D. Mônica/VI
O almoço no dia seguinte foi mais triste que de costume. Gaspar abriu os jornais para passar os olhos por eles; a primeira coisa que leu foi a sua demissão. Vociferou contra a prepotência do ministro, a cruel severidade dos usos burocráticos, a exigência descomunal do comparecimento na Secretaria.
— É indigno! exclamava ele, é infame!
Veloso, que entrou daí a pouco, não achou tão censurável o ato do ministro; teve até a franqueza de lhe declarar que não havia outra solução, e que o primeiro que o demitira fora ele mesmo.
Passada a primeira explosão, examinou Gaspar a situação em que o deixava o ato ministerial, e compreendeu (o que não era difícil) que o casamento com Lucinda era cada vez mais problemático. Veloso foi da mesma opinião, e concluiu que um único meio lhe restava: era casar com D. Mônica.
Gaspar foi nesse mesmo dia à casa de Lucinda. O desejo de a ver era forte; muito mais forte era a curiosidade de conhecer de que maneira recebera ela a notícia da sua demissão. Achou-a um pouco triste, mas ainda mais fria que triste. Três vezes procurou estar a sós com ela, ou pelo menos falar-lhe sem que pudessem ouvi-los. A moça parecia esquivar-se aos desejos do rapaz.
— Será possível que ela despreze agora o meu amor? perguntava ele a si mesmo ao sair da casa da namorada.
Esta idéia irritou-o profundamente. Não sabendo que pensar daquilo, resolveu escrever-lhe, e nessa mesma noite redigiu uma carta em que expunha lealmente todas as dúvidas do seu coração.
Lucinda recebeu a carta no dia seguinte às 10 horas da manhã; leu-a, releu-a, e pensou muito antes de responder. Ia lançar as primeiras linhas da resposta, quando seu pai entrou na saleta onde ela se achava.
Lucinda escondeu à pressa o papel.
— Que é isso?
— Vamos lá; uma filha não pode ter segredos para seu pai. Aposto que é alguma carta de Gaspar? Pretendente demitido é realmente...
Lucinda dera-lhe a carta, que o pai abriu e leu.
— Tolices! disse ele. Dás-me licença?
Dizendo isto, rasgou a carta e aproximou-se da filha.
— Verás mais tarde, que eu sou mais teu amigo do que pareço.
— Perdão, papai, disse a moça; eu ia responder que não pensasse mais em mim.
— Ah!
— Não foi o seu conselho?
O pai refletiu algum tempo.
— A resposta era decerto boa, observou ele; mas a melhor resposta é nenhuma. Em ele desenganando por si mesmo, não insiste mais...
Tal é a explicação da falta de resposta à carta de Gaspar. O pobre namorado esperou dois dias, até que desenganado foi à casa do comendador. A família tinha ido passar alguns dias fora da cidade.
— A sorte persegue-me! exclamou furioso o sobrinho do finado capitão. Um de nós há de vencer!
Para matar a tristeza e ajudar o duelo com o destino, procurou fumar um charuto; meteu a mão na algibeira e não achou nenhum. A carteira apresentava a mesma solidão. Gaspar deixou cair os braços com desânimo.
Nunca mais negra e viva se lhe apresentara ante os olhos a sua situação. Sem emprego, sem dinheiro, sem namorada e sem esperanças, tudo era perdido para ele. O pior é que sentia-se incapaz de domar o destino, apesar do desafio que lhe arremessara pouco antes. Pela primeira vez a idéia dos trezentos contos do tio lhe reluziu ao longo como uma plausibilidade. A visão era deliciosa, mas o único ponto negro apareceu logo dentro de um carro que parou a poucos passos dele. Dentro do carro ia D. Mônica; ele viu-a inclinar-se pela portinhola e chamá-lo.
Acudiu como bom sobrinho que era.
— Que fazes aí?
— Ia para casa.
— Anda jantar comigo.
Gaspar não podia trocar uma realidade por uma hipótese, e aceitou o conselho da tia.
Entrou no carro. O carro partiu.
Seria ilusão ou realidade? D. Mônica pareceu-lhe nessa ocasião menos velha do que antes a achava. Ou fosse da toilette, ou de seus olhos, a verdade é que Gaspar viu-se obrigado a reformar um pouco o juízo anterior. Não a achou moça; mas a velhice pareceu-lhe mais fresca, a conversa mais agradável, o sorriso mais meigo e o olhar menos apagado.
Estas boas impressões foram bom tempero ao jantar, que aliás era excelente. D. Mônica mostrava-se, como sempre, carinhosa e boa; Gaspar demorou-se ali até perto das dez horas da noite.
Voltando à casa, refletiu que, se porventura pudesse casar com outra pessoa que não fosse Lucinda, casaria com D. Mônica, sem nenhum pesar nem arrependimento.
— Não é moça, pensou ele, mas é boa e são trezentos contos.
Trezentos contos! Este algarismo perturbou o sono do rapaz. Primeiramente custou-lhe a dormir; ele via trezentos contos em cima do travesseiro, no teto, nos portais; via-os transformados em lençóis, em cortinados, em cachimbo turco. Quando conseguiu dormir, não conseguiu livrar-se dos trezentos contos. Sonhou com eles a noite inteira; sonhou que os comia, que os cavalgava, que os dançava, que os aspirava, que os gozava, em suma, por todos os modos possíveis e impossíveis.
Acordou e reconheceu que tudo fora sonho.
Suspirou.
— E tudo isto sacrifico eu por causa dela! exclamou ele. Merece-lo-á? Merecerá que eu padeça tantas privações, que abra mão de um bom casamento para ser desprezado deste modo?
Não lhe respondendo ninguém a esta pergunta, fê-lo ele próprio, e a resposta foi que a moça não merecia tamanho sacrifício.
— Contudo, sacrificar-me-ei! concluiu ele.
Neste ponto das reflexões recebeu uma carta da tia:
Gaspar.
Creio que arranjo empenho para que se te dê algum lugar muito breve, em outra secretaria.
Gaspar estremeceu de prazer.
— Boa tia! disse ele. Ah! como lhe tenho pago com ingratidões!
A necessidade de agradecer e a conveniência de não aumentar a conta no hotel foram as duas razões que levaram o ex-empregado a ir almoçar com a tia. D. Mônica recebeu-o com o carinho do costume, disse-lhe o que pretendia fazer para empregá-lo de novo e deixou-o nadando em reconhecimento.
— Ah! minha tia! Quanto lhe devo!
— Nada me deves, respondeu D. Mônica, só me deves amizade.
— Oh! a maior! a mais profunda! a mais santa!
D. Mônica louvou os sentimentos do sobrinho e prometeu fazer por ele tudo o que fosse possível fazer por... por um neto, é o que ela devia dizer: mas ficou na vaga expressão — por uma pessoa cara.
A situação entrou a parecer melhor ao herdeiro do capitão. Não só via possibilidade de um novo emprego, mas até seria este logo depois da demissão, o que de algum modo lhe reparava o mal feito aos seus créditos de funcionário laborioso e pontual. Além disso, D. Mônica fê-lo prometer que não iria comer a outra parte.
— Terás sempre um talher à minha mesa, disse ela.
Gaspar escreveu ainda duas cartas a Lucinda; mas ou elas lhe não chegaram às mãos, ou a moça definitivamente não queria responder. O namorado aceitou a princípio a primeira hipótese; Veloso fê-lo acreditar na segunda.
— Tens razão, talvez...
— Sem dúvida.
— Mas custa-me a crer...
— Oh! é a coisa mais natural do mundo!
A idéia de que Lucinda o tivesse esquecido, desde que lhe faltara o emprego era difícil de que a admitisse; mas afinal enraizou-se-lhe a suspeita.
— Se tais fossem os sentimentos dela! exclamava ele consigo.
A presença da tia fê-lo esquecer tão tristes idéias; eram horas de jantar. Gaspar sentou-se à mesa desembaraçado das preocupações amorosas. Preocupações de melhor catadura vieram sentar-se-lhe no espírito: os eternos trezentos contos recomeçaram a sua odisséia na imaginação dele. Gaspar construiu ali mesmo uma casa elegante, mobiliou-a com luxo, comprou um carro, dois carros, contratou um feitor para lhe cuidar da chácara, deu dois bailes, foi à Europa. Chegaram estes sonhos até a sobremesa. Acabado o jantar, viu ele que tinha apenas a demissão e uma promessa.
— Na verdade, sou um pedaço de asno! exclamou ele. Pois tenho a fortuna nas mãos e hesito?
D. Mônica levantara-se da mesa; Gaspar foi ter com ela.
— Sabe de uma coisa em que estou pensando? perguntou.
— Em matares-te.
— Em viver.
— Pois vive.
— Mas viver feliz.
— Já sei como.
— Talvez não saiba dos meus desejos. Eu, titia...
Ia ser mais franco. Mas depois de encarar o abismo, quase a cair nele, recuou. Era mais difícil do que lhe parecia, aquilo de receber trezentos contos. A tia, porém, compreendeu que o sobrinho voltava a adorar o que havia queimado. Não tinham outro fim todos os seus desvelos.
Gaspar adiou a declaração mais explícita e sem que com isto perdesse a tia, porque os vínculos se foram apertando a mais e mais, e os trezentos contos de todo se sentaram na alma do moço. Estes aliados de D. Mônica derrotaram completamente o adversário. Nem tardou que ele comunicasse a idéia a Veloso.
— Tinhas razão, disse ele; devo casar com minha tia e estou disposto a fazê-lo.
— Ainda bem!
— Devo satisfazer o desejo de um morto, sempre respeitável e enfim corresponder aos desvelos com que ela me trata.
— Perfeitamente. Já lhe falaste?
— Não; falarei amanhã.
— Ânimo.
Na noite desse dia recebeu Gaspar uma carta de Lucinda, em que ela lhe dizia que o pai, vendo-a triste e abatida, e sabendo que era por amor dele, cedera da sua oposição e consentia em que eles fossem unidos.
— Que cara é essa tão espantada? perguntou Veloso, que estava presente.
— A coisa é para espantar. O comendador cedeu...
— O pai de Lucinda?
— É verdade!
— Essa agora!
— Lê.
Veloso leu a carta de Lucinda.
— Na verdade, o lance era inesperado. Pobre moça! Vê-se que escreve com a alma banhada em alegria!
— Parece que sim. Que devo fazer?
— Oh! neste caso, a situação é diferente do que era há pouco; os obstáculos da parte oposta caíram por si mesmos.
— Mas será de boa vontade que o comendador cede?
— Isso importa pouco.
— Receio que seja um laço.
— Laço? Ora essa! exclamou Veloso sorrindo. O mais que podia ser era negar o dote à filha. Mas sempre tens esperança da parte que lhe tocar por morte do pai. Quantos filhos tem ele?
— Cinco.
— Uns cinqüenta contos a cada um.
— Então, parece-te que devo...
— Sem dúvida.
Veloso saiu; Gaspar ficou meditando na situação. Poupo à leitora a exposição das longas e complicadas reflexões que ele fez, bastando dizer que no dia seguinte ainda a questão estava neste pé:
— Devo eu desobedecer a voz de um morto? Trair a esperança de uma senhora que me estima, que me estremece?
Vinte e quatro horas depois estava enfim resolvida a questão. Gaspar declarou a D. Mônica que estava disposto a casar com ela, se consentisse em dar-lhe esse prazer. A boa senhora não tinha outro desejo; contudo, foi fiel à máxima do sexo; fez-se um tanto rogada.
— Resolvi! disse Gaspar a Veloso logo que o encontrou depois disso.
— Ah!
— Caso-me.
— Com a Lucinda?
— Com minha tia.
Veloso recuou dois passos e esteve calado alguns instantes.
— Admiras-te?
— Admiro-te. Afinal os trezentos contos...
— Ah! não! Obedeço à vontade de meu tio, e não posso corresponder com ingratidão aos desvelos de uma senhora que me estima. Será isto poesia, talvez; talvez me acusarás de romanesco; mas eu penso que sou simplesmente honrado e leal.
Veloso foi convidado para servir de padrinho do casamento. Aceitou o encargo; é amigo da família; e consta que deve a Gaspar uns três ou quatro contos de empréstimo. Lucinda chorou durante dois dias, ficou raivosa outros dois; no quinto encetou um namoro, que acabou pelo casamento daí a quatro meses. Não era melhor que todos eles começassem por aí? Poupavam a si próprios alguns desgostos, e a mim o trabalho de lhes contar o caso.