeira versão, porque depois viu que era um banquete dos anjos, ao som da harmonia das esferas. Como este sonho fosse melhor, acordou mais alegre e almoçou mais tranqüila.
Jantou menos tranqüila: a hora aproximava-se. O pai sorria, murmurando que Deus lhe dera uma filha sem cabeça.
— Ou com cabeça de mais, disse a mãe.
— Pode ser.
Carlota ria só; estava alucinada com a idéia do que ia ver e ouvir. O dr. Cordeiro, abrindo mão do seu voltarete fazia um dos maiores sacrifícios que um pai pode fazer à curiosidade filial. Nem por ser grande a curiosidade da moça impediu que se aformoseasse com a arte e perfeição do costume. Realmente estava bela com o seu magnífico vestido de gorgorão e os seus longos brincos de brilhantes. Calçou as luvas sem impaciência, e desceu a escada sem precipitação. Para quê, se o carro devia chegar ao teatro muito antes de começar o espetáculo, tão cedo viera buscá-la por ordem da mesma moça?
— Era melhor ir comer a sobremesa ao teatro, resmungou o pai dando a mão à filha para entrar no carro.
E foi a última expressão de mau humor, não tardou que se lhe restituísse a alegria do costume. Ele próprio gostava de teatro conquanto o seu ideal dramático fosse outro que não o gênero já então em moda. Demais a filha ia contente, e ele adorava a filha, a ponto de ir da Rua da Gamboa à Rua de D. Manuel: ir e voltar.
Só D. Fausta estava um pouco preocupada, alguma coisa lhe fazia tremer o coração.