Curiosidade/II
O Teatro de S. Januário é apenas uma tradição para a geração novíssima. Era situado na rua de D. Manuel: tinham ali representado bons atores, entre eles João Caetano, que era o primeiro de todos. Não se pode dizer que o teatro fosse feio; velho sim, e mal situado — circunstância esta, que explicava a pouquíssima freqüência que sempre teve.
No tempo em que passa a ação deste conto, há 16 anos — representava ali uma companhia regular, sob a denominação de Ateneu Dramático, a qual conseguira trazer algum público. Essa companhia dera algumas peças notáveis, tais como Os Íntimos, Os Descarados, Dalila e outras composições do moderno teatro francês, que é o grande fornecedor da nossa cena, e de outras, aliás adiantadas. Mas na noite de que tratamos exibia-se pela primeira vez a comédia de Alencar, citada acima, e nunca representada em nenhum outro teatro. O nome do autor, já glorificado por outras obras, era suficiente motivo para a expectação do público fluminense.
Carlota fez convergir toda a sua atenção para a cena, pouco ou nada curando da platéia e dos camarotes. Para uma moça era caso raro; melhor diremos caso virgem. Mas se ela queria saber o que era o casamento, antes de o contrair?
No fim do 3º ato disse-lhe o Conceição:
— Já sabe o que queria saber?
— Não sei tudo, respondeu ela; posso até dizer que não sei nada. A peça não responde inteiramente à minha pergunta.
— Naturalmente.
— Por quê?
O Conceição hesitou um instante.
— Por quê? repetiu a moça.
— Porque a sua pergunta era talvez complicada demais, e a peça não pode resolver todo o problema. Acresce que, em certos casos, quando fazemos uma pergunta, só desejamos ouvir uma certa resposta; e, se não a ouvimos, parece-nos que ou não nos responderam ou responderam-nos mal.
Carlota tinha os olhos cravados na ponta do leque, e não replicou logo.
— Não tenho razão? perguntou o noivo.
— Talvez, disse ela.
Foi a única palavra que o Conceição logrou arrancar-lhe. Durante o resto do intervalo, Carlota limitou-se a olhar para o leque, para a divisão do camarote, para o lustre, e uma ou duas vezes para a platéia.
Numa das ocasiões em que olhou para a platéia, os olhos demoraram-se mais do que das outras vezes, e mais do que lhe convinha, dados o lugar e as circunstâncias. Fitara um ponto único, o ponto em que reluzia um pince-nez de ouro, cobrindo um par de olhos que pareciam negros, e efetivamente o eram. A razão por que Carlota fitara esse pince-nez de preferência a outros, era difícil achá-la, desde que se ignorasse uma circunstância, a saber, que ela vira, oito dias antes, o referido pince-nez a vagar pela praia da Gamboa. Ora, há certos pince-nez que se vêem e se esquecem; outros, pelo contrário, vêem-se e não se esquecem mais. O de que se trata pertencia a esta categoria — não pela matéria, que era simplesmente ouro — não pela forma, que era a forma mais usada e comum, mas porque estavam diante de uns olhos grandes, bonitos, expressivos; os quais olhos ornavam uma bela cabeça, a qual cabeça era o remate de um corpo esbelto, vestido com certa arte.
Conceição não reparou no destino dos olhos da noiva. Saiu antes de levantar o pano e foi ocupar a sua cadeira, que ficava justamente ao lado do pince-nez. O pince-nez estava de pé, voltado de costas para a cena, conversando com um amigo.
— Mas não dizem que ela vai casar? perguntou este.
— Dizem.
— E então?
— Então, que tem?
— Parece que, se vai casar, podes tirar dali o sentido.
O pince-nez torceu o bigode.
— Talvez não, disse ele sorrindo.
— Que me dizes? Eras capaz de tirar o outro do lance?
— Quanto perde?
— Perco... coisa nenhuma, disse o amigo emendando-se. Já tens feito muitas proezas desse gênero, e não há pequena que te resista. Contudo, é a primeira vez que tentas suplantar um noivo; e a menos que pretendas casar...
— Pretendo casar, disse o pince-nez.
O amigo não pôde reprimir um gesto de espanto.
— Casar! exclamou ele daí a um instante.
— Casar.
— Tu?
— Eu. Ouve-me. Não te digo que estou cansado da vida de solteiro; não estou; mas preciso de um capital...
— E ela possui...?
— Possui um bom dote.
— Coisa que valha a pena?
— Se não valesse, por que motivo me iria eu meter nessa embrechada? Verdade é que é bonita, como os amores...
— Vai levantar o pano, interrompeu o amigo.
E os dois sentaram-se tranqüilamente.
Conceição estava pálido; não sabia positivamente de quem tratavam os dois desconhecidos, mas alguma coisa lhe dizia ao coração que se tratava de Carlota. Que importava isso, se ele estava seguro da noiva? A vontade e a cobiça de petimetre não eram bastantes para mudar uma situação assentada, quase definitiva. Não obstante este raciocínio, o Conceição ouviu o último ato da peça sem lhe prestar a mínima atenção; e quando o pano caiu, no meio de aplausos, ele só teve um cuidado: foi correr ao camarote do dr. Cordeiro.
Era tempo; a família só esperava por ele.
— Que demora! murmurou a noiva aceitando-lhe o braço.
Conceição sorriu satisfeito; a censura fez-lhe a impressão do carinho. Esperaram alguns minutos, à porta, para que se aproximasse o carro. Já ali estava o desconhecido da platéia, encostado a um portal, tranqüilo, quase impassível. Conceição fitou-o com certa insistência, o que de algum modo denunciou ao outro qual a posição dele na família. Devia ser com certeza o noivo.
A demora foi curta; o carro aproximou-se da porta e a família Cordeiro entrou. O amigo do petimetre chegou-se a ele.
— Parece que há mouro na costa, disse-lhe sorrindo.
— Parece...
— Ela olhou para ti?
— Francamente, não; mas por baixo da pálpebra.
— Deveras?
— Tal qual.
— Não é bastante, Borges; um olhar vale pouco, sobretudo quando...
Borges interrompeu-o:
— Sobretudo, quando estou com fome. Vens cear?
— Não; tomarei uma xícara de chá apenas.
O Borges enfiou a capa e saiu. O amigo, que respondia ao nome de Ernesto, quis reatar a conversa duas ou três vezes; mas o Borges fugiu habilmente com o corpo, de maneira que Ernesto desistiu do assunto, e limitou-se a fazer alguma observação acerca do drama, pouco antes visto, e da arte dramática em geral: assunto em que o Borges acompanhou, como se não houvesse nenhuma Carlota no mundo.