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Da França ao Japão/II

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CAPITULO II

 
As costas do Egypto. — Os historiadores antigos e modernos. — O Nilo. — A politica Ingleza e a liberdade de commercio. — Um grande homem. — O algodão egypcio. — Um gentleman original. — Chegada a Port Said. — Os cafés-concertos. — O imperio da roleta. — Os habitantes de Port Said. — Entrada do «Ava» no canal.
 


EM frente as bocas do Nilo, na distancia de sete kilometros da costa, o Ava começou a sulcar as aguas barrentas do rio, que em impetuosas correntes derramavão-se no Mediterraneo.

A vista da costa egypcia nos despertou mil recordações sobre a historia da antiga terra dos Pharáos, cujos monumentos ostentão com o máximo brilho os feitos das gerações passadas.

É para lastimarmos a pouca luz da historia do primitivo Egypto; sómente as taboas chronologicas servem ao archeologo e ao historiador para verificar os factos mencionados pelos antigos escriptores; os quaes, não obstante suas altas qualidades como homens de lettras, desafogavão muitas vezes, os sentimentos que nutrião, narrando infielmente os feitos dos seus inimigos ou usurpando para seus amigos as glorias conquistadas por outrem.

A vida política e social nos antigos tempos, não era sem duvida isenta das pequeninas miserias que, ainda em nossos dias, tanto affligeam os historiadores e os criticos; sempre faceis, em expôr os seus adversários n’um immortal pelourinho de infamia, e em exalçar os simples feitos dos seus protectores e amigos, sacrificando assim, ao seu epicurismo, a dignidade propria e a verdade da historia.

Porém deixemos de fallar das mazellas de alguns dos nossos escriptores contemporâneos, que a cada momento se deixão surprehender e retratar ao vivo nos seus escriptos, para descrevermos este solo que foi o imperio dos deoses semi-deoses e heróes.

Amrou o primeiro conquistador arabe do Egypto assim o pintava ao califa Omar:

«Imaginai um arido deserto e uma magnifica campina entre duas montanhas: uma, tendo a forma de uma collina de areias, e a outra, a do ventre de um cavallo hectico ou do dorso de um camello. Eis o Egypto.»

Estas poucas palavras dão uma perfeita idéa do solo egypcio.

É no meio deste valle que corre com magestade o rei dos rios africanos, rico quando em certa epocha do anno recebe o tributo dos subditos, para com liberalidade fertilisar o arenoso solo Egypcio.

Herodoto diz que este paiz é um producto do Nilo; e, na verdade, seria um dos mais estereis e inhabitaveis do Globo se a superficie de grande parte do seu solo, não fosse coberta pelo limo fertilisador d’este rio. Então, esta vasta planicie de areia cobre-se com luxuriante vegetação, e tornada de prodigiosa fecundidade, permitte tres colheitas até nova volta das aguas.

Todos os recursos possíveis são empregados pelos naturaes, para augmentar a area innundada, e, para isso, importantes trabalhos forão executados, de modo que as aldeias e cidades ficão em secco, durante a innundação, e se communicão por pequeninos e mui ligeiros bateis, tão numerosos como as folhas das palmeiras.

Chegada certa épocha, as aguas se retirão progressivamente, e os habitantes, sem perda de tempo, abrem sem profundar as entranhas da terra, lanção as sementes, e esperão que o benefico orvalho, supprindo as chuvas, conserve o succo nutritivo de que o solo está embebido.

Parecia-nos que n'este paiz, onde á mais abundante colheita succede de subito a esterilidade, a importância da sua lavoura seria fraco elemento para sua riqueza, entretanto, o trigo, o algodão e o fumo, produzidos pelo solo egypcio, são afamados e muito procurados em todos os mercados do mundo.

Para o poeta, o aspecto d'este paiz desperta, ora, férvido enthusiasmo, quando sob o seo bello céo elle contempla estes vastos campos cultivados, verdadeiras anamorphoses, representando deslumbrantes e variados quadros; outras vezes, á vista dos areiaes movediços pelos ventos do deserto [1], de um céo turvado, e de um sol violaceo, as ideias faltão-lhe ao cerebro, o coração se lhe annuvia de tristeza: — todos os corpos animados entrão em estado febril e doentio.

Os pulmões se contrahem n'esta atmosphera de fogo, a respiração é laboriosa, a vida torna-se intolerável.

Tal é a physionomia do actual paiz dos kœdivas digno de melhor sorte, pelo valor de suas gerações passadas, e pela capacidade dos illustrados estadistas que no nosso século tentárão regenerar os seos concidadãos, abolindo barbaras usanças, e assim, realisando diversos melhoramentos tanto de ordem moral como material. Infelizmente, quando pelo incessante trabalho do progresso, era de esperar a regeneração das grandes nações da antiguidade, vemos, ao contrario, que o engrandecimento dos paizes novos importa na ruina d'aquelles, que dispõem de uma seiva mais pobre, e de cuja circulação mais lenta resulta atraso para suas artes e sciencias.

Será esta a justa explicação da decadencia dos antigos povos, outr’ora capazes de grandes commettimentos, como demonstrão seos monumentos, e hoje, apologistas empedernidos das velhas instituições, e intolerantes sectários da escola de Epicuro?

De certo, esta causa não se opporia á marcha triumphante da civilisação moderna se, em nome do seo mais forte baluarte, a liberdade, ambiciosas nações não excogitassem perfidas ardilezas para assenhorearem-se das riquezas das mais fracas e constituirem-se, pela força ou astucia, arbitros supremos de seos destinos.

E, já que fallamos do Egypto, não será sem interesse lembrarmo-nos da influencia que a politica da altiva Inglaterra exerceo sobre o destino deste paiz.

Impondo seos tratados de commercio com as bocas dos canhões; justificão a violência, negando a qualquer estado a direito de permanecer fóra da communhão social; porém, se n’estes tratados, fossem attendidas as condições de vida de cada povo e não concebidos para exclusiva protecção ao commercio inglez, estamos convictos, de que não veriamos os portos dos paizes humilhados, transformados em theatros de rapinas, dignos dos Alaricos e dos Atilas, porém que nos modernos tempos têm por autores, philantropicos diplomatas; não, como aquelles, montados em seos indomaveis cavallos e apoiados na força do seo braço, porém defendidos pela inviolabilidade de suas pessoas, sempre recebidas com as honras e as festas.

E quando seos bons officios são recusados por algum governo patriotico e sagaz que comprehende as intenções da philantropica Inglaterra, as festas publicas, feitas em honra dos seos hospedes, são seguidas de lucto ou do miseria; e não raras vezes, populações indefezas forão assassinadas pelos soldados deste tão preconisado paiz que, assim, preferião ser esmagadas pela força do que venderem seo solo ou comprometterem o futuro da patria.

É, sobretudo, a propaganda ruinosa da liberdade de commercio que serve de apoio a estes tratados extorquidos pelos canhões inglezes, que substituem, sempre com vantagem, as mallogradas negociações diplomaticas; deixando a escolha, de uma nação livre e então rica de seos recursos naturaes, a paz na miséria ou a guerra com os seos horrores, — a bolsa ou a vida; — e mais tarde, a bancarota infallivel proporciona occasião a Rainha dos mares para transformar estes paizes em protectorados e colonias.

Aos grandes acontecimentos suscitados no começo do século pela Inglaterra, e que mudarão a face política de muitos Estados da Europa, succederão questões de interesse commercial para este paiz, nas quaes, o espirito do publico inglez estava perfeitamente de accordo com o governo.

Assim é, que facil foi a victoria para a Inglaterra, cujas doutrinas da sua politica externa cifrava-se em propagar e sustentar por todos os meios a liberdade de commercio, necessariamente vantajoso para ella que somente dispõe de sua industria manufactureira e exclusivamente utilisa materias primas estrangeiras.

Finalmente, contando em cada um dos seos filhos um collaborador da grande idéa — a preponderancia no commercio do mundo — a Inglaterra interessou em Portugal, com o importante commercio dos vinhos do Porto; em Hespanha, chamando a si as manufacturas de algodão de Barcellona, receiando a concorrência com Manchester e Liverpool; na Sicilia, monopolisando o enxofre; e finalmente, no Egypto, ingerindo-se na administração do paiz, para matar a industria da algodão egypcio; creando toda sorte de difilculdades á sabia administração de Mehemet-Ali.

Julgando-se senhora do Mediterraneo, a Inglaterra, qual inconsciente usurario, tratou de monopolisar o commercio das Indias e d’outros paizes asiaticos, já seduzindo com o seo ouro os funccionarios de alta dignidade destes paizes; já subornando os fracos de animo ou instigando os mais valorosos ás rebelliões e revoluções.

Porem, os diplomatas dos Estados-Unidos já tinhão atravessado o Pacifico e contratado relações de commercio com o Japão e a China, então a Inglaterra tratou de consolidar o seu poder nas Indias, emquanto esperava occasião azada para levar a civilisação a estes dois paizes.

Deixemos, porem, para mais adiante, esta importante questão, e lancemos nossos olhos para o Mediterraneo fechado pelo estreito de Gibraltar, praça forte da Inglaterra.

O Egypto teve um chefe que foi grande nas suas concepções como a vastidão dos seus areiaes, impetuoso em suas paixões como as correntes do Nilo, e fertil para seo paiz como as aguas deste rio.

Mehemet-Ali foi um dos homens d’Estado mais notáveis do nosso século, um dos mais esforçados iniciadores do actual canal de Suez, e, que por varias vezes frustrou os planos politicos da Inglaterra, que via na estreita lingua de terra reunindo a Africa á Asia, o obstaculo que impedia a marinha mercante da Europa de concorrer com a sua, então dominadora de todos os mercados e senhora do commercio oriental.

Mehemet-Ali nasceo em 1769, na Roumelia, e desde a mais tenra idade entregou-se ao manejo das armas e á vida activa do militar. Aos vinte annos era nomeado capitão, e, por occasião da occupação franceza do Egypto, tendo-se distinguido por altos feitos de guerra, foi successivamente promovido nos differentes postos, de modo, que finda a campanha, era commandante (seraskier) dos turbulentos albanezes.

N’este posto Mehemet desenvolveo admiravel aptidão para a administração civil, já aconselhando as autoridades medidas patrioticas e de grande valor para os interesses do Egypto, já censurando a conducta e denunciando os erros administrativos dos governadores do Egypto. Mehemet realizou com grande exito seus planos de usurpação no governo do Egypto com perseverança e dissimulada sagacidade; afinal impoz sua nomeação á Porta que, temendo o poder deste chefe militar, mandou uma esquadra ao Egypto para desarmal-o.

Entretanto Mehemet-Ali era aclamado pelos seos soldados vice-rei do Egypto, e o almirante ottomano, vendo que seria temerário executar as ordens que tinha recebido, voltou a Constantinopla, depois de conferenciar com Mehemet. Algum tempo depois, os poderes do vice-rei forão confirmados, e o Egypto inaugurava nova epocha de progresso o de paz.

A primeira necessidade de que curou o novo governador foi da paz interna, constantemente perturbada pelos mamelucos, que em suas correrias atacavão a propriedade e muitas vezes a vida dos habitantes do interior.

Mehemet-Ali depois de pacificar o paiz, constituio-se o unico agricultor e negociante, e dispondo de immensos recursos, mandou executar grandes e duráveis trabalhos, sobresahindo, entre todos, pela sua importância e real utilidade, o do canal de Mahmoudieh, o qual recebe as aguas do Nilo e as despeja no porto de Alexandria.

Quando a fome assolou alguns Estados da Europa, em 1816 e 1817, grande numero de navios ião aos portos do Egypto em busca de trigo. Mehemet-Ali, intelligente e ambicioso, soube tirar partido desta importante producção do seo paiz. Logo que notou a procura do trigo, Mehemet-Ali impoz ás províncias de Saïd e do Delta que o pagamento das contribuições fosse feito com este producto, o tornando-se o unico fornecedor, conservou a alta do trigo durante mais de dois annos.

Com os grandes lucros, assim auferidos, elle constituio-se o unico intermediario em todas as transacções.

Comprehendendo então, a importância da grande lavoura, este chefe pensou em naturalisar o algodão no Egypto; mandou vir de Pernambuco uma grande quantidade de sementes d’este nosso producto, em outros tempos tão importante, e que, hoje, pela inconstancia dos nossos lavradores e falta de progresso industrial, não póde concorrer nos grandes mercados com as producções de outros paizes.

O estudo sobre o importante commercio do Egypto de 1820 aos nossos dias, nos demonstra o desenvolvimento espantoso desta cultura; e em todas as cidades mais commerciaes da Europa, Mehemet-Ali estabeleceo armazens importantes, verdadeiros emporios do algodão egypcio. Segundo alguns economistas, Mehemet-Ali deveo á cultura do algodão os recursos do que dispoz para sustentar as longas e onerosas guerras em que submetteo o Nedj, o Yemen e o Sanaar.

Florescendo sob a direcção de um chefe illustrado, o Egypto parecia lembrar-se de sua antiga importância, porem este progresso não convinha a alguns estados da Europa, e a Turquia instigada, ou comprehendendo com má vontade o desenvolvimento do commercio egypcio, tentou em 1839, conquistar as possessões da Syria que fazião parte dos estados do Vice-Rei.

Os exercitos d’este, baterão completamente os do Sultão, e Ibrahim-Pachá, filho de Méhémet-Ali, expulsou os turcos do solo de sua patria; porém, a intervenção de algumas potencias europeas veio, em nome da civilisação, mudar a sorte das armas egypcias; e de feito, em 1841 foi assignado um tratado entre Méhémet-Ali e o Sultão, pelo qual este concedia a Méhémet e aos seos descendentes, segundo a ordem de primogenitura, o Egypto, sem que por isso, fosse elle superior aos outros vizires; e a troco d’esses favores, o Vice Rei pagaria um tributo, reconhecendo assim a suzerania do Sultão, sendo, além disto, as nomeações dos officiaes superiores do exercito feitas por escolha exclusiva do chefe turco.

Talvez que para legitimar a intervenção das potencias estrangeiras ou para resguardar os interesses da civilisação, foi prohibido Méhémet de continuar a fazer eunucos nos seos estados.

Méhémet-Ali doente e enfraquecido pela idade não descurou das necessidades do Egypto, e, entre outras medidas, merece ser lembrado o interesse que elle tomou pela instrucção dos seos subditos, tendo mesmo, estabelecido em Paris, uma escola onde alguns d’elles se preparassem para as matriculas dos cursos especiaes.

Com a idade, a razão d’este homem notavel, começou a enfraquecer; e após uma visita que sua filha lhe fez em 1845, em que, segundo dizem, qual outra Sara, apresentára uma jovem Agar ao velho Méhémèt-Ali, este, não dispondo da resignação de Abrahão, enlouqueceo completamente.

Desde então foi seo filho Ibrahim quem de facto governou o Egypto, porém, em 1848, fallecerão pae e filho e coube ao neto do grande soberano Abbá-Pacha as redeas do governo.

Este falleceo em 1854 depois de curto porem intelligente reinado, cabendo então a seu tio Said-Pacha o throno e a gloria de ver executar sob seo reinado uma das obras mais dignas do nosso século; — a abertura do canal de Suez, cujo projecto fôra concebido por Méhémet-Ali e a execução confiada ao illustre engenheiro francez Ferdinand de Lesseps.

É com sentimento que observamos o Ava seguir seo rumo com destino ao canal; desejávamos vêr Alexandria; a unica cidade do Egypto, que sobreviveo a sua ruina; visitar seos bellos monumentos e o importante canal de Mahmoudieh; ficará a satisfação da nossa curiosidade para quando voltarmos do Oriente, já habituados com os costumes orientaes e as emoções de viagem; e, como dizem que a civilisação partio do Oriente, não será sem interesse procurarmos seos vestígios d’este extremo ao occidente; e sendo o methodo indispensavel a todos os projectos que o espirito humano póde conceber, approveitaremos da viagem de ida para disprevenidos recebermos as impressões, e durante a volta coordenaremos os factos e deduziremos as nossas observações sobre o gráo de desenvolvimento de cada povo, sob o ponto de vista da moderna civilisação.

Assim, esta segunda visita pelos mesmos paizes servirá para corregirmos os nossos primeiros juizos, com o unico fim do restabelecermos a verdade, muitas vezes adulterada peia imaginação ardente e enthusiastica de alguns viajantes, ou pela exageração de outros, que julgão assim, tornar mais interessante a descripção viciada de suas viagens.

Emquanto não podemos visitar Alexandria ouçamos o que nos relata um nosso companheiro de viagem, perfeito gentleman, ainda que algum tanto severo nas suas apreciações extra-britannicas.

Viajando para empregar o seo tempo, como elle nos declarou, e para não se deixar vencer pelo spleen nacional, o nosso amigo viaja só, apenas fazendo-se accompanhar de um boule-dogg, de uma pequena mala, e com suas cartas de credito. É o typo do inglez amavel e pouco se occupando dos accidentes que tornão uma viagem difficil e custosa.

Com o seo dinheiro tudo vence, com o seo cão conversa, e com seus olhos tudo observa, sómente para si; e, se tivemos a felicidade de colher de suas interessantes informações, alguma utilidade para nossos projectos, devemos a um serviço que lhe prestamos, quando suspenso sobre as vagas, apenas sustendo-se com as mãos na extremidade de um cabo, em consequencia de se ter quebrado a escada de bordo, fomos a seo auxilio, ajudando o a sahir de uma situação bastante incommoda.

Desde então o nosso companheiro tornou-se amigo e com prazer acceitamos a sua amavel sociedade.

Segundo elle, o viajante no Egypto não póde dispensar o cicerone e ainda que estes parasitas ali existão em grande numero, é difficil encontrar quem preencha conscienciosamente os deveres de sua profissão. Em geral elles occupão-se em mostrar as insignificancias vulgares, quando são seos serviços retribuidos diariamente; preferem tratar por empreitada, isto é: por uma convencionada somma servem do guia aos viajantes nas visitas ás principaes curiosidades do Egypto; então, póde-se contar com a sua actividade, intelligencia e mesmo honestidade, acontecendo muitas vezes debaterem com os mercadores, os preços de certos objectos que os viajantes desejão a posse como lembranças de suas excursões.

Chegamos no dia seguinte á Port-Said, pequena povoação situada na entrada e sobre uma das margens do canal. Apenas o Ava fundeou, desembarcamos em busca da agencia do correio, para remetter nossa correspondência para o Brazil e Pariz. A primeira impressão que tivemos do Port-Said foi pessima, e, na verdade, nada se encontra digno de menção nas suas ruas immundas e nas edificações sem importancia, sem originalidade e occupadas, em geral, pelas casas de jogo e pelos mercadores.

O jogo é a peste que mais aflige as populações do Egypto. Em todas estas casas, em numero de 6 ou 7, encontra-se também uma orchestra composta de algumas mulheres, na mór parte valachias, bellezas murchas pelos ares abrazadores do Egypto, e gastas pela vida dissipada da prostituta disfarçada. Emquanto ellas estropião as composições dos Strauss e de Offembach, ouve-se um acompanhamento sui generis; — o tinir das moedas de oiro, lançadas continuadamente pelos jogadores sobre o tapis vert que rodea a roleta.

A scena da sala immediata á da orchestra não deixa de ser curiosa, ainda que ao mesmo tempo repugnante.

No centro, uma extensa mesa, no meio da qual se acha o objectivo de todas as vistas: a celebrada roleta, emigrada de Baden-Baden e que em breve, também será banida de Monaco. Aos lados da roda, sobre um panno verde, se vê pintado alguns quadrados, tendo cada um em seo centro um certo numero em algarismos bem visiveis. Proximo ao banqueiro ou operador uma salva cheia de moedas de oiro de diversas effigies, fascina os olhos dos parvos que, de pé, em volta da mesa, uns pallidos, os que perdem, outros com as faces escarlates, os que ganhão, alguns silenciosos, os professionaes e compadres do banqueiro, finalmente outros, monossyllabando, as victimas necessarias e contribuintes indirectos do imposto sobre o jogo; lanção todos, moedas de oiro e de prata sobre os quadrados numerados com os algarismos pelos quaes apostão.

Então o operador, vendo a colheita annunciar-se gorda, lança habilmente uma bola de vidro sobre o disco da roleta, a qual começa circular com rapidez até que perdendo progressivamente a força inicial diminue de velocidade e começa a saltar as pequenas divisões que separão as casas numeradas. É este o momento supremo: todos os olhares se fixão sobre a bóla e quando esta pára sobre um numero, ouvem-se exclamações de admiração da bocca de uns e de raiva na de outros; o banqueiro arrecada, sem mudar de lugar, e com o auxilio de um instrumento, muito parecido ao que os jogadores de bilhar chamão rabeca, as moedas que se achão sobre os dois lados da mesa, emquanto um ajudante da espelunca empurra com outra rabeca uma quantia igual a vinte e quatro vezes a que se achava no quadrado marcado com o numero feliz.

Tudo isto se passa em menos de dois minutos para recomeçar de novo e sem interrupção durante todos os dias até as altas horas da noute.

Disserão-nos que em Port-Saïd perdem os estrangeiros milhares de libras annualmente, e especialmente, as tripulações dos navios do guerra russos e americanos concorrem com a maior somma; sendo, estas casas de vicio fiscalisadas por agentes do Vice-Rei que percebem uma porcentagem sobre os beneficios realisados. Não raras vezes tem acontecido serem assassinados e roubados os jogadores felizes, quando pernoitão na povoação, ou dirigem-se ao caes para recolherem-se a bordo dos navios.

A população de Port-Saïd compõe-se de individuos de todas as nacionalidades; d’esde o Arabe de tez bronzeada até o Yankee dos Estados-Unidos da América.

Da diversidade de costumes d’estes indivíduos não se podia esperar uma população laboriosa e honesta; e, segundo as informações que colhemos, a população não excede de dois mil habitantes residentes, dos quaes, uma quarta parte consiste em trabalhadores do canal, a metade de arabes e de egypcios, mercadores de ambos os sexos; uma oitava parte de foragidos da Turquia, Valachia, Roumania e de outros paizes, que ahi encontrão a impunidade dos delictos mais ou menos graves que commetterão em seus paizes; finalmente, a ultima parte compõe-se de musicos ambulantes, artistas comicos e de outros officios, e agentes da policia egypcia.

No dia seguinte ao da nossa chegada á Port-Said, o commandante do Ava recebeu aviso de que podia seguir visto o canal achar-se livre; e, sob a direcção dos praticos da companhia, o paquete deitando cinco milhas por hora, começou percorrer a linha divisoria da Africa e da Asia.



  1. Os arabes dão-lhes o nome de semoun que significa veneno.